05 Outubro 2016
"A heteronormatividade exerce sobre as identidades de gênero e as orientações sexuais – e a escola, inevitavelmente, é um dos lugares privilegiados da sua reprodução – uma função que é produtiva e, ao mesmo tempo, repressiva."
A opinião é do filósofo italiano Federico Zappino, estudioso das teorias feministas e queer, e editor italiano das obras de Judith Butler pela editora Mimesis. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 04-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O "Gender" quer abolir as diferenças entre homens e mulheres? O gênero quer destruir a família natural? O gênero nos tornará todos gays? Essas são as perguntas inseridas no debate público pela cruzada neofundamentalista que mobilizou um grande grupo de atores e instituições, principalmente religiosos, por último o Papa Francisco, mas também de extrema direita, como de "esquerda", unidos pela partilha de perspectivas conservadoras e reacionárias em matéria de gênero, corpo, sexualidade.
O paradoxo dessa cruzada, no entanto, é que ela nos impõe que resistamos, sem desistir. Responder a ela, especialmente a partir da perspectiva daqueles que, em várias vestes, lidam com as crianças e com os adolescentes, significaria, acima de tudo, legitimá-la e, portanto, legitimar o descrédito, a ela subjacente, em relação às teorias do gênero.
O "Gender", de fato, não é senão o modo pelo qual os anglo-saxões se referem àquela categoria que, em português, e há muito tempo, é traduzida unanimemente como "gênero", embora os seus usos e as suas variações possam diferir notavelmente, dependendo dos âmbitos disciplinares ou de movimento, dos contextos ou dos fins.
Mais importante do que isso, porém, é dizer que essas perguntas identificam com extrema precisão as estruturas elementares do poder a partir das quais as teorias de gênero – nas suas diferentes genealogias feministas, gay/lésbicas, queer, pós-estruturalistas, materialistas, interseccionais – tomam impulso para as suas próprias análises e, de modo menos explícito, para os seus próprios objetivos normativos e de luta.
Essas grandes estruturas são o estatuto da diferença sexual ("as diferenças entre homens e mulheres"); a reprodução ("destruir a família natural"); a sexualidade ("tornarem-se todos gays").
Tais perguntas, com todo o seu porte reacionário, poderão levar as pessoas a sorrir ou a se indignar, poderão assustar os mais progressistas diante da ideia que algo deu errado no progresso linear da história "para o melhor" ou, ao contrário, poderão abalar – e, de fato, abalam – consensos, de modo transversal às inclinações, inervadas como estão pelo medo de que os fundamentos da nossa cultura desapareçam.
E esses fundamentos, cada um dos quais coincide com cada uma das três grandes estruturas de poder identificadas pelas perguntas neofundamentalistas, são, ainda hoje, estes: a autoevidência da diferença sexual; a centralidade da família nuclear; a heterossexualidade, sob o pano de fundo da exclusividade mútua das orientações sexuais e dos gêneros. Essas perguntas nos sugerem que a ordem simbólica e social depende da capacidade de resistência desses três fundamentos, isto é, do fato de que a heterossexualidade continue dependendo da instituição dos gêneros, dos quais depende a inteligibilidade do sexo.
Essas três perguntas, embora de modo totalmente involuntário, portanto, têm a vantagem de nos levar a pensar sobre o "gênero" independentemente da distinção que, geralmente, se tende a estabelecer entre o "sexo", a ''identidade de gênero" e a "orientação sexual". Com a palavra "gender", as perguntas reacionárias aludem a todas as três coisas. E pode ser importante, talvez, colocar sob precaução aquelas posições analíticas que considerem o sexo, a identidade de gênero ou a orientação sexual singularmente, subestimando o nexo estrutural que os nega: esse nexo é a heteronormatividade.
A heteronormatividade exerce sobre as identidades de gênero e as orientações sexuais – e a escola, inevitavelmente, é um dos lugares privilegiados da sua reprodução – uma função que é produtiva e, ao mesmo tempo, repressiva. Por outro lado, são as mesmas vozes daquela multidão que, cotidianamente, desafia a heteronormatividade, até mesmo dentro da escola, que testemunham isso.
Trata-se de vozes que abrem novos campos de possibilidades, de experimentação e de luta, e que restituem uma riqueza de posicionamentos, desejos e necessidades que não podem ser compreendidos por qualquer dialética, nem mesmo por aquela entre o neoliberalismo e o neofundamentalismo. E, na verdade, a heteronormatividade não é senão o inesperado ponto de convergência entre essas duas modalidades, aparentemente contrapostas, através das quais o poder opera hoje.
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A cruzada do gênero. Artigo de Federico Zappino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU