30 Setembro 2024
"Maria não é “princípio mariano”. Maria não é “uma mulher para todas”. Maria é excluída da autoridade pública, exatamente como todas as outras mulheres antes e depois dela. Sua exemplaridade e santidade não falam do sexo, mas da fé. Parte do que projetamos em Maria, como se fosse santa, é apenas o preconceito de um mundo masculino, que quer manter a mulher fechada na esfera privada. É assim que pensamos durante séculos", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, ao comentar o discurso do Papa Francisco na Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, 28-09-2024, publicado no blog Come se non, 29-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele: "O essencialismo que domina muitos discursos eclesiais projeta esse modelo limitado nas mulheres a tal ponto que, como faz Francisco, chega a pensar que a mulher que se sente chamada ao exercício de autoridade em público “quer ser homem”. Essa talvez seja a frase mais infeliz de todas. Porque confunde um modelo cultural tradicional e burguês com a verdade do evangelho".
Considerando que já há muito tempo se abriu um espaço de discussão sobre o papel da mulher na Igreja, recentemente, especialmente desde a decisão do Papa Francisco de criar uma primeira comissão de estudos sobre a história do diaconato feminino, no discurso aos estudantes realizado no sábado, 28 de setembro, em Lovaina, emergiram claramente alguns limites profundos da visão católica de Francisco sobre a mulher, uma leitura que se pensa poder propor como “doutrina”, quando consiste apenas em preconceitos culturais envernizados com uma pátina de evangelho. Um exame mais apurado de algumas passagens do discurso de permite identificar muito bem a raiz teórica, diríamos doutrinária, dessas palavras infelizes. Primeiro, citarei o texto que foi proferido e, em seguida, alguns esclarecimentos de minha autoria.
"Pensar na ecologia humana nos leva a uma temática que é muito importante para vocês, antes mesmo que para mim e meus predecessores: o papel da mulher na Igreja. Gostei do que você disse. A violência e a injustiça pesam muito aqui, juntamente com preconceitos ideológicos. É por isso que é preciso redescobrir o ponto de partida: quem é a mulher e quem é a Igreja. A Igreja é mulher, não é “o” Igreja, é “a” Igreja, é a esposa. A Igreja é o povo de Deus, não uma empresa multinacional. A mulher, no povo de Deus, é filha, irmã, mãe. Assim como eu sou filho, irmão, pai. Esses são as relações que expressam nosso ser à imagem de Deus, homem e mulher, juntos, não separadamente!
De fato, mulheres e homens são pessoas, não indivíduos; são chamados desde o “início” para amar e serem amados. Uma vocação que é uma missão. E é daí que vem seu papel na sociedade e na Igreja (cf. São João Paulo II, Carta Ap. Mulieris Dignitatem, 1)."
Uma “ecologia humana” não se deixa definir apenas no plano das “funções naturais”. Aqui há uma espécie de captura do feminino no natural. A mulher aparece, inevitavelmente, como correspondência: filha, irmã, mãe, esposa. Deve-se observar, como vem se contestando com autoridade há pelo menos 200 anos, que a definição de mulher acontece em uma referência ao homem. Tem sentido apenas se tiver um homem ao lado. De filha, a noiva, a mãe. A cultura moderna tardia soube reelaborar com elegância justamente esse modo de pensar, sem negar a diferença, mas não a projetando principalmente para o plano da autoridade. A mulher, como o homem, é definida por essas relações, mas também por mil outras dimensões, que também fazem parte de sua essência:
Por outro lado, o “gênero feminino” da palavra “Igreja”, no qual Francisco insiste, é de pouca utilidade para entender a identidade feminina. Inácio de Loyola dizia que a Igreja hierárquica, se tivesse afirmado que uma coisa era preta, ele acreditaria que era preta mesmo que a visse branca. Essa famosa afirmação era comprovada por um raciocínio que deveria surpreender um “filho de Inácio” como o papa. Ele dizia que a Igreja hierárquica era “esposa de Cristo” e, como tal, não podia cometer erros. Sendo a Igreja hierárquica composta apenas por homens (ainda mais na época de Inácio), era evidente que o gênero feminino da Igreja poderia se adaptar bem ao gênero masculino dos bispos. Não se vê por que não deveria de adaptar, até melhor, ao gênero feminino de futuros ministros eclesiais.
"O que é característico da mulher, o que é feminino, não é sancionado pelo consenso ou pelas ideologias. E a dignidade é garantida por uma lei originária, não escrita no papel, mas na carne. A dignidade é um bem inestimável, uma qualidade original, que nenhuma lei humana pode dar ou tirar. Partindo dessa dignidade, comum e compartilhada, a cultura cristã sempre elabora de novo, nos diferentes contextos, a missão e a vida do homem e da mulher e seu mútuo ser um para o outro, em comunhão. Não um contra o outro, o que seria feminismo ou masculinismo, e não em reivindicações opostas, mas o homem para a mulher e a mulher para o homem, juntos."
Essa segunda passagem constitui um reforço teórico da anterior e mostra alguns problemas bastante macroscópicos. Por um lado, começa confiando ao “feminino” uma essência independente do consenso e das ideologias. Uma lei original garante a dignidade também da mulher, além e acima de qualquer lei humana. Mas onde está a ideologia aqui? Não é exatamente essa forma a-histórica de pensar o feminino que alimentou, ao longo dos séculos, uma substancial discriminação e exclusão da mulher de qualquer esfera de exercício público da autoridade? Por que seria ideológico descobrir que a mulher pode praticar esportes, pode exercer o direito de voto, pode participar de concursos públicos, pode ter acesso como violinista, ou oboísta, às maiores orquestras do mundo e até mesmo à autoridade eclesiástica?
O reconhecimento da autonomia da mulher, de sua emancipação, não é contra a lei natural, mas é o resultado de uma nova leitura do sujeito, do mundo e do ambiente. Somos seres históricos, tanto como homens quanto como mulheres: o evangelho não elabora sua cultura a partir do preconceito essencialista que tranca a mulher no âmbito privado, mas contribui, com todas as outras culturas, para a descoberta de uma dignidade na qual comunidade e indivíduo estão em relação. A pretensão do masculino de ser o “ponto comum” para julgar homens e mulheres distorce a história: uma legítima autonomia do feminino (como do masculino) é o princípio definidor do humano. Portanto:
“A mulher em geral” é um conceito vazio, útil apenas para bloquear sua identidade. Como disse K. Rahner, que era jesuíta, “a mulher em geral não existe”.
"Lembremo-nos de que a mulher está no centro do evento salvífico. É a partir do “sim” de Maria que o próprio Deus vem ao mundo. Mulher é acolhimento fecundo, cuidado, dedicação vital. É por isso que a mulher é mais importante que o homem, mas é ruim quando a mulher quer ser homem: não, é mulher, e isso é “pesado”, é importante. Abramos os olhos para os muitos exemplos cotidianos de amor, da amizade ao trabalho, do estudo à responsabilidade social e eclesial, da esponsalidade à maternidade, à virgindade para o Reino de Deus e para o serviço. Não nos esqueçamos, repito: a Igreja é mulher, não é homem, é mulher."
Também a terceira parte do discurso que consideramos parece fortemente marcada por preconceitos culturais, que a tradição teológica assumiu acriticamente e que são repetidos como se fossem parte do “depositum fidei”. Maria não é “princípio mariano”. Maria não é “uma mulher para todas”. Maria é excluída da autoridade pública, exatamente como todas as outras mulheres antes e depois dela. Sua exemplaridade e santidade não falam do sexo, mas da fé. Parte do que projetamos em Maria, como se fosse santa, é apenas o preconceito de um mundo masculino, que quer manter a mulher fechada na esfera privada. É assim que pensamos durante séculos. Também reconhecemos uma autoridade às mulheres em matéria sacramental, desde que fosse restrita ao quarto de dormir, à sala de parto, à casa. Fora, as mulheres não podiam nem agir sacramentalmente nem fazer catequese.
O essencialismo que domina muitos discursos eclesiais projeta esse modelo limitado nas mulheres a tal ponto que, como faz Francisco, chega a pensar que a mulher que se sente chamada ao exercício de autoridade em público “quer ser homem”. Essa talvez seja a frase mais infeliz de todas. Porque confunde um modelo cultural tradicional e burguês com a verdade do evangelho. A mulher não é apenas “acolhimento fecundo, cuidado, dedicação vital”: se não sairmos desse modelo naturalista e essencialista, mas o confundirmos com a revelação, não estaremos mais falando do evangelho, mas apenas sobre nossos preconceitos. Isso deveria ser poupado especialmente aos estudantes, de parte de todos os cristãos, e ainda mais dos papas.
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Francisco e as mulheres: Palavras infelizes. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU