24 Mai 2023
A transformação da sexualidade (casamento igualitário, procriação responsável, identidade homossexual, autoridade pública feminina) é um dos terrenos em que o catolicismo corre o risco de vincular sua própria identidade à lógica da sociedade fechada. É necessário unir a Humanae vitae e a Dignitatis humanae.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicada por seu blog, Come Se Non, 21-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se observarmos com cuidado a história dos últimos 200 anos, poderemos notar como as posições do magistério católico sofreram o impacto com o mundo tardo-moderno, em seus aspectos mais qualificadores: a sociedade aberta põe em crise as formas clássicas de exercício da autoridade, de produção, as formas e os tempos de vida, as relações sexuais e os diversos modos de identidade social.
Em todo esse grande âmbito de concepções, talvez o que pareceu prioritário desde o início foi o campo da concepção do matrimônio, da vida sexual e do exercício da liberdade. Poderíamos dizer que o entrelaçamento entre o exercício da autoridade e a vivência da esfera afetiva e sexual constitui um plexo decisivo para entender os principais desafios pelos quais o catolicismo se sente profundamente desafiado, há pelo menos 150 anos.
Há um “fio dourado” que unifica, sub-repticiamente, a emergência de um casamento “igualitário”, a possibilidade de uma maternidade responsável, a emergência de orientações sexuais homoafetivas em busca de reconhecimento social, a possibilidade de o sexo feminino adquirir um reconhecimento de autoridade.
O que unifica todos esses diversos casos é uma nova e muitas vezes inédita “necessidade de reconhecimento”, que elabore de forma diferente a correlação entre cultura e Evangelho, escapando da armadilha de uma presunção perigosa: ou seja, aquela que pensa que pode identificar o próprio Evangelho com uma “cultura contingente”, de uma forma se não infalível, pelo menos definitiva. Tentemos nos deter brevemente em cada um desses âmbitos.
a) A autoridade que reconhece uniões legítimas é somente a Igreja?
Esse é o temor profundo, que inaugurou uma série de encíclicas, que vão de Leão XIII em 1880 até a Amoris laetitia em 2016. O novo mundo da “sentimentalização” do matrimônio, que começa no século XIX, descobre pouco a pouco a igual dignidade do homem e da mulher. A força dessa nova representação cultural, na qual a “pátria potestade” é substituída pela “potestade genitorial”, também transforma o rito da Igreja Católica. Passa-se do anel único, que o marido coloca no dedo da mulher, para a “troca das alianças”. E a bênção, que durante muitos séculos concernia exclusivamente à esposa, torna-se “bênção dos esposos”.
O traço evidente da “igual dignidade” da mulher obtém, pelo menos em termos formais, uma completa recepção. A diferença sexual se conjuga com uma igualdade batismal e civil. Aqui, os passos, pelo menos no nível positivo, foram dados. Persiste ainda um modelo de “concorrência entre ordenamentos jurídicos paralelos” no modo de lidar com as crises, o que muitas vezes impõe a reconstrução mistificada das vivências e a aplicação fácil demais de “fictiones iuris”, para fazer com que a conta feche.
b) As formas da coabitação, do casamento civil do matrimônio sacramental elaboram uma “sapiência” sobre o bem, que vê a afirmação de formas cada vez mais sofisticadas e seguras de “paternidade e maternidade responsáveis”.
O uso dos “métodos de controle dos nascimentos” implica um espaço de discernimento no qual a Igreja acredita poder decidir “a priori” quais métodos são lícitos e quais são ilícitos. Ainda com a Casti connubii (1930) houve uma forte retomada da faculdade exclusiva de Deus em decidir sobre os nascimentos. Mas, em 1968, a Humanae vitae acreditou que podia assumir uma iniciativa forte contra o emprego dos contraceptivos que não respeitam o “método natural”. A exclusão de um espaço prudencial confiado aos sujeitos da relação sexual e sua substituição por uma decisão “in contumacia” por parte do magistério tornam muito difícil distinguir o “bonum prolis” do “bonum coniugum”, estabelecendo um “vínculo natural” entre o ato sexual e a geração. Não somente em gênero, mas também em espécie. Uma compreensão “biologista” do sexo ainda está na raiz de uma posição marginal demais, fruto de uma teologia de escrivaninha e não de estrada.
c) De modo semelhante, o magistério aborda com diversos documentos, entre os anos 1970 e os anos 2020, a questão do reconhecimento das “vivências homossexuais”: não apenas dos atos, mas também das condições e dos projetos.
A tentação de chegar a uma “definição” do comportamento homossexual em termos de “autossatisfação” – universalmente fechado a toda possibilidade de relação autêntica, senão em termos de castidade – delineia, também neste campo, uma leitura extrínseca da cultura e a convicção de que a tradição, com suas fontes historicamente limitadas, é capaz de lidar com questões novas de modo autônomo e incondicional. Uma Igreja que não sabe abençoar os percursos, mas apenas os sujeitos, não é exemplar e custa a reconhecer a realidade.
d) De modo ainda mais evidente, a relação entre autoridade e sexo parece ser limpidamente limitada no modo como é abordada (e se acha que se resolve) a questão do acesso do “sexo feminino” ao sacramento da ordem. A dissimulação do imobilismo sob a figura de uma “obediência e fidelidade eclesiais à vontade do Senhor” exclui, a priori, todo espaço para o reconhecimento da mais ínfima transformação na identidade e na percepção da “mulher”, fora dos estereótipos essencialistas, muitas vezes traduzidos até em “princípios”, sobre os quais foram construídos grandes preconceitos, piadinhas felizes e incompreensões ou violências muito infelizes.
A pretensão de resolver a questão do acesso das mulheres ao ministério ordenado, substituindo o argumento “contra naturam” por aquele “contra historiam”, parece marcada por um traço ainda mais visceral, embora esteja alinhado com o que se observou até agora.
A prudência eclesial, que nunca pode desaparecer, nunca se identifica com o imobilismo. A exigência de encontrar respostas adequadas sobre cada um desses níveis diz respeito exatamente ao exercício dessa prudência. Para ser prudente, é preciso evitar cair no erro de considerar que a única possibilidade é a de defender também as escolhas inoportunas ou até erradas.
Assim como a Amoris laetitia marcou uma etapa nova no que diz respeito à estrutura magisterial que, da Arcanum divinae sapientiae chegava até a Familiaris consortio, sofrendo de modo exagerado demais a identificação entre “pastoral” e “gestão jurídica da relação”, assim também é preciso que a consideração da sexualidade não seja justificada apenas em relação à geração (mesmo que esta nunca possa ser excluída), que a tendência homossexual de cada sujeito não seja simplesmente submetida a uma redução ao pecado, que a consideração da mulher saiba reconhecer e valorizar também a mulher no chamado ao carisma profético, ao carisma de governo, assim como ao carisma de culto e santificação.
As formas frágeis com que o magistério perpetua a incompreensão do munus docendi, regendi e sanctificandi das mulheres também repousa sobre uma questão sexual não suficientemente elaborada e resolvida – quando vai bem, com princípios de conveniência; quando vai mal, com uma carga de violência indiferente e de discriminação eficaz que é ainda mais pesada em quem a sofre quanto menos consciente é quem a inflige.
Em todos esses quatro casos, no meio dos quais sempre há uma visão do significado global do sexo como “consciência sexual dos sujeitos”, a obediência da teologia ao magistério deve se tornar responsável por dar a palavra a “terceiros”. Uma verdadeira obediência, se tornasse indiferença aos terceiros ou redução de suas vivências a estereótipos sem coração, se tornaria um péssimo serviço à Igreja.
As famílias efetivamente existentes, as formas da geração responsável, as relações homossexuais e os possíveis chamados femininos ao ministério ordenado não podem ser resolvidos sem uma triangulação estrutural: palavra magisterial, reflexão teológica e experiência vivida remetem-se mutuamente e pedem uma integração diferente, que ponha em jogo, ao mesmo tempo, a capacidade magisterial de escuta da experiência para oferecer uma leitura fiel da palavra de Deus, a elaboração de categorias novas pela teologia, capazes de mediar pensamento, palavra e ação, e finalmente a veracidade com que cada homem e cada mulher, livres de qualquer captura ideológica, interna ou externa à Igreja, possam valorizar plenamente sua própria vocação.
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Sexo e magistério: um dispositivo secular. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU