28 Novembro 2022
Montserrat Sagot faz uma pergunta incômoda. É possível falar em direitos humanos e justiça na América Latina e na América Central, quando grandes grupos de pessoas foram praticamente expulsos da categoria humano, em condições de extrema desigualdade e privação?
Nas últimas quatro décadas, muitas lutas sociais, incluídas as lutas feministas, organizaram suas demandas e seus objetivos em torno da ampliação de direitos e, em especial, em diálogo com os direitos humanos. Contudo, no caso da América Latina, esse processo ocorreu em um período histórico de pós-ditadura e democratização e, ao mesmo tempo, de implementação de reformas e políticas neoliberais.
Sagot é uma socióloga costa-riquenha reconhecida por seus trabalhos sobre a violência contra mulheres e meninas. É licenciada em antropologia e mestre em sociologia pela Universidade da Costa Rica e foi pioneira em pesquisas sobre o feminicídio, na América Central. Em 2010, publicou a primeira pesquisa sobre feminicídio na Costa Rica.
A entrevista é de Luciana Anapios, Mariana Álvarez Bros e Valeria Llobet, publicada por El Diario, 24-11-2022. A tradução é do Cepat.
A América Latina é o continente com maior desigualdade social e suas sociedades seguem organizadas por hierarquias determinadas historicamente. Quais os problemas, contradições e limites disto para a agenda de direitos humanos?
Em contextos de grande desigualdade, como na América Latina, muitas das conquistas dos movimentos feministas e de outros podem ser facilmente cooptadas pela democracia liberal e acomodadas às necessidades do sistema capitalista, com a finalidade de permitir certas reformas, mas sem tocar no núcleo duro da desigualdade.
Ou seja, novos direitos são reconhecidos para populações historicamente excluídas, mas muitos desses direitos não são aplicados em toda a sua dimensão ou só são usufruídos pelas mulheres e, em geral, por pessoas de classe média e alta, brancas ou mestiças e de áreas urbanas. Para as outras, as pobres, as indígenas, as afrodescendentes, as camponesas, aquelas que não se ajustam à heteronormatividade etc., a democracia e a justiça não chegaram antes, nem agora.
Embora no período das ditaduras os discursos sobre “segurança nacional” faziam as demandas por bem-estar, justiça e Direitos Humanos serem vistas como ameaças, agora os discursos mudaram. Quando as lógicas do mercado começam a se impor, a preocupação central não está mais centrada na segurança nacional, mas no crescimento econômico e na competitividade.
Nesse sentido, em decorrência da ação feminista, políticas de igualdade e direitos foram ampliadas, mas a lógica neoliberal e as condições de desigualdade econômica, social, territorial, racial etc., restringem o alcance e o conteúdo dessas importantes reformas e, muitas vezes, deixam as políticas de igualdade e os direitos no campo da retórica ou do mero reconhecimento formal. Por isso, é possível argumentar que embora o discurso dos direitos tenha sido e continue sendo útil, por si só, não enfraquece o poder do capitalismo colonial e heteropatriarcal.
A partir de diferentes temporalidades históricas, os países da região viram processos de aumento das violências políticas e criminais. Nesse marco, nos últimos quarenta anos, o aumento das mortes violentas foi frequente, evidenciando a emergência de expressivas formas de assassinato, relacionadas às desigualdades de gênero, que permitiram a conceitualização de “feminicídio”. Como podemos pensar os direitos das mulheres e das minorias, em um contexto que apresenta essas formas de extermínio?
Tenho argumentado, junto com outras pessoas da região, que a América Latina vive um processo letal de grandes proporções que descarta corpos, justamente daqueles que são expulsos da categoria humano e se tornam “vida nua”, usando o conceito de Giorgio Agamben. Este terrível fenômeno é o resultado de uma longa história de violência, exclusão e autoritarismo, agora entrelaçada a um processo de acumulação que se tornou necrótico.
Todas essas mortes são o resultado de regimes desiguais de vida e morte, produzidos pelas técnicas da globalização neoliberal que estão impregnadas de cálculos morais acerca do valor diferenciado dos corpos. Dessa forma, gênero, raça, classe social, situação migratória, sexualidade e idade produzem corpos cujas vidas estão em risco no contexto de múltiplas expressões da desigualdade.
Minha posição é que, diante dessas formas extremas de violência e espoliação, que fazem parte de um discurso hegemônico, punitivo e disciplinador, a simples reivindicação de direitos ao Estado pode ocultar as causas desse processo letal. Em outras palavras, é preciso ter presente que essas condições de morte e violência perpétua não são o resultado da falta de normas ou de uma legislação deficiente ou de um Estado inoperante. Estas condições são o resultado de um regime. Ou seja, são a encarnação material de um regime econômico, de classes, sexo-gênero e de raça profundamente desigual e violento.
Nesse sentido, reivindicar melhores leis, políticas públicas ou medidas policiais ignora a conivência do Estado, que é um componente essencial desses contextos que descartam mulheres e outros corpos. Se queremos pensar em justiça e bem-estar para as mulheres e outros grupos excluídos e imaginar mundos sem exclusão e violência, é necessário garantir uma vida plena para as maiorias.
Isso implicaria ir além da reivindicação de direitos para se concentrar na luta pelas condições sociais, econômicas, políticas, culturais e simbólicas requeridas para que todos os membros de uma sociedade, de acordo com sua condição particular, desenvolvam e exerçam suas capacidades, expressem suas experiências e participem da determinação de suas condições de vida.
Para quantas pessoas existem as leis trabalhistas que garantem salários mínimos, jornadas de trabalho regulamentadas e seguridade social, quando quase 50% da força de trabalho na América Latina está na informalidade?
Para mim está claro que algumas pessoas não gostam do termo “informalidade” e preferem falar de economias comunitárias ou de estratégias coletivas de apoio e sobrevivência etc. No entanto, considero importante continuar fazendo referência a esse termo com a finalidade de falar das condições de precariedade e desproteção sofridas por mais da metade dos trabalhadores da região, sendo 54% das mulheres e 62% da população jovem, segundo dados da CEPAL.
Não quero romantizar as duras condições de vida e insegurança enfrentadas por todas as pessoas que não têm acesso a um emprego de qualidade. De fato, a informalidade no emprego é uma determinante dos modos de vida gerados pelo neoliberalismo e fomenta uma grande incerteza frente à possibilidade da própria sobrevivência. O fenômeno da informalidade está atravessado pelos eixos da desigualdade social, das desigualdades de gênero, socioeconômicas, étnicas e raciais, etárias e territoriais.
Nesse sentido, é possível afirmar que a maioria das mulheres da região, a grande maioria das pessoas jovens e idosas, bem como aquelas que vivem em áreas rurais, vivem diariamente condições de grande precariedade e desproteção, o que as aproxima do pernicioso processo que autoras como Lauren Berlant chamam de “mortes lentas”. Ou seja, um processo contínuo de deterioração e desgaste, que pode levar a mortes prematuras e que é completamente normalizado pela violência dos mercados.
Quais processos foram abertos ou agravados pela pandemia?
Considero que a pandemia teve e terá um impacto mais profundo do que muitas pessoas, incluindo muitos governos, querem reconhecer. De fato, a pandemia constitui uma marca muito forte que afetará toda a sociabilidade das próximas décadas. Essa crise transformou nossas formas de imaginar e viver no mundo, e contribuiu para alterar as relações sociais, as relações entre os gêneros, as formas de organização da produção, o papel dos Estados e até o lugar dos humanos na história e na natureza.
Se antes havia desigualdade, aprofundou-se. Se antes havia diferenças entre homens e mulheres em termos de acesso a recursos, emprego, distribuição de tarefas de cuidado e reprodução da vida, violência etc., isto não só ficou evidente, como aumentou. A independência, a liberdade, o bem-estar e a integridade das mulheres e de outros grupos vulneráveis são as vítimas silenciosas da pandemia.
A crise também ofereceu novas justificativas para a implementação de medidas repressivas e novas formas de coerção política e social, tanto nos espaços públicos como privados. Por isso, considero que na América Latina existe um continuum de violência e morte que entrelaça as mortes violentas do passado e do presente às mortes pelo vírus. Todas são vítimas do necropoder exercido pelo capitalismo colonial e heteropatriarcal que produz corpos vulneráveis à marginalização, instrumentalização e morte.
Você define a América Latina como uma das regiões mais desiguais, violentas e perigosas do mundo para os defensores dos territórios, onde a descartabilidade dos corpos é uma realidade cotidiana. Quais são as violências e expropriações que constroem esse diagnóstico?
Existem inúmeros exemplos a esse respeito. A América Latina é, em geral, uma das regiões mais violentas do mundo fora de uma zona de guerra aberta. Alguns países como El Salvador, Honduras, Guatemala, Venezuela, México e algumas partes do Brasil apresentam as maiores taxas de homicídio do mundo. Vários países da região também se caracterizam por ter as maiores taxas de feminicídio.
Segundo dados da organização Global Witness (2021), a América Latina é a região mais mortal do planeta para os defensores dos territórios e concentra mais de dois terços dessas formas de crimes. Tudo isso tem uma relação muito estreita com as práticas extrativistas.
Países como Colômbia, Peru, Brasil, México e Honduras são cenários do assassinato sistemático de lideranças desses movimentos, assassinatos que muitas vezes ocorrem com a conivência de servidores do Estado e das empresas. Isso ficou claramente demonstrado em Honduras com o assassinato de Berta Cáceres, reconhecida ativista feminista e dirigente do povo lenca.
Em um continente onde historicamente existem práticas de concentração da terra, bem como a ausência de políticas redistributivas, com raras exceções, o aumento dessas formas de assassinato anda de mãos dadas com a expansão da fronteira extrativista, o que leva à expulsão de povos inteiros de seus territórios ancestrais, com práticas sistemáticas de amedrontamento e extermínio.
Em sua apresentação, você questiona o paradigma dos direitos, com sua suposta força para enfrentar as relações desiguais de poder, e o conceito de justiça do modo como é utilizado nas democracias neoliberais. Como você definiria o paradigma dos direitos e o conceito de justiça que propõe questionar?
Primeiro, devo esclarecer que entendo que o paradigma dos direitos e, em particular, o paradigma dos Direitos Humanos, têm sido fundamentais para fazer reivindicações contra os Estados repressores e até mesmo para avançar em processos legais e em condenações contra aqueles que violam esses direitos.
Também é importante reconhecer que o paradigma dos Direitos Humanos é um marco ético muito importante para o movimento feminista reivindicar as responsabilidades do Estado, por ação ou omissão, diante das diversas formas de discriminação, opressão e injustiças sofridas pelas mulheres, em especial as diferentes manifestações da violência.
No entanto, eu questiono o paradigma dos Direitos Humanos que concentra sua atuação nos direitos individuais na esfera pública, já que é universalizante e pode ser facilmente cooptado. O discurso de direitos é importante e útil, mas não enfraquece o poder do neoliberalismo, nem garante justiça para as pessoas mais excluídas.
De fato, as medidas para alcançar a igualdade de jure, por meio da atribuição de direitos, sobretudo o reconhecimento, são uma concessão às demandas de movimentos sociais, mas podem se tornar uma promessa vazia ao alargar a distância entre o empoderamento político e econômico de alguns e as condições de exclusão da maioria.
Da mesma forma, as reivindicações de igualdade ao Estado nos prendem a uma política de presença, à paridade e ao reconhecimento, mas a injustiça não é eliminada e o regime não é destruído. A dinâmica de demandar direitos formais não tem tido um impacto suficiente na reparação das desigualdades históricas e das novas que surgem pelo rearranjo dos sistemas de opressão.
Defendo, então, uma concepção transformadora de justiça que se refere a uma sociedade que contenha e sustente as condições sociais, políticas, culturais, econômicas e simbólicas necessárias para que todos os seus membros, de acordo com sua condição particular, desenvolvam e exerçam suas capacidades, expressem suas experiências e participem na determinação de suas condições de vida. Entendo que, no momento, essa abordagem está localizada no campo dos horizontes utópicos.
Como você explica a relação entre desigualdade, desapropriação e descartabilidade dos corpos?
Vários autores e autoras que analisam a desigualdade, como Göran Therborn, argumentam que ela não se limita a uma distribuição injusta de riquezas e recursos, mas é uma ordem sociocultural, que tem muitas consequências. Entre elas, as diferentes manifestações da desigualdade reduzem nossas capacidades de operar como seres humanos e, em alguns casos, expulsam grupos inteiros da categoria humano. São situados no que Frantz Fanon considerou “abaixo da linha do humano”.
A desigualdade reduz nossos recursos para agir e participar do mundo, e gera subordinação, opressão e exclusão. Além disso, mergulha-nos em mundos de grande insegurança e violência constante, limitando também nosso acesso a recursos básicos para a sobrevivência, como a alimentação de qualidade, a saúde, a água etc. A desigualdade tem inclusive um impacto psicológico, pois reduz a dignidade, o respeito próprio, nosso senso de pertencimento e até nosso senso do “eu”.
E onde é possível encontrar claramente as marcas da desigualdade? No corpo. Ou seja, a desigualdade marca os corpos pelo desgaste, pelas carências, pelo sofrimento, pela subjugação e até pela morte. E essas mortes podem ser violentas, mas também podem ser “mortes lentas”.
Conforme analisado por Lauren Berlant, as mortes lentas são o resultado de um inexorável processo de deterioração, que se torna uma condição que define a existência e a experiência histórica de pessoas que vivem em condições de extrema desigualdade, mesmo que sua morte não ocorra em um só ato violento.
Os assassinatos de pessoas de grupos historicamente excluídos não são anomalias sociais ou eventos extraordinários. Ao contrário, são parte substantiva da lógica do controle social ao se transformar em um discurso punitivo e uma prática disciplinar e exemplar.
É possível falar em massificação dos movimentos feministas na América Latina?
A América Latina não é um território homogêneo. Nesse sentido, não é possível fazer uma generalização sobre as manifestações dos movimentos feministas. Há países que tiveram condições mais propícias para o surgimento e expansão dos feminismos, e outros países cuja história e condições materiais impõem muitas limitações para que movimentos emancipatórios como o feminismo floresçam.
Além disso, eu diria que não é possível falar em termos gerais de massificação dos movimentos feministas. Podemos falar de momentos de massificação em alguns países. Ou seja, em alguns momentos, foram dadas as condições para que os feminismos se unam, unam outras forças e movimentos, e sejam capazes de se manifestar em massa.
Na história recente, movimentos como Marea Verde, Ni Una Menos, Me Too, Mães das Vítimas de Feminicídios, Ni Una Más etc., tiveram uma presença em massa nos espaços públicos e provocaram algumas mudanças legais muito importantes. No entanto, as oportunidades para a visibilização e a incidência feminista oscilam entre momentos de mudança libertadora e receptividade social, por um lado, e momentos de maior conservadorismo e repressão, por outro. Nos momentos mais libertadores e de abertura, ocorrem processos de massificação, ao passo que em momentos de maior conservadorismo os feminismos tendem a se retrair.
Onde está o componente emancipatório dos movimentos feministas?
Os movimentos feministas, particularmente aqueles que se distanciam das posições tradicionais do feminismo liberal, têm presente em seus postulados uma proposta de emancipação. Entendo por proposta de emancipação a que suscita a necessidade de se libertar de todas as formas de opressão. Por isso, mais do que qualquer outra utopia, a utopia feminista sempre almejou uma transformação social em larga escala que desmantele todas as formas de poder opressivo.
Embora esse conceito tenha sido objeto de críticas por alguns autores e autoras, incluindo algumas reconhecidas feministas, eu continuo pensando na necessidade de propostas que considerem o imperativo de enfrentar e transformar radicalmente todas as formas de opressão. E muitos dos feminismos contêm em suas teorias e práticas essas propostas de transformação radical, quando levantam a necessidade de desmantelar as estruturas socioeconômicas, raciais, de gênero etc., para assim promover formas de vida baseadas no bem-estar e fomentar os processos e práticas de autonomia, empoderamento e liberdade, individuais e coletivas.
Em seu texto sobre o feminismo como negação do autoritarismo, Julieta Kirkwood já defendia que o movimento feminista deveria incluir em seu programa a libertação de todas as formas de opressão, pois um movimento que não age assim, dizia ela, está basicamente negando a si mesmo. Nesse reconhecimento de todas as formas de opressão e na necessidade de desmantelá-las está o componente emancipatório dos feminismos.
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“O potencial emancipador dos feminismos está no reconhecimento de todas as formas de opressão”. Entrevista com Montserrat Sagot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU