24 Outubro 2022
Como um coro bem afinado e bem coordenado de vozes que representam a extrema-direita, tanto neste Sul Global como na Europa, fazem promessas de segurança às populações atingidas pela pandemia, pela crise econômica, pela guerra e por um futuro incerto e condicionado, embora essas vozes neguem, pela crise climática e ambiental. Voltar à ordem patriarcal, criar “inimigos externos” bem definidos pelo medo, demonizar os feminismos e os movimentos LGBITQ+ são cantilenas com as quais encantam as populações cada vez mais polarizadas. Como frear estas figuras? O que os feminismos têm a dizer sobre uma figura como Giorgia Meloni, cuja categoria como mulher é destacada como um plus em sua vitória na Itália? Que ideias podem disputar e dissipar o medo para continuar semeando rebeldias?
A reportagem é de Camila Alfie, publicada por Página/12, 21-10-2022. A tradução é do Cepat.
“A esquerda foi avançando passo a passo, etapa a etapa. Primeiro, instrumentalizando os jovens estudantes, que deixaram de frequentar as escolas. Tomaram as ruas, atacaram e depois usaram coquetéis molotov com treinamento da esquerda revolucionária para destruir determinados equipamentos públicos. Depois dos jovens vieram as feministas, com encenações muito obscenas, muito grosseiras, usando seus lenços verdes e roxos, provocando situações inaceitáveis, falando sobre o aborto e para acabar com o machismo. E a isso somamos a imigração ilegal como uma demanda universal que foi gerando guetos de pobreza, a ocupação das ruas e dos comércios. Estudantes, feministas, imigrantes ilegais, ambientalistas extremistas, defensores dos animais extremistas, anarquistas, eles nos levaram a esse fatídico 18 de outubro”, vociferou Antonio Kast, ex-candidato de direita à presidência do Chile, no ano passado, em um encontro virtual do qual participaram representantes do VOX (da Espanha) e outras figuras da direita reacionária europeia. “Assim como vocês no VOX, nós nos apropriamos da palavra ‘rebelião’, mas não a rebelião marxista com as armas, mas a rebelião do bom senso”, respondeu o ex-candidato presidencial chileno quando perguntado por que se “perdoa tudo” à esquerda.
Nesse discurso, Kast deixou claro quem são os inimigos que querem corromper as tradições, a nação e a identidade nacional, entendidas como categorias puras, cristalizadas e homogêneas. E, sobretudo, definiu que o bom senso, escudado pelos movimentos conservadores neoliberais, é a única força “revolucionária” capaz de proteger o povo dessas ameaças, protagonizadas por sujeitos disruptivos, subalternos, importunos e indisciplinados.
Entre os painelistas desta conferência, intitulada “O futuro do patriotismo”, estava ninguém menos que Giorgia Meloni que, no momento de sua intervenção, tinha uma intenção de voto semelhante à obtida por Javier Milei nas últimas eleições legislativas argentinas. No entanto, em 27 de setembro, ela emergiu como a primeira mulher italiana com 26,2% dos votos, em uma eleição com recordes historicamente baixos de participação: apenas 63,9% dos eleitores foram às urnas.
Sua ascensão exponencial está alinhada com um cenário global de avanço de direitas reacionárias, agitadoras e autoritárias, que buscam anular não pelas armas, mas simbolicamente, aquelas pessoas que desafiam o status quo de deus-pátria-família-extrativismo-neoliberal e cis heterossexualidade obrigatória. Aliados e fazendo coro, esses espaços acumulam cada vez mais legitimidade geopolítica e seguidores em um contexto pós-pandemia de incerteza e precarização.
Com os imigrantes e a ‘ideologia de gênero’ em primeiro plano como repositórios de seus fantasmas, Giorgia Meloni se define fundamentalmente como mulher, mãe, italiana e católica. Seu perfil, dessa forma, desenha o imaginário de uma mulher verdadeiramente empoderada: alguém que não descuida dos afazeres domésticos nem nega sua feminilidade, mas que se envolve na arena política para defender os valores tradicionais. Uma pessoa inquebrantável que, depois de ter sido abandonada pelo pai e de ter sido criada com grande privação econômica, conseguiu avançar por sua própria força de vontade. Uma verdadeira role model e Girl Power, em termos daquelas feministas neoliberais que celebram o fato de as mulheres ocuparem espaços de tomada de decisão, além dos discursos que sustentam. E, sem dúvida, um perfil alinhado com os interesses reacionários.
Para surpresa de ninguém, Eduardo Bolsonaro – filho de Jair – comemorou a vitória da dama perguntando nas redes sociais onde estavam “as feministas, que sempre defendem todas as mulheres, para parabenizar Giorgia Meloni por ser a primeira mulher eleita primeira-ministra da Itália”. Dias depois, esse mesmo deputado veio à Argentina, onde fez um tour pelos subúrbios com Joaquín de la Torre, o candidato favorito de Patricia Bullrich para ocupar o cargo de governador de Buenos Aires.
A visita do herdeiro do máximo representante da extrema direita na América Latina também foi marcada por encontros com personalidades ligadas à sua linha, como Milei, José Luis Espert, lideranças do partido Proposta Republicana (PRO) e Francisco Sánchez. Este último viralizou no mês passado, porque foi ele quem exigiu a pena de morte para a Cristina Fernández de Kirchner (CFK) dias depois que Sabag Montiel apontou a arma para o rosto dela na tentativa de matá-la.
“A chegada de Meloni ao poder coloca efetivamente sobre a mesa a necessidade de uma reflexão feminista muito ampla sobre o que chamo de mulherismo, que é diferente de feminismo”, diz Sonia Corrêa. Ela é brasileira, integra o Observatório de Sexualidade e Política e é fundadora da organização feminista SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. A partir da sua perspectiva como pesquisadora, ela vê como algo problemático que esse movimento historicamente tenha feito da chegada das mulheres ao poder “uma pauta prioritária”. Esse critério anda de mãos dadas com um feminismo neoliberal mercantilizado, que transforma as reivindicações populares em slogans complacentes para subjetivar as lutas. O importante é ser uma Girl Boss, uma CEO Business Woman, quebrar o teto de vidro e chegar ao topo. Não importa quantas cabeças precisa pisar e quem são as mulheres que estão abaixo do organograma.
Sonia lista como figuras femininas ultraconservadoras como Golda Meir ou Margaret Thatcher, que ocupavam espaços executivos de protagonismo, não significaram “nem justiça social nem compromisso com a igualdade de gênero ou com a agenda feminista”. O que está por trás desse fenômeno de mulheres reacionárias no poder, celebradas pelos mais altos porta-estandartes do patriarcado como forma de provocar os feminismos?
O que o mulherismo significa para você?
Sonia Corrêa: É essa ideia de que o feminismo está pendurado na anatomia das mulheres. É uma espécie de anatomopolítica. Que basta ser mulher para ser potencialmente feminista. E acredito que as condições do mundo estão nos mostrando que não é bem assim. O feminismo é um campo de posicionamentos filosófico-ético-políticos que não está necessariamente sujeito à anatomia das mulheres.
O que você está propondo também se refere a discussões dentro do feminismo em relação às correntes TERF [feminista radical transexcludente], que militam ativamente para anular as pessoas trans.
Sonia Corrêa: Sim, com as correntes essencialistas. Isso mesmo. Ouvi uma intervenção da socióloga australiana trans Raewyn Connell em um colóquio recente na França, onde ela fazia uma distinção que me parece muito produtiva entre as ideologias antigênero ultraconservadoras e a posição antigênero das feministas essencialistas. Ela mencionava que as forças conservadoras, religiosas ou seculares, compartilham e propagam o fantasma da ideologia de gênero. São forças patriarcais que defendem uma ordem androcêntrica. As feministas essencialistas, para esta autora, têm posições antipatriarcais em relação a diversas questões: contra a violência contra as mulheres, são a favor da descriminalização do aborto, etc. No entanto, elas compartilham com as forças conservadoras antigênero um apego, uma adesão inquestionável à concepção de que a diferença sexual é binária e de base biológica, imutável. De acordo com Raewyn Connell, elas são como puristas genitais. Uma política vinculada à anatomia que é de purismo sexual, genital.
Para Sonia, “o pior que pode acontecer na Itália agora com Meloni não será tanto em termos das políticas de gênero e sexualidade, porque já estão muito deterioradas de alguma forma, mas com as políticas anti-imigração. Penso que é preciso olhar para o efeito Meloni de uma perspectiva de interseccionalidade muito sólida, contemplando a dimensão racial, a dimensão migratória e uma perspectiva antineocolonial, porque acredito que é aí que seu impacto será mais forte”, assegura.
Para Verónica Gago, doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Conicet e integrante do Coletivo Ni Una Menos, “podemos conceituar o fenômeno dos ‘novos’ autoritarismos como um conjunto de transformações nos sistemas políticos, nos Estados e nas dinâmicas de governo, e também nas subjetividades e afetos em jogo, nas formas de organização do trabalho e nas tendências extrativistas do neoliberalismo”. “Nesse sentido, é preciso compreender como a direita criou inimigos para legitimar sua intervenção e ancorar sua proposta de subjetivação, como promessa de uma possível estabilização em meio ao medo e à frustração”, descreve.
No contexto de perigo iminente e de desorientação que a pandemia representou, vários setores viram em propostas reacionárias narrativas com as quais podiam se identificar. “Claramente, é importante destacar que é um fenômeno reacionário e temos que entender o significado literal disso: reage a uma dupla desestabilização. Por um lado, aquela provocada pela precariedade (não saber do que vamos viver, como vamos pagar o aluguel, etc.)”, caracteriza Verónica Gago. “E, por outro lado, a desestabilização promovida pelos movimentos de insubordinação feminista e queer, e também pelas práticas migrantes que desmantelaram, de muitas maneiras, o vínculo entre mandatos heterossexistas, privilégios nacionais e suas economias de obediência”, aponta.
“A violência do cenário que estamos enfrentando, não podemos perder de vista, expressa uma tentativa de estabilizar a crise de legitimidade política do neoliberalismo que encontrou no movimento feminista transnacional, nas formas de insubordinação dos movimentos LGBTIQ e nas práticas políticas migratórias antirracistas formas políticas concretas que disputam com esse sistema tanto o diagnóstico da crise como as formas de atravessar e enfrentar a precariedade do trabalho e a precariedade existencial generalizada. São essas lutas que atacam a estrutura de subordinação e exploração capitalista em uma área sensível e estratégica: justamente onde se articula com forças reacionárias na ordem da família, da sexualidade, dos merecimentos de subsídios sociais, do trabalho não remunerado, das legislações anti-imigrantes etc. Esta é uma realidade que, com a sequência organizada entre a pandemia e a guerra, só se acelerou”, confronta Verónica Gago.
Assim como o nazismo precisou categorizar os inimigos internos para definir quem são os verdadeiros alemães, figuras como Meloni, Bolsonaro, Milei, Kast, Orbán e Trump também usam o “senso comum” para formar um povo. Escondendo-se atrás da “liberdade individual” como valor supremo e ativando um imaginário nacionalista e patriótico, esses líderes conseguiram cativar votos explorando preconceitos e estigmatizando lugares-comuns. Claro que cada região tem suas peculiaridades. Na Argentina, por exemplo, a mídia hegemônica e golpista caracterizou durante anos os mapuches como terroristas chilenos e usurpadores. Não é por acaso que, enquanto as forças repressivas do Estado literalmente promoviam a caça das mulheres desta etnia, Santiago Abascal, junto com Milei, convocava um ato massivo para recuperar os valores coloniais espanhóis.
Como exemplo paradigmático da construção desse “senso comum”, entendido como princípio norteador da “lei e da ordem” (que nada mais é do que um eufemismo para o conservadorismo de extrema direita), Javier Milei disse esta semana que, caso fosse presidente, acabaria com o Ministério da Mulher, o INADI (Instituto Nacional Contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo) e o ESI (Programa Nacional de Educação Sexual Integral). Considera, numa perspectiva vitimista, que “são mecanismos de perseguição de quem pensa diferente”. Seguindo essa linha, defendeu que não lhe parece “certo” que o Estado cobre impostos para “fazer lavagem cerebral” com a ideologia da “aversão sexual”. “Isso é socialismo”, concluiu.
O “senso comum” que constrói, assim como outras lideranças vinculadas ao seu espaço político, como Agustín Laje ou o youtuber El Presto (que tem seu nome ligado à quadrilha de extrema-direita que planejou o atentado contra CFK), é que o ESI é a “doutrinação” da perversão sexual financiada pelo Estado. Essa política pública, que é uma das maiores conquistas do feminismo e uma arma democratizadora para que as crianças e os adolescentes tenham ferramentas para se defender das violências sexuais, ele a categoriza como um perigo imoral que atenta contra a ordem biológica e natural. Ou seja, a ordem patriarcal. Sobre isso, o deputado Domingo Cavallo disse que esses dizeres defendem a liberdade. A liberdade de quem?
Voltemos a Meloni. Como muitas outras figuras da far right, sua popularidade explodiu durante a pandemia, quando se posicionou como uma voz “antissistema” e contestadora das medidas sanitárias. Articulou interesses em comum não apenas com figuras ultranacionalistas e conservadoras italianas, mas também com figuras reacionárias estrangeiras; além de ter manifestado abertamente sua admiração por Mussolini e Donald Trump.
Para Francesca Staiano, professora universitária e pesquisadora italiana que viveu sete anos na Argentina e professora de Relações Internacionais entre China-América Latina e China-Europa, são muitos os fatores que explicam sua popularidade. Ela ressalta que Giorgia tem a característica de ser uma cara nova e jovem e que, embora tenha feito parte do governo Berlusconi, sua imagem está menos “queimada” do que a de Salvini, que tem um estilo retórico muito mais explosivo.
Que leitura faz da vitória eleitoral de Meloni?
Francesca Staiano: Como dado não menos importante, apenas 50% da população participou das eleições. Já metade não compareceu para votar, o que nos diz que as pessoas não acreditam mais no sistema político de representação. Por outro lado, é um voto de descontentamento. Houve uma forte desilusão com o movimento Cinco Estrelas, que anteriormente canalizou os interesses daqueles que rejeitavam o establishment político. Este espaço teve uma forte queda de popularidade porque no final teve que, obviamente, se alinhar com o sistema. Em síntese podemos dizer, por um lado, que houve 50% de abstenção de pessoas desesperadas, também uma busca de setores indecisos e uma retórica que apontava para “a barriga”, como se diz aqui, e uma total incapacidade da esquerda poder fazer alianças.
Como o novo status de Meloni como primeira-ministra pode ameaçar a comunidade LGBTIQ, os migrantes e a expansão dos direitos feministas?
Francesca Staiano: Em termos de direitos humanos, já estão em risco a começar pelo empobrecimento da população, especialmente no sul da Itália, onde as disparidades sociais são enormes e a máfia opera como um governo paralelo. Em relação aos migrantes, Salvini já disse que vai fechar novamente os portos, ignorando os regulamentos de Dublin que regulam esta matéria. Agora isso vai recrudescer. Por outro lado, já se fala que querem dar um salto de cem anos porque na Itália querem abolir o aborto livre e gratuito, o que já é muito difícil de implementar porque há muitos objetores de consciência. No que diz respeito à comunidade LGBTIQ, a mídia está espalhando a narrativa de que eles são quase uma seita, então se fala de fascismo LGBTIQ, o que é algo completamente absurdo.
Os feminismos, os movimentos antirracistas e ambientalistas estão, mais uma vez, na mira. Qual é o desafio desses ativismos para se aliar em uma frente comum transversal que possa funcionar como agente de choque que tensione as subjetividades “libertárias”? Sonia Corrêa propõe tornar essas questões mais complexas.
De que forma pensa que os feminismos podem se posicionar como uma voz que instale novas imaginações políticas fora dos discursos de ódio das figuras neoliberais?
Sonia Corrêa: Eu quero desconstruir sua pergunta começando pela questão dos “discursos de ódio” e “figuras”. Sempre houve discursos de ódio e sempre houve figuras extremas. O problema é que estamos vivendo outro contexto, onde esses discursos são propagados e utilizados pelas forças sociais e políticas, configurando um contexto de neofascismo; que não é exatamente o mesmo que o fascismo histórico da década de 1930, mas que tem muitos preconceitos semelhantes. E o traço comum mais importante é o desprezo pela democracia, pela igualdade e pelo recurso sistemático e legitimado da violência política.
Para Sonia, estamos “diante de uma mudança sistêmica na ordem política que reconfigura o Estado e a sociedade”. “Estamos diante de um desafio, de uma ameaça de natureza estrutural. Os feminismos e os movimentos LGBTIQ+ não têm o poder e a capacidade de responder sozinhos a essas ameaças. Além disso, a capacidade de mobilização é extremamente variável em diferentes partes do mundo”, ressalta. Nesse sentido, “mesmo em contextos onde os feminismos são muito fortes, eles nunca serão capazes de conter sozinho essa virada sistêmica à direita”.
Qual é a estratégia a seguir?
Sonia Corrêa: Construir justamente coalizões em diálogo com todas as forças que defendem a democracia, mesmo com as quais possamos ter divergências. Isso é muito difícil. Mas já estamos vendo como esses movimentos estão sendo desafiados a agir juntos como uma força de choque contra a direita radical.
O bom senso tem alguém para enfrentá-lo. “Um desafio é continuar tecendo as lutas que surgem a partir da leitura da conexão entre as violências que afetam as vidas”, diz Verónica Gago. “Quando os feminismos se encarregam de discutir e atuar sobre o problema da moradia e da justiça, da propriedade da terra e dos direitos trabalhistas, das formas de violência contra a infância e o endividamento familiar, eles têm a possibilidade de contestar tanto o sentido reativo que a precariedade ganha como as formas fascistas de estabilização da crise que se pretende impor”, conclui.
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Feminismos versus autoritarismos. Maneiras de enfrentar a internacional neofascista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU