“Em um mundo em que as condições da verdade foram destruídas, não somente prevalecem as mentiras, mas também a impossibilidade de confiar e a ausência de qualquer lógica e coerência. Nos laços humanos, então, a cooperação também acaba sendo abolida, e não apenas porque se entroniza o egoísmo, mas porque a perturbação dos nexos argumentativos é transmitida por todas as veias da intersubjetividade”. A reflexão é de Sebastián Plut, doutor em Psicologia e psicanalista, em artigo publicado por Página/12, 15-09-2022. A tradução é do Cepat.
“Eu creio que ele creu que ali eu cresse.” (Dante Alighieri, A Divina Comédia)
Quem crê no amor de Jesus e vai à missa, reza pelos seus mortos, confia em São Caetano, lê Santo Agostinho, ama o próximo como a si mesmo, não é irracional. Aquele que estuda o Talmud, segue os princípios da Torá ou se inspira na gesta mosaica também não é irracional. Nessas e em muitas outras práticas e costumes convergem desejos e tradições, saberes, crenças e afetos. Há aquela outra pessoa que se emociona com a voz de Gardel e depois afirma que “a cada dia canta melhor”, ou aquele que evoca a frase “Voltarei e serei milhões” e, então, sente que faz parte de um legado coletivo. Essas pessoas também não são irracionais.
Irracional, então, não é a ausência de um silogismo, nem a falta de uma validação científica. Irracional é a inconsistência, a perda de coerência quando os nexos que ligam duas ou mais declarações e comportamentos são quebrados. Irracional é quem denuncia a suposta violência do outro e diz: “vamos te matar”.
Em um mundo em que as condições da verdade foram destruídas, não somente prevalecem as mentiras, mas também a impossibilidade de confiar e a ausência de qualquer lógica e coerência. Nos laços humanos, então, a cooperação também acaba sendo abolida, e não apenas porque se entroniza o egoísmo, mas porque a perturbação dos nexos argumentativos é transmitida por todas as veias da intersubjetividade.
Concordemos, por um momento, em que determinada pessoa não acreditou no ataque contra a Cristina Kirchner (CFK). De novo, quando a Terra estiver inundada de notícias falsas, não será fácil acreditar. Suponhamos que um interlocutor lhe apresente bons motivos para dar crédito ao fato e, consequentemente, à sua gravidade. Agora, quem antes imaginava uma cena montada, responde que pode ser verdade, mas também que é verdade que ela fez por merecer. Também dirá que, seja o acontecimento verdadeiro ou falso, CFK o usa para se vitimizar. O interlocutor, com alguma angústia e indignação, lhe dirá que por mais raiva que alguém provoque no outro, nunca se deve atentar contra a sua vida. Por fim, quem primeiro negou e depois justificou, após conjecturar que talvez fosse um “louquinho solto”, numa tentativa de fátua equanimidade dirá que “nenhuma violência é boa”.
Esta conversa, que o autor desta nota presenciou, é inquietante, e não porque cada pessoa tenha ideias diferentes, e nem mesmo porque alguém acredita no que não é ou não acredita no que é, mas porque se perdeu a racionalidade. Nesse caso, todos os argumentos (verdadeiros, falsos e contraditórios) têm o mesmo valor. Que tenham o mesmo valor significa que não geram o desprazer próprio de uma contradição, que não permitem uma conclusão e que a realidade já não tem mais importância.
Cristina Kirchner controla o judiciário, embora também queira reformá-lo e, por sua vez, quer travar uma batalha contra esse poder porque acredita que ele a está subjugando. Não pode ser tudo isso ao mesmo tempo. Ou está propondo um confronto entre poderes, ou quer modificá-lo ou controlá-lo. Essa tripla “acusação” nos lembrar de quando na Alemanha nazista se dizia que os judeus eram capitalistas ricos que administravam o poder econômico mundial, e também que eram comunistas que queriam destruir o capitalismo.
Quando discutimos a resolução 125, a lei dos meios de comunicação ou a interrupção voluntária da gravidez, o fizemos com contundência, com paixão, e talvez não faltou quem dissesse alguma frase ofensiva. No entanto, em todos esses casos, os setores sociais que expressavam uma ou outra corrente de ideias eram regulados por duas condições, e sua hostilidade era então limitada: por um lado, havia uma discussão que circulava entre representantes e representados; por outro, havia um debate sobre um objeto político em questão. De fato, a política, como pensamento/ação, pode ser entendida como a negação de uma violência subjacente. Irracional, então, é subtrair o objeto político da discussão política. É o que acontece quando uma força política vê no seu adversário somente um criminoso e, mais ainda, quando se propõe a eliminá-lo.
Não é fácil encontrar os caminhos e critérios para recuperar a racionalidade. Também não é fácil discernir quais são os resultados possíveis no sujeito que sobrepôs argumentos sem perceber sua inconsistência. No entanto, alguma experiência nos mostrou que muitas vezes quem acreditou em uma mentira, ao descobrir a verdade, não necessariamente se emenda. E da mesma forma, quem acreditou em uma mentira por ódio, quando a verdade lhe é revelada, não apenas não muda de opinião, como também não diminui sua hostilidade. Aqui podem ser consideradas razões de vários tipos, como a falta de honestidade intelectual ou mesmo a dificuldade atual de dar razão a um adversário político.
No entanto, há também razões de economia psíquica. Quem nega a realidade também a odeia e, portanto, não é simplesmente um ingênuo. Tem motivos profundos que se aninham em sua subjetividade. Este sujeito não dirá que errou, ele não poderá fazer isso, mas será levado a pedir novos “argumentos” que lhe permitam continuar a negar a realidade. Desta forma, o ódio não poderá diminuir; pelo contrário, deverá aumentar e, por sua vez, os argumentos se amontoarão independentemente da adequação destes entre si e destes com os fatos.
O fato de que o voto seja emocional não significa necessariamente que seja irracional. Também não significa que as motivações afetivas constituem argumentos superficiais. Com efeito, nas decisões dos eleitores misturam-se tradições de diversos tipos (familiares, de vizinhança, etc.) com laços libidinais do âmbito da ternura e, em todo esse magma, juntam-se argumentos conscientes e determinações inconscientes. O afeto, no caso do amor, é inteiramente compatível com argumentos consistentes que estabelecem uma ponte definitiva com um conjunto de realidades.
Em suma, sustentar que o voto é emocional significa considerar a forma como cada um combina seus desejos, seus valores e ideais, e seus projetos de transformação da realidade. Claro, tudo isso inclui a hostilidade, no âmbito da localização de determinados adversários e conflitos de interesses, o que leva a alianças e rivalidades de diversos tipos. Como observado, a função da referida hostilidade limita-se ao confronto e nunca à eliminação de quem pensa diferente.
No entanto, a emotividade do voto pode descambar na irracionalidade, quando o ódio já destruiu a lógica da argumentação e qualquer possibilidade de encontrar um traço de afinidade com outro diferente.
Em estreita comunhão com a irracionalidade está a banalização. Ambas, pois, compartilham aquela característica peculiar pela qual um sujeito pode expressar ideias que não o representam, ou seja, sentenças que não contêm um sedimento genuíno. Christophe Dejours argumentou que antes de lutar contra a injustiça, é preciso combater a banalização. Ele propôs isso há quase 20 anos e previu a catástrofe que o neoliberalismo representava; ele antecipou e descreveu como ninguém a tragédia humana que o neoliberalismo trazia em suas entranhas. Detectou com enorme precisão a brutal injustiça que permanece criptografada na banalização.
Por meio da banalização, o macrismo tornou legítimo que o racismo possa se expressar publicamente sem a menor modéstia. Legitimou que o racismo fosse naturalizado como se dizer qualquer brutalidade fosse um exercício de liberdade de expressão.
Quando CFK publicou seu livro Sinceramente, ouvimos insultos de toda ordem (como diante de qualquer coisa que ela diga ou faça). Jornalistas que criticaram o livro ao mesmo tempo que reconheceram não tê-lo lido. Outros que, com o mesmo nível, deduziram que ela não poderia tê-lo escrito porque o comprimento das suas unhas a impedia de digitar. Dizer essas banalizações constantemente não é estranho ao racismo legitimado.
Um amigo de Sabag Montiel [autor do atentado contra CFK] afirmou que se ele a tivesse matado pelo menos haveria menos impostos. Ou, outro amigo esclareceu que Sabag Montiel não tinha ideias políticas, mas “simplesmente odiava os judeus”. Foi mais do que chamativo que nenhum dos jornalistas que estavam no plenário reprovasse o que estava dizendo ou, pelo menos, questionasse, por exemplo, o advérbio “simplesmente”. As expressões de ódio sempre provocam enormes danos, mas quando vão se naturalizando, o resultado é uma tragédia irreparável.
Há uma infindável discussão sobre a veracidade do lema “o amor vence o ódio”. Diremos, então, que a frase não quer dizer que o bem sempre triunfa. Significa apenas que o amor, a tendência à união, é o único recurso que pode enfrentar o ódio, embora nem sempre o vença. Não se trata de uma romantização simplista, mas do valor de promover identificações recíprocas em que o afeto e o pensamento se contrapõem, sempre de maneira insuficiente, à irracionalidade.