22 Junho 2019
Convidado a Buenos Aires pela Editora Topía e a Associação Gremial Docente da Universidade de Buenos Aires (AGD-UBA, que faz parte da Conadu Histórica), o psicanalista francês, especialista no mundo do trabalho, Cristophe Dejours, falou sobre o sofrimento e a sublimação no trabalho e sobre como na fase atual do capitalismo aparecem novas doenças psicológicas que têm a ver com a perda de cooperação, solidariedade e trabalho coletivo.
A entrevista é de Ines Hayes, publicada por Clarín-Revista Ñ, 20-06-2019. A tradução é do Cepat.
Você disse que não há trabalho sem sofrimento, mas também fala da sublimação. Poderia explicar os dois conceitos?
Todo trabalho está organizado por um conjunto de prescrições, o que chamamos de organização prescrita do trabalho. Mas, já faz uns 50 anos que se demonstrou que os trabalhadores nunca executam exatamente as prescrições ao pé da letra, porque se acontecesse de os trabalhadores executarem estritamente as ordens, não seria possível sair qualquer produção. Inclusive no exército, se os homens unicamente se contentam em obedecer, e isso que o exército é uma organização muito disciplinada e muito autoritária, é um exército que está vencido, porque também aí é preciso interpretar as ordens.
Por que existe essa defasagem entre a organização do trabalho prescritivo e a organização efetiva do trabalho?
Porque sempre ocorrem incidentes, disfunções, bloqueios, que não foram previstos. Então, as pessoas que trabalham se veem confrontadas com estes imprevistos, que na teoria conceitualmente se chama “o real do trabalho”. E mesmo se os organizadores fizessem um excelente trabalho de organização e planejamento, sempre ocorreriam incidentes e são incidentes que são muito penosos.
Por exemplo, se é injetada uma medicação em algum paciente, de acordo com um protocolo perfeitamente homologado, mas o paciente sofre uma crise, há um choque, não é nada divertido, nada agradável. Todo trabalho está exposto a este tipo de problema. Então, o confronto com o real sempre é experimentado como um confronto possível com o fracasso, é vivido como um sofrimento.
O problema para os trabalhadores não é somente sobrelevar esses incidentes, essas disfunções, mas é buscar se antecipar a eles, tentar prevê-los e para isso é necessário desenvolver uma inteligência que é muito particular, a partir da qual se reconfigura a organização do trabalho prescrito. E é aqui que se abre todo o panorama do campo da inteligência do trabalho, que é uma inteligência que está fora das prescrições e que depende de cada pessoa.
Como se trabalha para isso?
Para poder ter estes saberes, esse know how (saber como), é preciso saber aceitar, se sentir invadido por esse trabalho. E é nesse tempo que se descobre ajudas, astúcias, pequenas manhas, que não são simplesmente maneiras de saber fazer, mas, ao contrário, supõem a aquisição de novas habilidades. Ou seja, há um primeiro tempo do trabalho, que é trabalho de produção na confrontação com o real. Mas, para poder ter um trabalho de qualidade, é preciso um segundo trabalho que está fora do primeiro, e que agora está no trabalho de si mesmo, sobre si mesmo.
As novas habilidades são formas de inteligência que não existiam antes do trabalho. Graças ao trabalho, então, eu não somente produzo, como também estou me transformando e quando descubro essas habilidades, não é uma vitória somente sobre mim, mas é também um desenvolvimento em mim mesmo, um novo registro de sensibilidades que antes não existiam.
No entanto, algumas vezes, é impossível conseguir aquilo e quase sempre isto se deve ao tipo de organização do trabalho em si mesmo. Na atualidade, sob as novas formas de organização do trabalho, foram introduzidos dispositivos de controle do trabalho que mudaram completamente o modo anterior, que hoje se chama a Governança pelos Números.
A falta de cooperação e de solidariedade nestas novas formas de trabalho faz com que os trabalhadores adoeçam, inclusive de doenças psicológicas antes desconhecidas.
Nesta Governança dos Números, pelos números, sempre se privilegia o rendimento quantitativo, chegando inclusive a que se deteriore o crescimento qualitativo, e é por isso que muitas profissões e ofícios, inclusive nas profissões mais qualificadas e prestigiosas, os profissionais já não podem trabalhar de maneira conveniente, porque sempre é necessário produzir mais rápido e poder oferecer indicadores de rendimento que sejam quantitativos. Então, os juízes começam a julgar muito rápido e dão sentenças que não estão devidamente justificadas ou detalhadas. Para dizer de outra maneira, buscam fazer rápido o seu trabalho e, de alguma maneira, os arruína. Por exemplo, o cirurgião que trabalha muito rápido, exerce uma brutalidade sobre o corpo do paciente para poder ter rendimento e alcançar números. E, então, aqui, novamente se arruínam as bases da sublimação, que é isso pelo qual se transforma o sofrimento do trabalho em prazer.
Estas novas formas de organização efetivamente rompem a formação dos coletivos, sobretudo as avaliações individuais de rendimento, da performance, que colocam em concorrência os trabalhadores entre eles e essa avaliação, ao mesmo tempo, funciona como uma ameaça, porque se minha avaliação foi pior que a de meu vizinho, me vejo ameaçado com uma demissão ou um rebaixamento.
É a nova forma de concorrência?
Sim, é uma nova forma de concorrência. Essa avaliação individual se tornou possível através das tecnologias dos computadores, do mundo informático. É algo muito poderoso: tudo o que eu faço está sendo gravado, e o que não faço, também. Todos os meus erros estão sendo gravados e isso antes não existia. É mais poderoso que ter um capataz na obra, porque sempre é possível voltar a encontrar o que fiz, assim como o que não fiz. Isto, que leva o nome de rastreabilidade, é mais uma ameaça.
Antes, em uma equipe, se trabalhava de forma conjunta. Quando havia um prêmio, uma distinção, era alguém que conquistava essa distinção, mas era toda a equipe que se sentia poderosa: isso acabou. Se a minha vizinha vai muito bem, é ruim para mim, então, me convém que ela não vá bem, que não tenha êxito. E se pede ajuda, vou lhe dar uma maçã podre. E quanto mais se sobe na hierarquia, isto se torna mais verdadeiro. Os altos cargos nos bancos estão o tempo todo se vigiando, porque os colegas são os principais inimigos. Então, desaparecem os coletivos, a cooperação e as pessoas se encontram em uma relação de desconfiança e desolação.
E isso não afeta a produção?
Sim, afeta de maneira muito importante a produção. Na realidade, o que ocorre é que há uma perda da qualidade da produção. Mas, os patrões de hoje estão dispostos a perder em qualidade, e há muitos exemplos disso, se em contrapartida podem aumentar seu poder de dominação. Isso é uma guinada, um desvio que estamos experimentando nos últimos anos. O patrão não quer que haja atos solidários e então rompe e destrói esses âmbitos, esses nichos. É algo que se vê muito na França, acredito que deve ser o mesmo aqui, como também vi no Brasil, onde pude fazer uma pesquisa, e globalmente há uma degradação dos serviços de cuidado, por exemplo, nos hospitais, na qualidade de ensino nas escolas, no funcionamento das universidades e, então, vemos que em muitos lugares existe uma deterioração da qualidade do trabalho, mas o poder dos postos diretivos aumenta.
É uma nova forma de capitalismo, mas que na realidade joga contra si.
Este tipo de capitalismo destrói muitas empresas, mas os ricos continuam se enriquecendo. As multinacionais hoje têm mais poder que os Estados, então é um capitalismo particular, para o qual o crescimento das riquezas nacionais, o bem comum e a organização da sociedade não interessa mais. É um capitalismo extremamente duro, onde a qualidade da produção diminui, a população se empobrece cada vez mais, mas eles, sim, podem captar riquezas, e o resultado é catastrófico.
Na França, por exemplo, há uma pobreza que nunca antes se havia conhecido: de uma população de 60 milhões de habitantes, há nove milhões de pobres que estão abaixo da linha da pobreza, quando na realidade é um país extremamente rico. Há uma destruição da sociedade civil.
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Produzir mais e mais rápido. Entrevista com Cristophe Dejours - Instituto Humanitas Unisinos - IHU