05 Setembro 2013
"É um insulto fazer propaganda, como vem fazendo o governo federal, afirmando que "Melhorar sua saúde é nosso compromisso", querendo associar o "Programa mais médicos". Nada tenho contra este tipo de programa, mas não resisto a cotejá-lo com o enfrentamento do morticínio no trânsito e no tráfego", escreve Carlos Lessa, professor emérito de economia e ex-reitor da UFRJ, em artigo publicado no jornal Valor, 04-09-2013.
Eis o artigo.
De forma desatenta, foi autorizada a ocupação de um antigo depósito de lixo em Niterói (RJ); as chuvas provocaram um deslizamento com dezenas de mortes. As mesmas chuvas, em Nova Friburgo (RJ), causaram centenas de tragédias; foram amplamente noticiadas pela mídia brasileira e repercutiram fora do Brasil. O desastre da boate Kiss, em Santa Maria (RS), ocupou - e ainda ocupa - posição de destaque nos meios de comunicação. No centro do Rio, próximo ao Theatro Municipal, caiu um edifício que abalou seus vizinhos e fez cair marquises ("felizmente", o desastre aconteceu fora do horário comercial). Há menos de uma semana, um prédio em construção em São Paulo, burlando as normas de edificação, caiu matando e ferindo pessoas... Nesses casos trágicos, a mídia faz cobertura minuciosa e leva ao conhecimento nacional o acontecido.
Em 2012, morreram 60.752 brasileiros por acidentes em trânsito intraurbano e tráfego interurbano; converteram-se em inválidos permanentes 352.495 pessoas. Observa-se que 40% dos acidentes com mortes e 74% daqueles que causaram invalidez envolviam o uso de motocicleta. Infelizmente, o Brasil tem a 5ª maior taxa de mortes no trânsito e ocuparia o duvidoso 1º lugar nesse índice de catástrofe. Conheço de longa data as informações do Datasus divulgadas pelo Ministério das Cidades, e sempre me perguntei porque isso não era manchete e objeto de indignação e denúncia. Não vi nenhum cartaz nas manifestações que assumisse essa terrível dimensão. Os 16 anos de guerra no Vietnã produziram um total de mortes americanas inferior a esta chacina brasileira, em 2012. Pela primeira vez, vi a mídia (Veja de 7/8/2013) dar capa à matéria denominada "Assassinos ao volante" (poderia ser "Vietnã Nacional"). A pesquisa feita pelo órgão da mídia lançou mão dos pedidos de indenização ao DPVAT (seguro obrigatório de veículos) e verificou que, infelizmente, os números são muito piores que os péssimos números que se conhecia; talvez a capa fosse mais direta com a manchete "O Brasil tem, a cada ano, uma guerra mais letal que as mortes americanas no Vietnã".
É terrível o crescimento das mortes em veículos de duas rodas (motos e bicicletas). Foram 65% das disfunções de 2012. Nos últimos anos, a moto -e principalmente a de segunda mão - deslocou o cavalo e o jegue como transporte individual na zona rural. É explosiva a evolução das tragédias no interior brasileiro. Fiz minha pesquisa pessoal com todos os trabalhadores de duas fazendas no Vale das Videiras (RJ): todos já tinham sofrido acidentes em moto ou já haviam perdido um parente ou amigo em acidente rodoviário ou no campo. O Vale das Videiras fica a uma hora e meia do centro do Rio. Toda a informação sinaliza que morrem mais jovens e tragicamente mais crianças com menos de 7 anos transportadas em garupa de máquinas de duas rodas.
Qualquer antropólogo mostra que o sonho de consumo de propriedade e utilização de veículo automotor faz da motocicleta a primeira etapa na mobilidade motorizada para a família pobre. Os estudos atuariais mostram que, na Grande São Paulo, as tarifas de seguro de automóveis são maiores para os residentes na periferia, para os solteiros e para os mais jovens. Mas não vou falar de custos. A vida humana e a não-invalidez é um absoluto.
No Brasil, há seis vezes mais acidentes por veículo motorizado do que no Japão. Países como Austrália e China vem melhorando seu desempenho, enquanto no Brasil tem sido cada vez maior o risco individual de acidente com veículo automotor. Nas metrópoles, as pessoas têm medo de bala perdida, porém não falam do massacre automotor! Consideram um risco "normal" circular nas cidades e nas estradas brasileiras, ou seja, com dimensão psicossocial, o brasileiro considera "natural" morrer no tráfego ou no trânsito. Assim sendo, a mídia, o debate público e sequer as manifestações de rua falam desse fenômeno. É um insulto fazer propaganda, como vem fazendo o governo federal, afirmando que "Melhorar sua saúde é nosso compromisso", querendo associar o "Programa mais médicos". Nada tenho contra este tipo de programa, mas não resisto a cotejá-lo com o enfrentamento do morticínio no trânsito e no tráfego.
Se a proporção de mortes e mutilações por veículo automotor no Brasil caísse à metade do índice japonês, deixariam de falecer 30 mil brasileiros e haveria menos 175 mil inválidos, por ano. Obviamente, teríamos uma redução de dias/leito de hospitalização. Tenho a informação de que cada acidentado ocupa em média nove dias/leito. Se esta informação estiver correta, teríamos, por ano, mais 1.575 mil dias/leito disponíveis. O efeito seria espetacular, pois acabaria a tragédia da falta de medicina de emergência.
A explicação do massacre brasileiro percorre desde os buracos de estrada ao ínfimo investimento em melhoria de infraestrutura urbana e metropolitana até a pouco prioritária política de favorecimento da logística rodoviária em detrimento da ferroviária e hidroviária; fazer a venda financiada (com juros leoninos) de veículos automotores em detrimento da construção civil. Falta de educação para o trânsito, escassez de policiamento rodoviário, excessiva liberalidade na concessão de licença de direção, má sinalização urbana, dramática insuficiência de transporte metropolitanos sobre trilhos são dimensões trágicas ainda sem discussão.
Quero sublinhar que a vida humana e sua qualidade deveria ser pauta permanente da mídia, da preocupação pública e do debate político-institucional.
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A banalização da tragédia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU