Por: André | 08 Junho 2015
Segundo Antonio Gramsci, o poder é um centauro: metade coerção, metade legitimidade. O Estado mantém sua dominação por meio do consenso dos dominados. E apenas aí onde não se consegue o consenso, recorre-se à repressão. O poder, portanto, não é apenas uma questão de força, mas sobretudo de hegemonia: persuasão, convencimento, crença, sedução. Neste enfoque, a luta ideológica torna-se fundamental: deslegitimar a explicação dominante do mundo, provocar seu descrédito, propor uma nova explicação.
Fonte: http://bit.ly/1EfF6BQ |
Hegemonia é, hoje, um conceito em moda no debate político contemporâneo. Na Espanha irrompeu graças ao grupo fundador e dirigente do Podemos. A luta ideológica desenvolve-se agora nos platôs da televisão, onde se produz a opinião pública. Trata-se de arruinar a legitimidade do relato que protegia o regime de 1978 e oferecer uma nova explicação e um novo pacto social capaz de ganhar o consenso da “maioria social”.
Jon Beasley-Murray (foto) dedicou um longo trabalho de pesquisa, que culminou no seu livro Pós-hegemonia [Posthegemony: Political Theory and Latin America. University of Minnesota Press, 2010], a questionar uma visão da ordem social nascida do entendimento “discursivista” da hegemonia, com base na capacidade de articular o ato comunicativo por parte dos intelectuais. E não apenas isso. A partir de uma abordagem cuidadosa dos movimentos políticos latino-americanos do século XX (peronismo, os movimentos de libertação nacional e as guerrilhas, etc.), Pós-hegemonia também propõe uma outra leitura daquilo que faz e desfaz a ordem das coisas, daquilo que sustenta a dominação e que incentiva a revolta, tornando-se este livro um contributo essencial para a discussão teórica que acompanha a luta contra o neoliberalismo.
A entrevista é de Amador Fernández-Savater e publicada por El Diário, 20-05-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Pablo Iglesias dizia outro dia, em um programa de La Tuerka dedicado ao Podemos e ao populismo, que “a ideologia é o principal campo de batalha política”. Você, no entanto, vê isso de maneira bem diferente...
Sim. Parece-me que essa ideia (de que “a ideologia é o principal campo de batalha”) implica em que a tarefa mais urgente é a de educar as pessoas, mostrar-lhes que as coisas não são como aparecem. Por isso, os projetos de hegemonia são sempre essencialmente projetos pedagógicos e a teoria da hegemonia outorga muitíssima importância e centralidade aos intelectuais (algo muito visível no Podemos). É um erro histórico da esquerda ocidental.
Além da condescendência implícita, esta atitude pressupõe que o que no fundo conta é a opinião e o saber. E eu estou mais de acordo com o que diz Slavoj Zizek: em geral, as pessoas já sabem, sabem que o trabalho é uma escravidão, sabem que os políticos são mentirosos e os banqueiros uns ladrões, que o dinheiro é uma merda e os ricos não são ricos por uma virtude própria, que a democracia liberal é uma fraude e que o Estado reprime mais do que liberta, etc. Tudo isso faz parte do senso comum atual. E mesmo assim, cinicamente, agimos como se estas ficções fossem verdadeiras.
O cinismo atual pode ter quebrado com uma complacência e credulidade prévia, mas as coisas seguem mais ou menos iguais. O que sugere que a “luta ideológica” não só não tem a centralidade que tinha antes, mas que na realidade nunca teve. A luta pela hegemonia sempre funcionou como uma distração ou uma cortina de fumaça que obscurecia poderes e lutas mais fundamentais.
Mas no livro não há apenas uma crítica desta ideia de hegemonia, mas também a exposição de outra maneira de entender os processos políticos e vitais.
Sim, no livro procuro esboçar outra teoria para explicar, por um lado, a razão da ordem social, ou seja, por que as pessoas não se rebelam quando mais esperamos que se rebelem. É uma pergunta básica da teoria política, desde Étienne de la Boétie até Gilles Deleuze, passando por Spinoza ou Wilhelm Reich: por que as massas desejam sua própria servidão e repressão?
E, por outro lado, tento pensar também o outro lado da moeda: por que as pessoas se rebelam em um ponto no qual já não aguentam mais. Minha resposta é que a política não tem tanto a ver com a ideologia, como com a disposição dos corpos, sua organização e potências. Para entender isto, proponho os conceitos de afeto, hábito e multidão.
Uma política dos corpos
Poderia explicá-los brevemente?
Um afeto é o índice da potência de um corpo e do encontro entre corpos. Quanto mais potência um corpo tem, mas afetividade tem, ou seja, mais capacidade para afetar e ser afetado. Ao mesmo tempo, os encontros entre corpos podem ser divididos em encontros bons e ruins: os bons são aqueles que aumentam a potência de um corpo e se caracterizam pela produção de afetos positivos (como a alegria); os ruins são aqueles que diminuem a potência do corpo e se distinguem pela presença de afetos negativos (como a tristeza). Aqui sigo Spinoza e os neo-spinozianos, como Deleuze e Brian Massumi. Deleuze faz uma distinção importante entre afeto e emoção: enquanto que o sentimento é privado e pessoal, o afeto é uma intensidade impessoal, coletiva.
Em segundo lugar, o hábito é um conceito que tomo de Pierre Bourdieu. Podemos pensar os hábitos como “afetos congelados”. São os encontros cotidianos, rotineiros, dos corpos, sobre os quais nem sequer pensamos a maior parte do tempo, a ponto de que são quase completamente inconscientes. São disposições corporais e inconscientes. Mas, apesar ou talvez graças a isso, os hábitos têm suas próprias potências. E podemos diferenciar também entre hábitos bons (por exemplo, aqueles que ajudam a constituir o comum, a comunidade) e hábitos ruins (aqueles autodestrutivos, que nos tiram potências).
Por último, penso a multidão (com Antonio Negri) como o afeto em ação. Uma rede de corpos em conexão.
E que consequências políticas derivam do fato de colocar os afetos e os hábitos no centro de atenção?
Em termos abstratos, mas ao mesmo tempo muito concretos e materiais, creio que devemos pensar na política não tanto como a missão de educar os outros e explicar-lhes como são as coisas, mas como a arte de facilitar encontros e formar hábitos que construam corpos coletivos mais fortes (multidões). A arte de construir outras formas de sincronizar e orquestrar corpos e ritmos; outras lógicas práticas e encarnadas. Não nos conformamos com o capitalismo porque somos convencidos por uma trama ideológica super coerente e persuasiva, mas pelos afetos e hábitos (como o consumo, etc.).
Parece-me que, diante de certa “espiritualização” da política, fruto de uma teoria da hegemonia de base muito discursiva, como afirmam Verónica Gago, Diego Sztulwark e Diego Picotto, você volta a situar o corpo no centro das preocupações com a transformação social. É isso? Um materialismo dos corpos diante de um idealismo dos significantes.
Sim, mas devo esclarecer que por “corpo” não quero dizer (simplesmente) o corpo humano e individual. Um corpo pode ser uma parte do corpo humano (mão, punho, orelha, língua), uma combinação de corpos humanos (grupo, família, partido, multidão), algo absolutamente não humano (pedra, raposa, tesouras, floresta) e/ou alguma combinação de humano e não humano (empresa, trem, dispositivo).
Mas o corpo humano não é algo limpo e puro. É educado, danificado... O racismo, por exemplo, poderíamos pensá-lo como um afeto? Nesse caso, não se trata de uma luta entre os afetos e o poder, mas de bons e maus afetos. Como distingui-los?
Como as almas, só os corpos platônicos são limpos e puros... e isso por não serem corpos reais, mas ideais. Além disso, todo corpo está “danificado” no sentido de que está aberto ao seu entorno, não tem limites fixos nem bordas duras: sua pele sempre pode ser atravessada, sempre há a possibilidade da dissolução, de perder uma parte... Este é o outro lado da grande potência que os corpos têm: a abertura sempre pode mostrar-se ou ser sentida como ferida, chaga, amputação.
Evidentemente, o racismo tem a ver com os afetos e os hábitos, mais ainda com os afetos e os hábitos dos liberais bem pensantes. Por isso, no livro enfatizo que nenhum destes termos tem um valor pré-estabelecido, mas que são todos ambivalentes. Não se deve celebrar o afeto (contra o sentimento) ou o hábito (contra a opinião), nem celebrar a multidão (contra o povo). Existem afetos, hábitos e – também, apesar de Negri – multidões ruins, que nos prejudicam, que diminuem a nossa potência. A alternativa nunca consiste em buscar a limpeza nem a pureza, porque as propriedades que nos abrem aos outros são as mesmas que nos permitem prejudicar-nos; porque as propriedades que possibilitam a construção de formas cooperativas de viver juntos são as mesmas que nos permitem ferir os outros.
Nas mobilizações recentes na Espanha (15M, “mareas”, etc.), os afetos foram um motor muito importante: a indignação, por exemplo, ou a alegria de estar juntos nas ruas. Mas costuma-se dizer que esse motor “não dura muito”, que se necessita de outra coisa, algo menos errático e inconstante, um solo firme, etc. Está de acordo? Como essas politizações existenciais podem manter-se no tempo e não simplesmente ser discursivas ou ideológicas?
Penso que tudo começa pelo afeto: pelo que se sente. John Holloway afirma que “tudo começa pelo grito”. Mas de igual importância é a construção de hábitos. Ou, melhor dito, porque sempre há hábitos, a substituição de uns por outros. Um afeto como a indignação pode ajudar na tarefa de, primeiro, identificar e, segundo, romper com os hábitos ruins, aqueles que tendem a diminuir a potência dos corpos singulares e coletivos. Mas, o desafio é construir novos hábitos, novas formas estáveis do comum e da comunidade. Não tanto um “solo firme”, como modos e ferramentas de convivência, como diria Ivan Illich.
Ou seja, a primeira coisa é a linha de fuga, o momento em que rechaçamos um sistema que já não é suportável nem tolerável. Mas a linha de fuga é ambivalente: pode ser uma linha de construção ou seguir uma tendência autodestrutiva. Nunca se sabe de antemão. Tudo é questão de experimentação, e o grande valor do que aconteceu na Espanha (mas também na Grécia e em muitos lugares da América Latina) é que se constituíram laboratórios políticos de enorme potência, vitalidade e diversidade. Nem sempre tiveram bons resultados (penso na deriva da “primavera árabe”), mas representaram uma verdadeira reinvenção de práticas e possibilidades políticas, sociais, culturais.
Crítica de Laclau e da razão populista
Aproveitando a quebra/deslocamento do sentido comum gerado pelo clima das praças 15M, na Espanha aparece em certo momento o Podemos com a intenção de conquistar a opinião pública, os votos e o poder institucional. A cúpula dirigente fala neste sentido de “operação hegemônica” e prefere as teorias de Ernesto Laclau, o grande pensador do populismo, que lhe servem de referência. No seu livro, você é crítico de Laclau. Por quê? Que tipo de política a “razão populista” organiza?
A razão de ser do populismo é precisamente construir um povo. Embora as teorias liberais projetem o povo como antecedente, fonte e origem da política, Ernesto Laclau reconhece que o povo não está dado, mas é algo que deve ser construído. Como? Enlaçando as demandas insatisfeitas (“cadeia de equivalências”) em torno de um “significante vazio” (que costuma ser o nome de um líder, como Perón) com vistas à conquista do Estado. Mas creio que se trata de uma versão muito restrita da política, que nega muitas outras alternativas existentes, na minha opinião mais interessantes.
Minha crítica a Laclau é, muito resumidamente, que 1) reduz os movimentos a “demandas” que se dirigem ao Estado, em vez de ver neles instâncias criadoras de novas realidades, valores e relações; 2) que faz da relação entre povo e Estado a relação fundamental de toda luta política, reificando e fetichizando assim uma instância transcendente e separada de poder como é o Estado, que na minha opinião é uma prega e uma limitação do poder constituinte da multidão; e que 3) coloca no centro o nacional, quando o desafio político mais interessante (esboçado pelos movimentos das praças) seria inventar uma nova articulação entre os diferentes níveis da vida terrestre (a especificidade da praça e o bairro, o continental, o global).
Povo, demanda, Estado, nação: me parecem todos eles conceitos limitadores das possibilidades que os movimentos mais recentes abrem.
E como explica então o êxito do populismo, nos dois lados do Atlântico?
Um dos problemas com a teoria da hegemonia em chave populista é que aceita a auto-representação do populismo sem questioná-la. Não problematiza a ideia de que a força do populismo vem da capacidade de articular equivalências entre significantes e assim construir um significante (quase) vazio que reuniria uma quantidade de identidades e demandas particulares, formando com elas um povo. Eu não aceito a explicação populista sobre o próprio funcionamento dos movimentos populistas!
Uma leitura mais cuidadosa do fenômeno peronista, por exemplo, mostra que seu sucesso, quando o houve, veio precisamente da sua capacidade de mobilizar e desmobilizar corpos – na praça, nas urnas – e de converter-se em hábito. Por isso, o triunfo do populismo se expressa nessa frase famosa de um livro de Osvaldo Soriano: “Nunca me meti na política. Sempre fui peronista”.
Isto pode explicar a grande ansiedade do discurso populista sobre a multidão: é a matéria-prima que se apropria e ao mesmo tempo se nega. É a grande ansiedade do populismo argentino com respeito à insurreição de 2001, é a grande ansiedade dos dirigentes do Podemos em relação ao 15M.
Certamente, esse mesmo livro de Osvaldo Soriano (Não haverá mais dores nem esquecimento) mostra a precariedade do triunfo populista: algo sempre se lhe escapa, sua máquina de captura não pode tudo.
O que pode a linguagem?
A linguagem é (ou pode ser) corpo ou cai sempre do lado da representação e do discurso? Qual é (ou poderia ser) a potência propriamente política da linguagem?
Sim, uma leitura equivocada de Pós-hegemonia sustenta que afirmo que a linguagem não conta. Mas é obvio que um discurso (no sentido de um discurso político, mas também de uma conversa entre amigos, uma palavra de ordem gritada em uma manifestação, um livro lido em uma biblioteca, etc.) pode ser um acontecimento e tocar os corpos.
Eu creio – com Deleuze, Félix Guattari ou Michel Foucault – que não se explica um texto através do que ele representa ou significa, mas pelo modo como funciona. Veja-se, por exemplo, a minha leitura no livro do famoso “Requerimento” colonial, supostamente uma justificativa do direito espanhol em território americano, dirigido ao indígena para informá-lo e educá-lo, mas que tinha seus efeitos principais em habituar e moldar os próprios corpos dos conquistadores.
Não entendemos muito se nos fixamos apenas naquilo que diz um texto; o mais interessante está no outro lado ou debaixo, no discurso como forma de organizar e sincronizar a intuição, o instinto e o afeto.
E que valor você dá à explicação, à pedagogia? Seu livro, por exemplo, é uma certa explicação de como funcionam as coisas.
Precisamente por ser alguém cuja vocação e ofício é ensinar, sei que não se deve colocar muita fé no processo de ensino. Como disse Freud, a pedagogia, por sua própria natureza, é uma das “profissões impossíveis”.
Para mim, está claro que o ensino e a aprendizagem dependem muitíssimo dos afetos: desde a humilhação ritual de estudantes que carecem de “capital cultural” até as possibilidades de transformação que o professor apaixonado promete. Pensemos nas representações icônicas do ensino, como A primavera da senhorita Jean Brodie ou O clube dos poetas mortos: o que funciona aí não tem a ver com a explicação, mas com outro tipo de coisas.
Meu livro tenta explicar alguns processos assim como os vejo, mas não trato de convencer a ninguém de nada. Antes, preferiria inspirar alguns a formular sua própria versão da pós-hegemonia.
O lado obscuro da força (criadora)
Os movimentos políticos que lhe interessam são “enigmáticos, invisíveis, misteriosos e fora de lugar”. Não representam nem se deixam representar. Funcionam de alguma maneira como os próprios afetos: opacos e sem discurso articulado, sem demanda nem projeto. Mas esse tipo de força pode ser algo mais que destituinte? Pode converter-se também em um poder constituinte, criador de instituições que organizem a nossa vida cotidiana?
São muitos os movimentos políticos que me interessam. Ou, com outras palavras, são muitos (todos?) os que têm seu lado enigmático, invisível, misterioso e fora de lugar. Para mim, não se trata de escolher os movimentos de que se gosta e apostar tudo neles, como se se tratasse de uma corrida de cavalos. Os movimentos são processos de experimentação e os resultados nunca podem ser vaticinados, nem prevenidos! Essa experimentação sem garantia é a essência da política, de outro modo não estaríamos falando de política, mas de implementação de planos técnicos. Em cada caso, em cada momento, está presente a possibilidade de ambivalência, de erro, de desastre.
Não vamos a lugar nenhum sem reconhecer essa opacidade inerente e inevitável da política. Melhor afirmá-la do que negá-la ou tentar eliminá-la. Sobretudo, porque é desse lado obscuro que emerge qualquer possibilidade do novo, da criação. Assim que vejo tudo ao contrário de como coloca na pergunta: o que é claro, visível, ordenado, previsível e cognoscível me parece que nunca pode ser constituinte, porque (para bem ou para mal) é pura repetição do mesmo.
Bom, algo que aprendemos do hábito é que a repetição do mesmo é outra ilusão: mesmo nas repetições mais regulares, algo escapa, entra sempre a opacidade e o enigma. E é por isso que devemos atender a estes momentos, de desvio e deriva, por mais sutis e (quase) invisíveis que sejam.
Se não é a tomada do poder, o que seria um êxito, uma conquista, uma vitória para os movimentos que lhe interessam?
A criatividade, a criação, a invenção de novas formas de viver; a expansão do comum, da comunidade. Um êxito nunca acabado, evidentemente; uma vitória sempre por vir. Ou, com palavras do Marquês de Sade, supostamente em reação à Revolução Francesa: encore un effort se vous voulez être vraiment républicains! (Mais um esforço se quereis ser verdadeiramente republicanos!)
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“A chave para a mudança social não é a ideologia, mas os corpos, os afetos e os hábitos”. Entrevista com Jon Beasley-Murray - Instituto Humanitas Unisinos - IHU