27 Abril 2023
São muitas as pessoas com orientação homossexual, particularmente seminaristas, religiosos e religiosas em formação, padres, que, pelas indicações expressadas no passado pelo Pe. Amedeo Cencini, foram discriminadas, culpabilizadas e, em vez de serem ajudadas a integrar sua orientação em sua personalidade, foram induzidas a renegá-la para não serem excluídas. Isso envolveu custos psíquicos e espirituais altíssimos, até mesmo permanentes.
O comentário é do jesuíta italiano Giuseppe Piva, formador e especialista em acompanhamento pastoral com pessoas homossexuais, em artigo publicado em Il Regno Attualità, n. 8, de abril de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No artigo “Com todo o coração”, publicado em Il Regno Attualità, n. 4/2023 [traduzido pelo IHU], eu fazia algumas considerações sobre o documento sinodal de 50 padres homossexuais publicado em Il Regno Documenti, n. 3/2023. Afirmava que uma das motivações para a exclusão e a discriminação na Igreja que aqueles padres relataram reside precisamente na instrução vaticana sobre os critérios de discernimento vocacional das pessoas com tendências homossexuais [1].
Eu argumentava que o julgamento extremamente negativo daquele documento sobre a homossexualidade dependia também de um clima – na virada dos anos 2000 – de reação católica ao progressivo reconhecimento pela comunidade científica mundial da “normalidade” da condição homossexual.
Eu indicava no Mons. Tony Anatrella, psicanalista, um dos promotores radicais desse clima de reação; e no Pe. Amedeo Cencini, professor de Psicologia, um convicto defensor daquele documento vaticano. De fato, assim como em muitas outras publicações, nos artigos “Homossexualidade estrutural e não estrutural, I e II” de 2009, Cencini pretendia fundamentar cientificamente as várias afirmações daquela instrução.
Essas publicações e seu ensinamento contribuíram por muito tempo para a formação dos formadores dos seminários, muitos dos quais se tornaram bispos; e, portanto, contribuíram para a consolidação da prática de exclusão das pessoas homossexuais dos percursos em vista das ordens sagradas.
Em um recente artigo publicado em Settimana News, em 31 de março passado (“Formação presbiteral e homossexualidade”, também traduzido pelo IHU), o Pe. Amedeo Cencini responde ao meu texto, afirmando sua substancial mudança de pensamento em relação à homossexualidade:
“Considero que – no âmbito da compreensão do fenômeno em nível psicológico – houve um progresso que certamente obriga a rever algumas conclusões da época. (...) sinto pessoalmente a exigência de continuar levando em frente uma reflexão pessoal cada vez mais aberta ao aprofundamento científico e disponível a rever certas posições.”
Cencini descreve indiretamente sua mudança de paradigma antropológico:
“Até algumas décadas atrás, a abordagem, no mundo eclesial, era de tipo moral, ligada a uma antropologia sexual substancialmente naturalista e que colocava em estreita correlação o ato sexual (e sua moralidade) com a fecundidade. (...) A antropologia naturalista tendia a definir a tendência homossexual como algo ‘necessariamente incompleto e imaturo’ ou ‘intrinsecamente desviante’.”
Seus artigos de 2009 expressavam exatamente essa posição.
Cencini também aponta que, ao longo dos anos, já havia mostrado mudanças de opinião, perguntando-se por que eu não as mencionei: sinceramente, eu as procurei, mas sem sucesso. Em particular, ele cita “La formazione iniziale in tempo di abusi” [A formação inicial em tempos de abuso] (subsídio para formadores ao presbiterado e à vida consagrada e para jovens em formação, Roma), publicado pelo Serviço Nacional para a Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis da Conferência Episcopal Italiana em 1º de fevereiro 2021.
Na verdade, eu conhecia esse texto, sobretudo pelas referências à obra da psicóloga Chiara D’Urbano; mas não me parecia oportuno assinalar que Cencini tratava da homossexualidade – ainda que de uma forma nova – apenas em referência à questão da pedofilia e de outros abusos.
Em todo o caso, efetivamente, o Pe. Cencini agora tem uma abordagem diferente à homossexualidade, e me parece importante evidenciá-la explicitamente. Se compararmos os textos de 2009 com este último, veremos essa mudança em muitos pontos. Vou me limitar a apenas algumas citações.
“A modalidade egossintônica se caracteriza por um ‘sentir’ já de partida favorável à própria tendência homossexual. É a modalidade típica daqueles sujeitos que, diante da tendência, parecem assumir uma atitude de fato possibilista, quase de compromisso mental; de alguma forma, eles a racionalizam e a justificam; certamente não a sofrem, visto que a consideram algo simplesmente diferente do que a maioria sente, como uma variante de gênero, sem valor ético e objetivo; algo que diz respeito exclusivamente aos gostos (sexuais) e que em nada empobrece sua vida relacional; sentem-na como parte de si mesmos, algo que, segundo eles, nunca poderá mudar, e que eles mesmos não veem por que mudar (...) É óbvio que a egossintonia criaria uma grave dissociação entre as exigências da vida religiosa ou sacerdotal e a própria situação existencial e, portanto, constituiria uma contraindicação para a admissão” [2].
“A modalidade egodistônica é diferente, própria de quem considera sua tendência homossexual quase como um corpo estranho, algo que sofre e não gostaria, e do qual consegue ver os aspectos objetivamente carentes e as implicações negativas, em si mesmos e no nível relacional e não exclusivamente em nível sexual. Por isso, procura contrastar, na medida do possível, essa tendência, não só no nível do comportamento, mas também de toda a personalidade, em um caminho progressivo de conversão e disponibilidade ao cotejo formativo. Sua aceitação é inteligente e ativa, responsável e iluminada pela fé, humilde e sofrida, que passa pela luta, em vista de uma superação que assim se torna possível. Esse é um ponto decisivo para o discernimento e para a superação do problema” [3].
Não creio que seja necessário me deter na natureza problemática do ponto de vista científico, pedagógico, moral e espiritual dessas afirmações, que, como sabemos, têm sido motivo de grande sofrimento para muitas pessoas, seminaristas e padres, que, de boa-fé, se confiaram a seus acompanhadores, formados justamente a partir dessas perspectivas. Um terapeuta que hoje acompanhasse seus clientes com base nessas indicações com razão teria problemas do ponto de profissional.
Mas, como testemunha nesse último artigo, Amedeo Cencini mudou hoje sua abordagem científica acerca da tendência homossexual:
“Acima de tudo, trata-se de reconhecê-la em si mesmo, como uma parte de si mesmo que deve ser conscientizada e acolhida ou como um componente do mistério do próprio eu que não pode ser negado ou removido, nem carregado de sentimentos de culpa ou de indignidade. (...) Integração da tendência no projeto vocacional: (...) a coragem de viver a própria realidade pessoal em sua totalidade, também no que diz respeito à própria orientação, em função do ministério escolhido, com criatividade e originalidade. (...) ainda que a orientação homossexual indique e expresse a energia afetiva e, portanto, a capacidade de amizade, de vínculos intensos, de empatia e de participação emocional na vida do outro, de amor dado e recebido… pois bem, tudo isso deve ser vivido e certamente purificado de toda regurgitação autorreferencial (...), mas não pode ser posto entre parênteses ou negado; pelo contrário, deve ser integrado ao próprio projeto sacerdotal, porque ele mesmo é totalmente construído sobre o amor, para com todos e todas, sem exclusões. (...) Porque, como dissemos, mais importante e decisivo do que a própria tendência é o modo de vivê-la e, portanto, o equilíbrio geral da pessoa em tomar consciência dela, em aceitá-la como parte de si mesmo, em geri-la com suficiente liberdade e serenidade, e, em particular, como acabamos de sublinhar, em integrá-la com a natureza e os objetivos da vocação presbiteral.”
Como não ficar contentes com essa nova abordagem, que abre também às pessoas homossexuais a possibilidade de uma vida cristã e de uma vocação, até agora explicitamente negadas, acolhendo sua condição?
No artigo, são muito evidentes as referências antropológicas e teológicas – embora não sejam citadas – ao trabalho significativo obra de Aristide Fumagalli (“L’amore possibile”, Cittadella, 2020), ao texto de Stefano Guarinelli (“Omosessualità e sacerdozio”, Ancora, 2019); de Paolo Pala (“L’accompagnamento dei presbiteri con orientamento omosessuale”, Tau, 2020); e certamente de Chiara D’Urbano (“Percorsi vocazionali e omosessualità”, Città Nuova, 2020). Quem leu suas contribuições as encontra imediatamente. A nova reflexão de Amedeo Cencini sobre a homossexualidade, portanto, não é original, mas claramente tomada de empréstimo destes e de outros autores, seus e meus queridos amigos e colaboradores.
Esse é um sinal de abertura mental, humildade e disponibilidade de mudar as próprias ideias. Por isso, agradeço-lhe sinceramente. No entanto, considero necessário apontar também aquelas que, no artigo citado, a meu ver, permanecem como sombras que me despertam perplexidade.
São muitas as pessoas com orientação homossexual, particularmente seminaristas, religiosos e religiosas em formação, padres, que, pelas indicações expressadas no passado por Cencini, foram discriminadas, culpabilizadas e, em vez de serem ajudadas a integrar sua orientação em sua personalidade, foram induzidas a renegá-la para não serem excluídas. Isso envolveu custos psíquicos e espirituais altíssimos, até mesmo permanentes.
O que se pretende fazer em relação a elas? A mudança de perspectiva científica e formativa nesse caso – talvez – deveria ser acompanhada de uma assunção de responsabilidade e um pedido de perdão; ou esse é um pedido excessivo?
Em seu artigo, Cencini mostra implicitamente – mas claramente – que se distanciou do documento vaticano de 2005 e, portanto, das indicações das sucessivas Ratios dos seminários que afirmam: “A Igreja (...) não pode admitir ao seminário e às ordens sagradas aqueles que (...) apresentam tendências homossexuais profundamente arraigadas” (EV 23/1187).
No entanto, no documento da Conferência Episcopal Italiana sobre os abusos de 2021, na nota 41, com referência às pessoas homossexuais no seminário, afirma-se: “Para isso, remetemos à Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis, publicada pela Congregação para o Clero (Roma, 2016), especialmente aos números 199s, e ao texto da Congregação para a Educação Católica, ‘Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras’, Roma, 2005”.
Os números 199s da Ratio são precisamente os da exclusão das pessoas homossexuais. Mas, então, se Cencini indicou sua intervenção de 2021 como prova de sua mudança de paradigma, o que ele realmente pensa da instrução vaticana de 2005 e das Ratios dos seminários com referência à admissão ou não das pessoas com tendência homossexual profundamente arraigada? Sua opinião realmente mudou em relação a seus artigos de 2009 (que ele escreveu justamente em apoio àquele documento)?
Stefano Guarinelli e Chiara D’Urbano, conforme relatado em meu artigo em Il Regno Attualità, questionaram explicitamente as conclusões desses documentos vaticanos. Acredito que Amedeo Cencini deve resolver claramente essa ambiguidade.
Encontro a mesma ambiguidade quando o Pe. Cencini parece repropor a distinção entre homossexualidade estrutural e não estrutural de 2009, que tentava traduzir cientificamente a distinção da instrução vaticana de 2005 entre “tendência homossexual profundamente arraigada” e “tendências homossexuais que fossem apenas a expressão de um problema transitório, como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completada” (EV 23/1188).
Nesse caso, a tendência profundamente arraigada (a homossexualidade estrutural) era o verdadeiro problema, que implicava a demissão do seminário; enquanto a transitória (não estrutural), embora permanecendo um “problema a ser superado”, não impedia o acesso ao seminário.
Agora, no artigo publicado por Settimana News, depois de afirmar que, em vez disso, a tendência homossexual deve ser positivamente integrada no caminho vocacional, Cencini repropõe a mesma distinção:
“É diferente, de fato, sentir-se homossexual desde sempre ou a partir de uma experiência na (pré-)adolescência (mas às vezes até mesmo posterior a essas fases etárias), embora não diretamente procurada (...), mas depois repetida: no início sofrendo-a (às vezes até de forma grave e violenta) e depois tornando-se cada vez mais frequente e habitual.”
Assim, agora ele considera “problemática” apenas a homossexualidade não estrutural, transitória, pois é índice de imaturidade. À parte o paradoxo dessa inversão de perspectiva, eu pessoalmente poderia concordar com essa conclusão, contanto que também se considere problemática a heterossexualidade não estrutural ou transitória; isto é, aquela forma defensiva de heterossexualidade, induzida (“a partir de uma experiência na (pré-)adolescência, mas às vezes até mesmo posterior, não diretamente procurada, mas depois repetida: no início sofrendo-a às vezes até de forma grave e violenta e depois tornando-se cada vez mais frequente e habitual”).
Heterossexualidade defensiva motivada inconscientemente pelo profundo desconforto em se reconhecer diferente dos outros ou, pior, por ser ameaçado de exclusão, ou forçado a relações heterossexuais abusivas para provar que não é gay; talvez até construindo uma família para se encaixar nos cânones sociorreligiosos.
Essa forma de falsa heterossexualidade é muito mais generalizada e causa danos muito mais graves e perigosos, destruindo existências e induzindo personalidades rígidas e defensivas, potencialmente violentas. Estaria Cencini igualmente disposto a lidar com essa heterossexualidade não estrutural e egodistônica?
Por último... Por que Cencini continua preferindo o termo “tendência homossexual” a “orientação homossexual”? Talvez ele não se dê conta da extrema ambiguidade desse termo, que a ciência não conhece, mas que, antes, remete imediatamente ao âmbito religioso-moral (antropologia naturalista), que considera a homossexualidade “uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada” [4].
Por isso, a instrução de 2005 exclui da formação em vista das ordens sagradas as pessoas que a possuem. Stefano Guarinelli, como psicólogo, por sua vez, se distanciou claramente dessa terminologia, definindo-a como ambígua, preferindo falar da homossexualidade como um traço da personalidade; “indiferente” em si mesmo, mas que deve ser analisado no conjunto das dimensões pessoais para um caminho de maturidade humana, do qual o traço homossexual certamente não é uma contraindicação. Na mesma linha encontramos Chiara D’Urbano que, em vez disso, faz a escolha explícita de usar o termo científico de “orientação homossexual”, no sentido que a comunidade científica lhe atribui.
Na minha opinião, essa também é mais uma ambiguidade que deveria ser resolvida.
1. Cf. Congregação para a Educação Católica, instrução “Sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras” (04-11-2005; EV 23/1183ss).
2. CENCINI, A. “Omosessualità strutturale e non strutturale. Contributo per un’analisi differenziale, II”. Tredimensioni, 6(2009), p. 132.
3. Ibid., p. 133.
4. Congregação para a Doutrina da Fé, carta “Homosexualitatis problema”, sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais, 01-10-1986, n. 3; EV 10/907.
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Uma resposta ao Pe. Amedeo Cencini sobre a evolução do pensamento acerca da homossexualidade. Artigo de Giuseppe Piva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU