01 Março 2023
Padres diocesanos e religiosos LGBT+ aceitaram contar suas vivências, dificuldades e esperanças, na convicção – “com todo o coração” – de que a fidelidade do Senhor à sua vida e à sua vocação enche de fecundidade seu ministério na Igreja.
O comentário é do jesuíta italiano Giuseppe Piva, formador e especialista em acompanhamento pastoral com pessoas homossexuais, em artigo publicado em Il Regno, 23-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A contribuição para o caminho sinodal que menciono neste artigo é fruto da partilha de cerca de 50 presbíteros diocesanos e religiosos com orientação homossexual ou bissexual, reunidos em vários encontros entre fevereiro e março de 2022, em pelo menos sete pequenos grupos ou com trabalhos individuais.
Convidados pela rede dos agentes de pastoral com pessoas LGBT+, eles aceitaram contar suas vivências, dificuldades e esperanças, na convicção – “com todo o coração” – de que a fidelidade do Senhor à sua vida e à sua vocação enche de fecundidade seu ministério na Igreja.
A finalidade desse documento, que permaneceu confidencial de março a dezembro de 2022, é o único desejo de que a Igreja em caminho sinodal não perca também a voz dessas pessoas. Ele faz parte de um opúsculo com outras contribuições para o Sínodo, que eu convido a baixar e a ler com interesse [disponível em italiano aqui]. [1]
O texto é desenvolvido em duas partes: a primeira (“Solidões, feridas, silêncios”) é uma narração da vivência sofrida dos padres homo/bissexuais dentro da comunidade cristã, conscientes de que pertencem a uma minoria mal tolerada, à qual, aliás, é negada a legitimidade ou até mesmo a existência e que, por isso, compreensivelmente, desenvolve várias dinâmicas de sobrevivência, sejam elas saudáveis ou insalubres.
Na segunda parte (“O dom da vocação e do serviço”), por sua vez, abre-se uma perspectiva interior de autotranscendência – da qual se sentem legitimamente capazes – que faz com que se abram à vocação como dom de si, vivido em uma perspectiva de serviço à comunidade.
Por fim, a conclusão em perspectiva eclesial e sinodal: “Caminhando juntos abre-se o caminho”.
Na raiz da vivência de exclusão eclesial dos padres homossexuais, estão as indicações disciplinares que apareceram explicitamente pela primeira vez na instrução da Congregação para a Educação Católica de 2005: “Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras” [disponível em português aqui]. Tais indicações foram depois confirmadas e reiteradas nas várias “Ratio” sobre a formação nos seminários até 2016 e atualmente em vigor.
No parágrafo 2, a instrução afirma:
“A Igreja (...) não pode admitir ao Seminário e às Ordens sacras aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay. Estas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que obstaculiza gravemente um correto relacionamento com homens e mulheres. De modo algum, se hão de transcurar as consequências negativas que podem derivar da Ordenação de pessoas com tendências homossexuais profundamente radicadas”.
Além da afirmação gratuita sobre a incapacidade de se relacionar corretamente com homens e mulheres (segundo quais evidências psicossociais?), o elemento problemático dessa afirmação é a referência às pessoas que apresentam “tendências homossexuais profundamente radicadas” (em vez disso, a referência a quem pratica a homossexualidade ou apoia a cultura gay parece óbvia, senão redundante, pois já diz respeito a todos, inclusive às pessoas heterossexuais).
O que significa essa expressão, cientificamente pouco clara em sua ambiguidade? A esse respeito, o Pe. Stefano Guarinelli comenta em seu livro de 2020 intitulado “Omosessualità e sacerdozio, questioni formative” [Homossexualidade e sacerdócio, questões formativas] (Ed. Ancora) [2]:
“Trata-se da referência à presença de ‘tendências homossexuais profundamente radicadas’. O que se pretende afirmar com isso? (…) Acho problemática a falta de uma conceituação do termo ‘tendência’ (…). Em suma: a tendência, assim isolada, torna-se exclusivamente um problema, um elemento não positivo, de todos os modos, e, a partir disso, viver cristãmente a homossexualidade (referida como uma característica isolada) significa sacrificar aquilo que ela pode expressar. O risco é que a pessoa que tem uma tendência homossexual sinta que está fazendo a vontade de Deus na própria vida simplesmente tentando não ser aquilo que é” (cf. pp. 14-18).
Depois de 15 anos da publicação desse documento, portanto, no mesmo âmbito eclesial, evidenciam-se explicitamente seus limites e suas incongruências científicas; um sinal claro da tomada de distância do contexto cultural a partir do qual o documento teve origem.
De fato, já na época de sua publicação, aquela instrução refletia aquele certo conflito marcadamente ideológico entre o contexto religioso católico e as novas consciências científicas que haviam surgido desde os anos 1990 acerca da condição homossexual.
A tentativa de justificar cientificamente as convicções doutrinais sobre a sexualidade humana parecia promover uma certa psicologia católica, alternativa àquela expressada pela comunidade científica mundial, considerada ideologicamente comprometida.
Mas hoje parece ser igualmente evidente o componente ideológico das afirmações desse mesmo documento vaticano. De fato, é oportuno recordar o especialista a quem foi confiada a apresentação da instrução no L’Osservatore Romano de 29 de novembro de 2005: o famoso psicanalista Mons. Tony Anatrella, ideólogo da reação católica ao movimento de libertação homossexual, que, após um longo caso judicial e canônico que durou 20 anos, foi condenado definitivamente no último dia 17 de janeiro por violências sexuais contra seus pacientes, que ele teria perpetrado durante sessões terapêuticas que visavam à “cura” de sua condição homossexual. [3]
Estas são algumas de suas palavras naquele artigo de apresentação:
“A homossexualidade é como uma incompletude e uma imaturidade inerente à sexualidade humana (...) As pessoas homossexuais não estão em condições adequadas (...) para ter acesso ao diaconato e ao sacerdócio”. [4]
Hoje, parece ser mais do que evidente o caráter problemático dessas afirmações, que têm pouco a ver com a orientação homossexual em geral, mas muito a ver com o conflito interior de seu autor.
O então Pontifício Conselho para a Família havia confiado a ele em 2002 o verbete “Homossexualidade, homofobia” no “Lexicon. Termini ambigui e discussi su famiglia, vita e questioni etiche” [Lexicon. Termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas] (Bolonha: EDB, 2003): um texto oficial vaticano sobre esses temas, no qual os autores da instrução provavelmente se basearam, visto que ele foi convidado a apresentá-la.
O verdadeiro drama, portanto – como me lembrava uma jornalista –, é que aparentemente a Igreja também construiu boa parte de sua recente retórica sobre a homossexualidade a partir das afirmações de um “predador”!
Na tentativa de dar consistência científica à instrução, infelizmente, Mons. Anatrella foi ecoado pelo Pe. Amedeo Cencini (certamente não comparável a Anatrella, pelo contrário, um reconhecido formador de muitos padres e religiosos e religiosas):
“Creio que, saindo do dilema se se trata de uma situação patológica ou não, é bastante claro que a homossexualidade representa como que uma diminuição ou um empobrecimento da condição natural da criatura humana (…) para Anatrella a homossexualidade é uma situação psíquica de ‘incompletude e imaturidade’.”
Coerentemente com essas conclusões, Cencini propunha em 2009 a superação da atitude “egossintônica” em favor da atitude “egodistônica”:
“A modalidade egodistônica, típica de quem considera a própria tendência homossexual quase como um corpo estranho, algo que sofre e não gostaria, e do qual consegue ver os aspectos objetivamente carentes e as implicações negativas, em si mesmo e no nível relacional e não exclusivamente no nível sexual. Por isso, procura contrapor, na medida do possível, essa tendência, não só no nível do comportamento, mas também de toda a personalidade, em um caminho progressivo de conversão e de disponibilidade para o diálogo formativo.” [5]
Essas perspectivas formativas – hoje inconcebíveis – condicionaram a atitude de muitos bispos a não acolherem no seminário ou a acolherem com reservas pessoas que manifestam uma orientação homossexual; alimentaram graves preconceitos sobre a suposta conexão entre homossexualidade e pedofilia; motivaram uma atitude de rejeição aos padres com orientação homossexual, independentemente de seu modo de vivê-la; e, sobretudo, muitas vezes foram causa de fortes desconfortos psíquicos e espirituais naqueles que, de boa-fé, tentaram pô-las em prática.
O estranho é que, apesar dessa proibição (ou talvez justamente por causa dela), a porcentagem de seminaristas e padres homossexuais em relação aos heterossexuais sempre foi sensivelmente maior do que a porcentagem em outros contextos da sociedade.
Ultimamente, estão emergindo novas perspectivas: começa-se a considerar de modo diferente a vivência das pessoas homossexuais, inclusive daquelas que se orientam ao ministério presbiteral.
Nos últimos anos – desde o pontificado do Papa Francisco –, de uma atitude dialética e conflituosa acerca das indicações da comunidade científica mundial a esse respeito, está se passando para uma atitude mais conciliadora e colaborativa.
As palavras do Papa Francisco na recente entrevista à Associated Press (25 de janeiro) [6] e depois os esclarecimentos posteriores ocorridos no diálogo com o jesuíta James Martin [7] testemunham ainda mais essa mudança de perspectiva que, na verdade, remonta aos primeiros meses de seu pontificado.
Afirmando que os atos homossexuais não são um “crime”, mas, no máximo, um “pecado”, o Papa Francisco acrescenta na entrevista que a homossexualidade é em si mesma uma “condição humana” e que, como tal, não deve ser estigmatizada.
Depois, respondendo ao Pe. Martin, ele inesperadamente não se refere ao Catecismo para recordar a pecaminosidade dos atos homossexuais, mas parece recordar, em vez disso, a Amoris laetitia (“Estou me referindo simplesmente ao ensinamento da moral católica, que diz que todo ato sexual fora do matrimônio é pecado (...) É preciso considerar também as circunstâncias, que diminuem ou anulam a culpa”, porque “sabemos muito bem que a moral católica, além da matéria, avalia a liberdade, a intenção; e isso para todo tipo de pecado”). [8]
Ao não inseri-los em uma categoria à parte, o Papa Francisco parece considerar os atos homossexuais como comportamentos desordenados em relação a uma condição – a orientação homossexual – simplesmente dada, como a orientação heterossexual, que, também esta, pode ser praticada de modo desordenada.
Graças a esse clima menos ideológico, começa a emergir na sua realidade a vivência de muitos padres homossexuais – embora na reserva e no constrangimento de sua condição estigmatizada – que testemunha a capacidade de viver o celibato, a dedicação pastoral e a profunda vida interior.
Isso questionou muitos formadores e terapeutas, que se viram acompanhando esses padres, muitas vezes oprimidos por sentimentos de culpa e por uma falta de confiança em si mesmos.
Apenas em 2020, foram publicados vários textos que sugerem uma abordagem diferente em relação à homossexualidade, especialmente no âmbito vocacional presbiteral ou de vida consagrada. Entre eles, o já citado texto do Pe. Stefano Guarinelli; e depois outros, que mencionaremos, de Chiara D’Urbano e do Pe. Paolo Pala.
Uma abordagem, portanto, que questiona radicalmente a visão “ferida” da homossexualidade; e que desloca a atenção do tipo de orientação sexual para o processo global de amadurecimento humano, independentemente da orientação afetiva da pessoa.
Uma visão que, dentro de uma perspectiva da castidade pelo Reino, não considera a homossexualidade como um impedimento para a maturidade da doação de si mesmo; como, ao invés disso, afirmavam explicitamente Tony Anatrella e Amedeo Cencini, em tons diferentes.
Chiara D’Urbano [9] em seu “Percorsi vocazionali e omosessualità” (Città Nuova, 2020), afirma:
“a) Uma avaliação integral da pessoa, em relação a seu desejo vocacional, não pode se concentrar apenas na orientação sexual. A orientação sexual não é só sexo, e a pessoa não é só a sua orientação; b) considerado isoladamente, ele não é representativo do funcionamento mais ou menos maduro daquele indivíduo.” (D’Urbano, 2020, p. 39)
D’Urbano verifica as atitudes indicadoras de maturidade humana a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), como faria qualquer terapeuta; e é a partir dessa perspectiva que ela relê a instrução de 2005:
“Parece-me, por isso, pelo que compreendo, que o ‘profundamente radicadas’ deve ser entendido nos documentos citados como o equivalente da prática da homossexualidade, construto que fortaleceria a expressão anterior (…) Porém, o mesmo critério deveria ser utilizado para as tendências heterossexuais profundamente radicadas’”. (D’Urbano, 2020, p. 92)
E ainda, em relação aos padres com orientação homossexual:
“O sacerdote homossexual, chamado por Cristo a um percurso de vida celibatária, como todos os outros presbíteros, ama e se dedica às pessoas que lhe são confiadas. É um homem realizado se a vocação o torna uma pessoa que ‘habita com o coração’, como diria o Papa Francisco, e se ele se realiza ao anunciar a Boa Nova, ao levar esperança às pessoas, ajudando-as a fazerem um encontro que muda a vida." (D’Urbano, 2020, p. 100)
Por fim, o Pe. Paolo Pala [10], em “L’accompagnamento dei presbiteri con orientamento omosessuale” [O acompanhamento dos presbíteros com orientação homossexual] (Tau, 2020), chega a inverter as conclusões de Cencini. Nas páginas 142-145, ele afirma:
“É preciso superar o aspecto egodistônico de uma homossexualidade reconhecida, mas não acolhida ou, melhor, percebida como elemento de perturbação e foco ativo de conflitualidade intrapsíquica. (…) Deve haver uma aceitação da própria condição; não é mais suficiente ter consciência dela, mas é preciso se acolher por aquilo que se é, sob o olhar curador de Deus (…). A superação do conflito egodistônico é essencial para a integração da homossexualidade na pessoa e se torna uma premissa importante para a criação de uma sã unidade interior na vida do presbítero entre identidade e ministério, entre vida espiritual e atividade apostólica.”
Portanto, dentro desse contexto formativo eclesial, ganha ainda mais sentido a citada contribuição dos padres com orientação homo/bissexual.
1. P. Piva, G. Geraci (org.), Dalle frontiere al Sinodo. Alcuni percorsi fatti con i cristiani LGBT+ all’interno del cammino sinodale in Italia, novembro de 2022.
2. Stefano Guarinelli, psicólogo e psicoterapeuta, pertence à equipe de consultoria psicológica do Seminário Arquiepiscopal de Milão e é professor permanente extraordinário da Faculdade Teológica da Itália Setentrional.
3. Cf. Avvenire, 19-01-2023.
4. Cf. T. Anatrella, “Riflessioni sul documento”, in L’Osservatore Romano, 29-11-2005.
5. A. Cencini, Omosessualità strutturale e non strutturale. Contributo per un’analisi differenziale (I e II), in Tredimensioni 6(2009) 31-42; 131-142.
6. In The AP Interview: Pope says homosexuality not a crime.
7. Cf. Pope Francis clarifies comments on homosexuality: “One must consider the circumstances.”
8. Cf. Francisco, exortação pós-sinodal Amoris laetitia, 19-03-2016, n. 297; 305.
9. Chiara D’Urbano é psicóloga e psicoterapeuta, consultora do Dicastério para o Clero, perita da Rota Romana e do Tribunal do Vicariato de Roma.
10. Paolo Pala é presbítero da Diocese de Tempio-Ampurias. É licenciado em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana e em Teologia Moral Fundamental pela Academia Alfonsiana. É reitor do seminário diocesano, diretor do escritório catequético diocesano e regional da Sardenha, professor do Instituto Superior de Ciências Religiosas Euro-Mediterrâneo de Tempio.
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“Com todo o coração”: um documento de 50 padres homo/bissexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU