18 Outubro 2023
"O espaço para as fés abre-se na contradição da economia neoliberal", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 15-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
As Igrejas podem desempenhar um papel importante, muito importante na nossa sociedade. Simplesmente porque acredito que elas têm algo a oferecer à sociedade. E não estou me referindo a verdades fundamentais que as igrejas podem ou devem dizer às pessoas sobre o que fazer e o que não fazer. E não porque os valores e as morais das Igrejas sejam os corretos e devam ser impostos aos outros. Mas porque a sociedade moderna – e, portanto, europeia – está numa fase de “impasse vertiginoso” e exige um preço muito elevado. Constatamos que esta sociedade procura desesperadamente uma forma alternativa de se relacionar com o mundo, de estar no mundo. E onde pode procurar formas de entrar em relação com a vida, o universo, o cosmos e a natureza? Onde encontrar esse ‘depósito’ alternativo?”.
“A resposta à questão de saber se a sociedade de hoje ainda precisa das Igrejas ou das religiões só pode ser: sim”. É um trecho da palestra de um sociólogo e pensador alemão, Harmut Rosa, numa apresentação na conferência das Igrejas Cristãs na Europa (Tallin, junho de 2023).
Há décadas a sociologia religiosa acompanhou atentamente a parábola da secularização das sociedades ocidentais nos seus vários momentos e resultados. Rosa, que pertence à tradição da sociologia crítica de Adorno e Horkheimer, inverte a pergunta e, partindo das contradições das sociedades, abre o questionamento sobre o possível papel das fés.
Para entender sua abertura de crédito, é necessário se reportar a dois conceitos fundamentais de seu pensamento, elaborados em suas duas principais obras: Aceleração e alienação (ed. alemã 2005, trad. italiana, Einaudi, Torino 2015) e Resonanz: eine Soziologie der Weltbezihung (2016; Ressonância: Uma sociologia das relações no mundo).
A partir de 2000 a sociedade ocidental, e não só, embarcou numa aceleração que é tão dinâmica quanto essencialmente parada, uma corrida ao crescimento econômico-financeiro necessária não para construir um futuro, mas para manter o status quo.
Cada vez mais energias são gastas para manter o que existe. Uma condição paradoxal que se traduz em oximoros como: “impasse vertiginoso”, “imobilismo frenético”, “impasse acelerado”.
A experiência de pais que não conseguem desejar para os filhos uma condição mais próspera, mas, no máximo, a continuação do presente, é uma das expressões mais comuns. Entre as consequências: alienação, agressividade social, raiva generalizada, uma política que substitui o adversário com o inimigo, uma democracia meramente formal, burnout (depressão).
A incapacidade de “visão” torna as grandes questões inabordáveis: migrações, pandemias, guerras, emergências climáticas e ambientais, ameaça nuclear.
O segundo conceito, desenvolvido em resposta ao paradoxo da aceleração, é “ressonância”. Para escapar à atitude agressiva exigida pela aceleração, para sair do imperativo do controle, da dominação e do poder, é necessário abrir-se àqueles elementos que nos dispõem para uma outra relação com o mundo. “O frenesi do controle inibe a nossa capacidade de nos deixarmos interpelar e comover pelo mundo em que vivemos; como no caso da música, da poesia, das artes visuais; como podemos nos perceber através da visão, do cheiro, do sentimento da natureza, num campo cultivado ou numa floresta selvagem”.
Rosa tem uma palavra para caracterizar essas experiências: “ressonância”. São experiências que ressoam dentro de nós; nos permitem perceber uma afinidade dentro de nós com as coisas, seres ou ideias que nos são externas" (Ch. Taylor, no prefácio do livro de Rosa, Pourquoi la démocratie a besoin de la religion; tradução do texto de uma palestra proferida à assembleia diocesana de Würzburg, Alemanha, em 2022).
O espaço para as fés abre-se na contradição da economia neoliberal. “Ao transformar-se num círculo autorreferencial, o processo de modernização de aceleração social (competitiva) revelou-se mais forte que o projeto (ético) de autonomia e de autodeterminação, ao ponto de sugar este último para a sua lógica e assim torná-lo ineficaz” (Giorgio Fazio).
O fracasso da promessa da revolução industrial arrasta consigo o fim da democracia: “A minha tese – diz Rosa – é que a religião não deve de forma alguma ser um obstáculo à ‘democracia ressonante’, mas, se compreendida e vivida da maneira correta, pode realmente ser um recurso importante, até mesmo crucial, para a formação e o treinamento de práticas e atitudes ‘ressonantes’” (Tallin).
Existe um desânimo de fiéis e de eclesiásticos diante do desmoronamento das formas da cristandade. “Hoje se fala da religião como de um desastre, uma catástrofe, um perigo para a democracia” (entrevista com Ls Croix, 27 de setembro de 2023), muitas vezes também por padres e bispos”.
Mas há elementos aparentemente menores que dizem o contrário. Em comparação com a agressividade quotidiana, o simples fato de entrar num local de culto induz uma mudança de sensibilidade e de percepção, um mundo não agressivo. As Igrejas têm um patrimônio “de narrativas, um reservatório cognitivo, ritos e práticas, espaços onde um coração na escuta pode ser exercido e talvez vivenciado... Devemos deixar-nos chamar”. “A sociedade, aliás, a democracia europeia, precisam da capacidade de se deixar chamar” (Tallin) iniciando um caminho de ‘ressonância’”.
A procura por “ressonâncias” semelhantes é muito alta, bem além das fronteiras das fés e do religioso. Há o pedido de uma relação com uma realidade última que dê uma nova compreensão dos fatos, do cosmos, do nosso destino.
“Acredito que é precisamente disso que a religião tira a sua grande força, isto é, do fato de alimentar uma espécie de promessa vertical de ‘ressonância’ que diz: o universo silencioso, frio, hostil ou indiferente não está na base de minha existência, mas há uma relação de resposta. Para mim, o núcleo do pensamento religioso nas religiões monoteístas e muito mais além – certamente no Hinduísmo e no Budismo – mas permanecendo no Cristianismo, é que a razão da minha existência não é o universo silencioso, o puro acaso ou uma contraparte hostil, mas que existe uma relação de resposta. ‘Eu te chamei pelo nome, você é meu’” (Tallin).
Realidades teológicas centrais como a Trindade ou a Santa Ceia podem ser citadas positivamente. “A pericorese trinitária expressa uma relação de ‘ressonância’ entre Pai, Filho e Espírito Santo - e, talvez, também em nós, crentes. Já escrevi sobre a questão de saber se, na confissão católica em particular, a religião dispõe de qualidades de ‘ressonância’. Eu diria que sim. Possui muitas dessas qualidades, talvez mais ou diversamente da confissão protestante" (Pourquoi la démocratie a besoin de la religion).
O mesmo acontece com a Santa Ceia, que desenvolve três eixos de ressonância, aquele entre as pessoas, entre pessoas e coisas, e entre estas e a referência transcendente.
O espaço espiritual necessário para a “ressonância” vai muito além da fé cristã. Nas formas de respiração budista, na repetição da sílaba sagrada do hinduísmo (“aum”) como na Nova Era, no esoterismo, e mesmo na astrologia ou nos horóscopos, existem elementos positivos a favor de uma abertura para a “ressonância”. Um processo de reformulação da realidade que inclui também agnósticos e não crentes.
“A religião até pode matar a ressonância. Nesse ponto concordo com o que escreveu B. Latour. Ele dizia que a religião termina quando as crenças se tornam dogmatismo. A ‘ressonância’ vertical significa ouvir um Deus que não posso ver, ao qual não tenho um acesso direto. Hoje, as autoridades religiosas afirmam saber o que é Deus e o que ele exige. É o oposto da ressonância; não se trata mais de uma resposta. Pior ainda. Essas autoridades podem destruir o eixo horizontal, social da ‘ressonância’ quando, por exemplo, condenam as relações sexuais antes do casamento” ou em caso de abusos (Le monde, 10 de setembro).
O dogmatismo, o fanatismo e o fundamentalismo impedem a dimensão de resposta das fés. “A questão de saber se acreditar em Deus é razoável ou se há provas da sua existência, se a Bíblia explica o mundo ou se é a palavra de Deus, etc., tudo isso não me interessa... Gostaria de concluir dizendo que a religião é uma força, que dispõe de uma reserva de ideias e um arsenal de rituais, cantos, gestos, espaços, tradições e práticas apropriadas que permitem sentir e dar sentido ao que significa ser chamados, deixar-se transformar, estar em ‘ressonância’” (Pourquoi la démocratie a besoin de la religion).
A abertura às fés e às religiões é um traço periférico do seu pensamento. Mas, tal como aconteceu com a antropologia, para as ciências da educação ou para a música, o pensamento de Rosa agitou as águas. Herdeiro, como é, de uma tradição não só no que diz respeito à "escola de Frankfurt", mas também de E. Fromm, M. Weber, K. Marx e dos contemporâneos Ch. Taylor, B. Latour e H. Joas.
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Pós-modernismo e a “necessidade” das fés. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU