25 Mai 2023
"No passado 22 de março, num encontro em Vilnius (Lituânia) de um grupo de trabalho, o secretário-geral, Jorgen Sorensen apresentou o projeto “trilhas de paz” centrado na Ucrânia para promover a justiça, a reconciliação e a paz. É uma proposta a todas as Igrejas para tecer vínculos com as comunidades locais e com os responsáveis institucionais para promover a convivência", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 24-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O empenho pela paz une a maioria das Igrejas cristãs, com exceção da Igreja Ortodoxa Russa e das Igrejas pró-Rússia. A atividade diplomática mais conhecida e discutida é a da Santa Sé. Mas não menos ativas se mostraram outras associações de Igrejas como a CEI e a CMI.
A primeira Conferência Europeia das Igrejas é uma associação ecumênica entre Igrejas Cristãs da Europa fundada em 1959 para promover a reconciliação, o diálogo e a amizade entre as várias confissões. Fazem parte dela a maioria das principais igrejas protestantes, ortodoxas, anglicanas e veterocatólicas europeias. As Igrejas representadas são 113. Elas se reunirão em assembleia geral em Tallinn (Estônia) no próximo mês de junho.
O Conselho Mundial das Igrejas (CMI) é a maior e mais importante associação ecumênica mundial de igrejas. Participam 352 igrejas (não a católica) representando 500 milhões de fiéis. A última assembleia geral foi celebrada em Karlsruhe (Alemanha) em setembro passado.
A agressão russa contra a Ucrânia representou para a grande maioria das Igrejas um verdadeiro choque espiritual e teológica. Para elas, continua sendo incompreensível que a Igreja russa tenha se tornado instrumento de guerra, abusando de seu patrimônio espiritual para apoiar os interesses políticos de Putin.
Em carta a Kirill, o presidente da CEI, Christian Krieger, havia escrito nos primeiros dias da guerra, quando o patriarca ainda não havia se exposto: “Fico desanimado pelo seu silêncio sobre a guerra que seu país declarou contra outro país, onde vivem milhões de cristãos, inclusive cristãos ortodoxos que pertencem ao seu rebanho".
No passado 22 de março, num encontro em Vilnius (Lituânia) de um grupo de trabalho, o secretário-geral, Jorgen Sorensen apresentou o projeto “trilhas de paz” centrado na Ucrânia para promover a justiça, a reconciliação e a paz. É uma proposta a todas as Igrejas para tecer vínculos com as comunidades locais e com os responsáveis institucionais para promover a convivência. A iniciativa é especialmente dirigida aos jovens. As prioridades são um cessar-fogo imediato, uma solução diplomática através do direito internacional, o respeito pelas fronteiras, a autodeterminação dos povos e a primazia do diálogo sobre a violência.
Em declaração posterior do Conselho diretor confirmou-se a posição da CEI sobre a guerra: “A religião não pode ser usada como meio para justificar esta guerra. Todas as religiões, e nós como cristãos, estamos unidos em condenar a agressão russa, os crimes cometidos contra o povo ucraniano e a blasfêmia que é o uso indevido da religião."
A proposta do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) é muito mais exigente. Está prevista a organização de um encontro em Genebra de todas as Igrejas ortodoxas interessadas para o próximo mês de outubro. Primeiro com as duas Igrejas ucranianas (autocéfalas e não) e, em segundo lugar, com elas e a Igreja Ortodoxa Russa.
A proposta tem um precedente precioso. Em preparação para a assembleia geral, as Igrejas Ortodoxas haviam realizado uma pré-assembleia em Chipre (maio de 2022) na qual todos estiveram presentes (de Constantinopla a Moscou, da Ucrânia aos vários patriarcados) e todos assinaram uma declaração pronunciando-se contra a guerra. Incluindo a Igreja russa, então representada por Hilarion, presidente do departamento de relações exteriores do patriarcado. Aquela assinatura e a evidente hesitação do hierarca sobre a "ação militar especial" custou-lhe o cargo e foi colocado na diocese periférica de Budapeste. No entanto, a assinatura não foi desmentida.
A posterior participação dos russos na assembleia geral do CMI (Karlsruhe, Alemanha, setembro de 2022) foi posta à prova pela dura denúncia do Presidente da República Federal, Steinmeier: “Os líderes da Igreja Ortodoxa estão atualmente liderando seus fiéis e sua Igreja por um caminho perigoso e essencialmente blasfemo que vai contra tudo em que acreditam".
Os representantes do patriarcado de Moscou não abandonaram a reunião e se abstiveram diante de uma moção denunciando a guerra como “ilegal e injustificável… incompatível com a natureza e a vontade de Deus para a humanidade e (contrária) aos nossos princípios cristãos e ecumênicos fundamentais”.
O esperado encontro entre os representantes das Igrejas ucranianas e da Igreja russa não aconteceu, mas não houve ruptura. Uma delegação do CMI, chefiada pelo secretário-geral, Jerry Pillay - depois de sondar o Vaticano e o patriarcado de Constantinopla - deslocou-se à Ucrânia de 10 a 13 de maio, onde se reuniu com representantes das duas Igrejas ortodoxas locais e obteve seu consenso para a reunião marcada para Genebra. "Tanto o Metropolita Antônio (representando Onufrio) quanto o Metropolita Epifânio, primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana (autocéfala), deram sinais claros de disponibilidade ao diálogo", observa o comunicado do CMI, e acrescenta: "as confissões religiosas são chamadas a desempenhar um importante papel em sanar essas feridas, em parar essa guerra ilegal e imoral e em promover uma paz justa para os povos da Ucrânia".
A delegação também ouviu o Conselho Pan-ucraniano das Igrejas e das Organizações Religiosas do país que testemunhou a contraposição entre as Igrejas Ortodoxas, e tomou posições dissonantes em relação à denúncia de uma suposta perseguição contra a Igreja Ortodoxa não autocéfala (que se reporta ao Metropolita Onufrio). “A harmonia entre as comunidades religiosas da Ucrânia é indispensável para a unidade da nação exigida pela crise atual. O CMI pretende trabalhar com as igrejas e o governo para encorajar tal unidade e reduzir as divisões e as discórdias entre os fiéis”.
Tendo reunido o consenso inesperado das Igrejas ucranianas, o maior desafio era convencer Moscou. “Precisamos que a Igreja russa – disse Pillay – participe dos diálogos conosco. Sem ela nenhuma troca é possível. Afinal, a Igreja russa é a maior Igreja representada no CMI.
No dia 17 de maio, houve um encontro com o Patriarca Kirill, com resultado provisório, mas substancialmente positivo. Um longo comunicado do patriarcado reconstrói a reunião e registra todos os argumentos de Kirill. Entre eles, chama a atenção a denúncia da responsabilidade de Bartolomeu ("Devo dizer que estamos particularmente chocados com a participação do patriarcado de Constantinopla nesse conflito") e a acusação de que o Ocidente não vê a perseguição contra a Igreja Ucraniana não autocéfalos ("Infelizmente a comunidade internacional está em silêncio").
Pillay comenta: “É claro que as perspectivas sobre o conflito, suas causas e o caminho para uma paz justa permanecem altamente polarizadas. No entanto, isso apenas reforça a importância dos esforços para criar espaços seguros para o diálogo. Para o CMI, isso deve começar com tentativas de superar a divisão intraortodoxa que reflete o atual confronto geopolítico”.
As propostas de paz da Santa Sé se colocam no horizonte das relações dos Estados, em grau diverso em relação ao CEI e ao CMI. As numerosas críticas à diplomacia vaticana por parte das chancelarias refletem a dificuldade de uma abordagem "visionária" e, ao mesmo tempo, realista de uma instituição como a Igreja. No que diz respeito às questões de legítimos interesses nacionais das diplomacias, aquela vaticana é "obrigada" a ser, ao mesmo tempo, profética e realista, capaz de inserir nas relações internacionais o paradoxo da mensagem cristã. Com um duplo desafio: teológico e histórico-cultural.
Sobre o juízo espiritual a respeito da guerra, o magistério de Francisco vai além da teoria da "guerra justa" em uma tendencial remoção da guerra nas relações entre os povos (cf. Fratelli tutti n. 258). Pelo contrário, Kirill de Moscou persegue uma glorificação da guerra de tipo fundamentalista, não querendo discutir sobre a "justiça" do conflito.
Para muitos ucranianos e para muitos observadores ocidentais, a dificuldade de esclarecer a posição do papa em relação à guerra não nasce de uma distância em relação aos direitos dos povos à autonomia e à defesa nacional, mas sim da evidência moral e evangélica de um declínio progressivo da legitimidade da guerra que também contrasta com os fatos. Uma espécie de antecipação do que "deverá" ser no futuro.
Do ponto de vista cultural e histórico-civil, o magistério do pontífice é estranho à palavra que domina nosso tempo, a etnia. Representa a via de fuga para o passado de muitos, assustados com as potencialidades oferecidas, mas não efetivamente exploradas pela globalização, agora transformada em colonização financeira. “Essas duas visões do mundo estão, da mesma forma, em guerra com a ideia fundamental de fraternidade levada a todos os lugares por Francisco, o único símbolo ‘branco’ da paz em todo o mundo; o único que continua a ver as deformações avassaladoras da globalização real, mas para as corrigir e impedir o retorno a um identitarismo étnico, fechado, xenófobo” (Riccardo Cristiano, A diplomacia do Papa Francisco).
Especificamente, há duas iniciativas (entre as conhecidas) promovidas pela diplomacia pontifícia: a proposta de uma “nova Helsinque”, sugerida pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, e a recém-iniciada tentativa de mediação entre Kiev e Moscou, confiada ao cardeal Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha. A proposta de uma "nova Helsinque" foi formulada por Parolin na conferência "Europa e guerra. Do espírito de Helsinque às perspectivas de paz" (Roma, 13 de dezembro de 2022).
Quarenta anos após a assinatura do Ato de Helsinque (1975) disse o cardeal:
“Mesmo que a experiência de Helsinque hoje não pareça repetível em suas características e peculiaridades, tentemos recuperar o ‘espírito de Helsinque’, voltemos a reler a declaração sobre os princípios que norteiam as relações entre os Estados participantes que foi inserida no Ato Final, um decálogo que previa: igualdade soberana, respeito pelos direitos inerentes à soberania; não recurso à ameaça ou ao uso da força; inviolabilidade das fronteiras; integridade territorial dos Estados; resolução pacífica das controvérsias; não intervenção nos assuntos internos; respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, de consciência e de religião ou crença; igualdade de direitos e autodeterminação dos povos; cooperação entre os Estados; cumprimento em boa-fé das obrigações decorrentes do direito internacional”.
Uma instância reproposta à cúpula dos chefes de estado do Conselho da Europa (Reykiavik, 17 de maio):
“Onde estão os esforços criativos pela paz? (…) Junto com o Papa Francisco deveríamos perguntar, com a Ucrânia, como criar a paz. Não podemos aceitar passivamente que a guerra de agressão continue naquele país. É o povo ucraniano que está morrendo e sofrendo. É hora de tomar iniciativas para criar uma paz justa na Ucrânia e em todas as chamadas zonas ‘cinzentas’ da Europa. Garanto-vos que a Santa Sé continuará a fazer a sua parte”.
Mais recentemente, após a visita de Zelenski a Roma, tornou-se pública a iniciativa de enviar um delegado papal para discutir a possibilidade de negociar uma trégua na guerra. Depois de uma hipótese inicial de um duplo delegado a Kiev (monsenhor Matteo Zuppi) e a Moscou (monsenhor Claudio Guggerotti, prefeito do dicastério das Igrejas Orientais), decidiu-se enviar o cardeal Zuppi a ambas as capitais com a tarefa de liderar a missão, em acordo com a Secretaria de Estado, para aliviar as tensões do conflito, na esperança de novos percursos de paz.
Como já notado, as críticas à diplomacia vaticana tornaram-se muito insistentes.
Regina Elsner (Münster) considera a abordagem do Vaticano um pouco ingênua, pouco ciente da posição incompatível de Kirill e do imperialismo russo. François Mabille (Paris) acredita que “a Santa Sé saia de 15 meses de conflito enfraquecida pela atitude do Papa e fragilizada em seus recursos tradicionais”.
Para Nona Mikhelidze (Instituto de Assuntos Internacionais): “Na Ucrânia, a guerra de hoje é percebida como uma luta anticolonial pela sobrevivência física contra o invasor russo, pela liberdade e pela Europa. É precisamente por causa desse contexto militar, político e social que a diplomacia vaticana fracassou e é improvável que terá sucesso no futuro, exceto em temas humanitários relacionados à guerra" (La Stampa, 17 de maio).
Para a teóloga francesa Anne-Marie Pelletier, “o Vaticano está tendo dificuldades para definir as coisas com precisão e manter uma posição clara”. Falando com demasiada facilidade sobre conciliação, equiparando os dois países, querendo visitar Moscou e Kiev ao mesmo tempo (Le Monde, 20 de maio).
Enquanto isso, o Patriarca Kyrill parece ter cortado os laços atrás de si. Não só oferece uma plena justificação religiosa para a violenta guerra de agressão, mas também anexa à sua jurisdição as dioceses da Crimeia e, mais recentemente (16 de maio) a diocese dos territórios ocupados de Berdyansk (apesar das críticas da Igreja não autocéfala que afirma querer defender).
Até o patrimônio iconográfico é posto à disposição do consenso à guerra. O ícone de maior prestígio da tradição ortodoxa (a Trindade de Andrej Rublëv) foi tirado do museu para ser exibido na catedral de Cristo Salvador de Moscou e depois, de forma permanente, na Igreja da Trindade da lavra de São Sérgio.
As relíquias do mártir São Jorge, protetor do exército, visitarão 100 cidades e 89 regiões da Rússia para pedir "para fortalecer nosso exército, nossos líderes e dar coragem ao nosso povo".
Nesse esforço de unidade nacional, Kyrill também pede o consenso aos muçulmanos. Num discurso no Tartaristão (20 de maio), perante os principais líderes do Islã russo e personalidades muçulmanas da Arábia Saudita, Irã, Kuwait, Indonésia e Egito, recordou a crescente cooperação com o mundo islâmico por parte da Rússia: “Estamos nos aproximando mais, porque os nossos povos professam valores morais e espirituais semelhantes. Não compartilhamos os comportamentos sociais e a moralidade impostos pelo Ocidente".
É uma guerra de civilização que desafia o Ocidente e, sobre isso, o patriarca pede o consenso do mundo islâmico.
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Diplomacias eclesiais para a Ucrânia. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU