24 Mai 2023
A missão vaticana à qual Francisco fez referência ao voltar da Hungria e a visita do presidente Zelenski ao Vaticano indicam, em minha opinião, que Francisco está buscando urgentemente – já que a ONU não está fazendo mais nada – uma terceira parte capaz de mediar a situação da Ucrânia: tanto a China, se realmente quiser, quanto o “grupo africano” – não importa.
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 21-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Acho isso porque, para Francisco, a paz não é uma ideologia e, portanto, nunca é contra alguém, mas é uma realidade próxima à qual todos no mundo podem dar forma. Tanto é verdade que até o pacifismo ideológico – aquele de um lado militante contra outro considerado demoníaco desde sempre – só pode produzir uma rendição cheia de rancor, mas não a paz.
Tento explicar a minha compreensão sobre Francisco.
Uma palavra parece dominar novamente no tempo presente: etnia. Ela representa a rota de fuga ao passado para muitos que estão assustados com as potencialidades – oferecidas, mas não efetivamente exploradas – da globalização, que já se transformou em colonização financeira.
O desvio neocolonialista que não apagou a pobreza das massas, embora beneficiou sobretudo as potências da China e da Índia, evidentemente induziu muitos a se voltarem para trás, ou seja, a buscarem refúgio no fechamento identitário, étnico e nacionalista. De novo.
Daí as doenças crônicas de um sistema que continuamente gera novos perigos, com poderes multinacionais dotados de orçamentos superiores aos dos Estados de dimensão média ou o revés oposto das fronteiras bem fechadas, dentro das quais é possível se refugiar nas identidades étnicas puras e, portanto, racistas. É a encruzilhada mortal entre globalismo e localismo.
O fato de o atual adversário de Erdogan na Turquia, Kilicdargolu – inapropriadamente chamado de Ghandi turco –, pedir a expulsão de todos os refugiados, não apenas dos sírios, a fim de obter votos nos mostra como isso é verdade.
Essas duas visões do mundo em guerra estão, da mesma forma, em guerra com a ideia fundamental de fraternidade levada a todos os lugares por Francisco, o único símbolo “branco” da paz que resta em todo o mundo; o único que continua vendo as deformações avassaladoras da globalização real, mas para corrigi-las e impedir o retorno a um identitarismo étnico, fechado, xenófobo.
Embora superficialmente, quero partir das causas do conflito na Ucrânia.
O expansionismo da Otan perpetua uma visão unipolar do mundo e a incapacidade – por esquecimento ou negligência – de envolver Moscou na nova ordem – multipolar – mundial. No entanto, é verdade que muitos países – ex-satélites de Moscou – viram no expansionismo militar ocidental uma proteção para suas liberdades recém-adquiridas.
Hoje vemos que uma maior disponibilidade a criar mecanismos plurais de garantia e de segurança teria beneficiado a todos. Isso poderia ter freado, na raiz, as pretensões e as etapas da reconquista do imperialismo russo: a campanha da Chechênia, depois a da Geórgia, depois a da Crimeia, depois a da Síria – com bombardeios que, em comparação, os atuais parece quase leves –, depois a da Ucrânia. Provavelmente, tudo isso poderia ter sido evitado com maior firmeza e, ao mesmo tempo, com uma disponibilidade a oferecer garantias de segurança para todos.
Eu li a tese de que a Rússia e a Otan podem ter entrado na espiral do jogo da dissuasão recíproca. Não me parece uma teoria passageira. Não é possível absolver apenas um e não é possível condenar apenas um no atual desastre. Evidentemente, não foi apenas a Otan que forçou a barra. Pelo contrário: Moscou exigiu, cada vez mais, uma soberania limitada para seus desafortunados vizinhos. Incapazes de oferecer garantias, ela se encontrou sozinha diante da expansão da Otan. Claramente, essas não podiam ser as premissas de um mundo melhor.
Quando a história demonstrou que Washington “não tinha tempo” para se dedicar a Moscou, Putin começou a se inquietar. Sua estratégia foi subestimada. Com sua energia fóssil, ele construiu um santuário de pressão econômica sobre a Europa e, quando conseguiu obter um superávit financeiro de nada menos do que 650 bilhões de dólares, ele se sentiu confiante de que tinha a Europa em suas mãos.
Depois, ele viu a saída do palco da compreensiva Angela Merkel e os exercícios militares da Otan se estenderem ao território ucraniano. Em 2021 – para ele – chegou a oportunidade de jogar tudo pelos ares: a hora de jogar – repetidas vezes – a carta etnonacionalista, aquela que substitui a cidadania pelo pertencimento atávico ao suposto grupo étnico, aquele puro.
A deriva já havia demonstrado sua força destrutiva na ex-Iugoslávia: um trágico sinal de alerta sobre o totalitarismo que provinha dos diferentes e opostos suprematismos; uma ideologia centrífuga que vê o inimigo no estrangeiro e, portanto, prepara a exclusão e a discriminação.
Mas o etnonacionalismo é apenas a resposta neofascista global a uma globalização governada de modo cego e arrogante pelas grandes finanças. Vimos uma frente anti/globalista no mundo se fundir, a qual, para ser derrotada, deve primeiro ser compreendida.
Há diversos anos, não recentemente, Putin disse que o muro que está sendo erguido entre a Ucrânia e a Rússia equivalia ao uso de armas de destruição em massa, porque separaria um único território, um único grupo étnico, tradições antigas e imutáveis. A partir dessa ideia, ele deduziu que toda a Ucrânia fazia parte da Santa Mãe Rússia, que todos os russófonos devem permanecer russos na alma por toda a vida e que, portanto, a Ucrânia não existe.
Essas suas certezas revelaram-se manifestamente infundadas: porque muitos russófonos se alinharam contra a Rússia e seus métodos de guerra, e o povo ucraniano demonstrou que existe como tal. São os povos, e não os acadêmicos – nem os políticos megalomaníacos – que decidem o que existe ou não.
Mas o etnonacionalismo desencadeado por Putin contra a Ucrânia ganhou força mesmo assim, porque já estava muito presente em um mundo assustado com a globalização real. Esta está levando à falência de Estados inteiros que não podem pagar suas dívidas internacionais, não apenas devido à inapresentabilidade de seus governos, mas também devido às regras de rapina – permitidas por Washington –, aos famosos hedge-funds que especulam a preços usurários sobre as dívidas do Terceiro e do Quarto Mundo.
Voltando ao assunto: o único que defendeu a perspectiva de uma globalização respeitosa da diversidade – não uniformizante e achatada pelas grandes finanças – foi Francisco. De fato, tanto os defensores da globalização pirata quanto os promotores dos etnonacionalismos estão irritados com ele.
Tanto a unipolaridade financeira quanto o etnonacionalismo ameaçam a democracia no mundo: prova disso são os slogans de Trump, de Bolsonaro, de Erdogan. Prova disso é a sutil política imperial “persa” do Irã dos mulás e o substancial fundamentalismo do indiano Narendra Modi.
O etnonacionalismo esteve na base não só das mencionadas guerras balcânicas, mas também do genocídio ruandês. O etnonacionalismo usa os desastres da globalização real, suas cegueiras liberais, para impedir a transformação poliédrica da globalização, aquela que Francisco indicou como a verdadeira esperança, desde o início de seu pontificado.
Os etnonacionalismos estão bem difundidos também na Europa. Quem vê invasores nos refugiados cai na cultura de Milosevic. A agressão de Putin talvez tenha tornado a ostentação etnonacional menos oportuna na Europa, mas Le Pen e, em grande parte, Orbán não se deixaram desanimar tanto, ao que me parece.
É por isso que eu digo que esta guerra, em particular, é uma guerra contra Francisco, contra aquilo que Francisco representa. Pode parecer uma afirmação “forte demais”, mas, no fundo, para mim, é exatamente isso.
Putin defende seu etnonacionalismo de marca totalitária e czarista mobilizando os russos contra o Ocidente, o eterno prevaricador ansioso por impor sua ordem mundial e sua cultura. É claro que há alguma verdade nisso. A postura militar fortalece o etnonacionalismo russo ou eslavo, como já ocorreu com os árabes que, humilhados em suas derrotas, alimentaram durante anos a ideologia da redenção, que chegou até Bin Laden.
O fio etnonacional russo que deveria levar Moscou até Lviv e talvez até ao Báltico em nome da compacidade do Russki mir é a mesma ideia acalentada por Erdogan com seu sonho de uma união turcófona até às portas de Pequim, ou pelos mulás que do Irã querem refazer o império persa até ao Mediterrâneo. Mas mesmo o Ocidente demonstra, por um lado, medo e fechamento e, por outro, uma ânsia de poder.
Pensar uma ordem multipolar levará muito tempo, se uma transformação da globalização não decolar: como erradicar o atalho etnonacionalista? Com armas por toda a parte?
Francisco – ao contrário de Kirill – não se sente investido pelo messianismo cristão que pretende salvar o mundo até com as armas. Não está preocupado em ser um “coroinha de Biden”, nem mesmo pela parte de boa razão que o Ocidente possa ter. Sua Igreja é verdadeiramente universal, aberta, “em saída”: sua Igreja não pode e não quer voltar a ser a Igreja do Ocidente.
A tentativa até obstinada de Francisco de desarmar – e curar – o etnonacionalismo russo não significa, de forma alguma, que ele “lhe dá razão”, mas sim que ele quer tentar tirar de seu coração o ódio com que os vários Dugin, até mesmo o patriarca e também muitos bispos e padres – mas nem todos – estão envenenando a cultura russa e a fé cristã na Rússia, que certamente existe.
Parece-me que Francisco está tentando de todas as formas romper a síndrome de cerco que Putin está usando, com sua propaganda generalizada, para subjugar os russos. E ele faz isso dizendo: “Ninguém odeia os russos: por favor, vamos discutir tudo; é possível!”.
Parece haver dois caminhos para toda mediação política: respeito ao direito internacional e garantias de segurança para todos. O diálogo inter-religioso pode nos aproximar desse sonho, porque envolve o reconhecimento de que o pluralismo faz parte do desígnio divino, que nos fez diferentes.
No entanto, todos os líderes etnonacionalistas demonstram ter um interesse sinistro pela religião fundamentalista, como serva de seu poder. Francisco representa a alternativa, porque quer falar com todos. Em vez disso, a globalização financeira e hiperliberal se transforma em uma religião global.
A corrida dos extremismos opostos – e também a luta entre belicistas e pacifistas – é contra a fraternidade humana universal que ele sempre leva em frente: nem pode entregar o agredido ao agressor, nem pode condenar o culpado a uma solidão sem remédio.
As iniciativas chinesas e africanas também parecem boas para Francisco – das quais ele talvez esteja mais ciente do que nós –, porque há a necessidade, o máximo possível, de mediadores terceiros, que entendam e estejam prontos para entrar em sua ótica propriamente religiosa: propriamente terceira.
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A diplomacia do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU