18 Março 2024
Incerteza, solidão, marginalização. São os males de que sofre a nossa sociedade e que, hoje, podem expor os mais frágeis a patologias psiquiátricas. A 46 anos da Lei 180 [sobre a saúde mental na Itália] e a 100 anos do nascimento de Franco Basaglia, o psiquiatra que “virou o mundo de cabeça para baixo”, o caderno La Lettura tentou entender qual é a herança dessa lei e quais são os “novos” transtornos psiquiátricos.
A reportagem é de Jessica Chia, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 10-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quem nos acompanha nesta jornada é o psiquiatra Giancarlo Cerveri (Milão, 1970), diretor do Departamento de Saúde Mental e Dependências da ASST (unidade sociossanitária territorial, na sigla italiana) de Lodi. Do pavilhão Bignami do Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento (SPDC) do hospital de Codogno (para chegar lá, é preciso passar pelo pronto-socorro onde foi descoberto o primeiro paciente de Covid em 2020 na Itália), Cerveri ilustra como funciona um departamento de psiquiatria: “Temos 15 leitos para pacientes agudos (por exemplo, quem chega com tratamento de saúde obrigatório ou quem está em risco de suicídio) para cerca de 240 mil habitantes da província. Na Itália, temos um dos números mais baixos de leitos para casos agudos da Europa. Na Bélgica, chega-se a seis vezes mais. Quando a Lei 180 foi estruturada, era preciso haver um para cada 10 mil habitantes. Mas essas internações são poucas em comparação com as necessidades reais”.
O pavilhão fica em uma área separada do hospital porque, explica Cerveri, esta é uma herança histórica: até o século XX, existiam três instituições isoladas: os leprosários, os sanatórios para os tuberculosos e os manicômios, que permaneceram separados até o fim do século passado.
“Atendidos na psiquiatria (excluindo as dependências), temos 2.700 pessoas por ano, entre os 18 e os 65 anos de idade, tratadas pelos serviços de saúde mental. Até 2019, eram cerca de 2.300. O número de consultas psiquiátricas no pronto-socorro, que antes era de cerca de 900 por ano, em 2023 foi de 1.300”.
O efeito Covid deve ser levado em consideração, mas houve um aumento de pedidos em toda a Itália, afirma o diretor. E esses 2.700 pacientes são mais mulheres, “porque pedem ajuda com mais frequência, e há um predomínio de depressão, ansiedade, transtornos alimentares. Os homens estão mais expostos ao abuso de substâncias e são, em sua maioria, autores de crimes com patologias psíquicas”. As patologias mais frequentes dos atendidos são depressão, esquizofrenia, transtornos de personalidade.
Os serviços atuais foram pensados, após o fechamento dos manicômios, para uma população que era conhecida e estável. Com o passar do tempo, porém, houve mudanças radicais, explica Cerveri. Hoje, são identificadas quatro principais. A primeira diz respeito ao abuso de substâncias: “No passado, havia abuso de opioides, como a heroína, que tem um efeito calmante, mas não é uma substância irritante para o sistema nervoso central. Nos últimos 20 anos, aumentaram as substâncias que causam paranoia, anomalias comportamentais e amplificam o risco de desenvolver patologias psiquiátricas. Hoje, quem abusa de cocaína, metanfetamina, canabinoides e tem graves anomalias comportamentais acaba na psiquiatria. Isso significa que um número de leitos já reduzidos está ocupado por um problema que antes não existia”.
Outra questão é a dos migrantes, que estão “expostos a condições traumáticas, muitas vezes aterradoras, como a da viagem. Existem elementos de desespero que levam a um transtorno do pensamento e do comportamento, porque entram em conflito com um contexto do qual se sentem rejeitados, expulsos e no qual não conseguem se integrar. O resultado é que, depois, eles põem em prática comportamentos agressivos e irracionais. E a resposta da polícia é trazê-los até nós”.
O aparecimento precoce de patologias psiquiátricas (15-16 anos) também é um tema atual e pouco presente na época da Lei 180 (entre as hipóteses para esse aumento: as mudanças nos hábitos de sono; o acesso precoce a entorpecentes; ambientes familiares que levam a um diagnóstico precoce). “Lidamos cada vez mais com menores que têm problemas de comportamento, distúrbios com alterações de humor e o risco de suicídio. Além disso, abusam de substâncias. Muitas vezes não temos respostas adequadas e somos forçados a interná-los”.
Sobre o tema dos jovens, Cerveri também explica quais são as patologias ligadas ao uso excessivo da internet e das mídias sociais: “além do fenômeno dos hikikomori (pessoas que se isolam do mundo), essas formas de dependência se inserem em distúrbios mais gerais. Estamos falando de crianças e adolescentes que têm transtornos de ansiedade e que muitas vezes associam seu desempenho e seu valor à eficácia que têm nas redes sociais digitais, que se tornam um elemento perturbador em sua vida”.
Por fim, há os pacientes que são autores de crimes, que, após o fechamento dos hospitais psiquiátricos judiciários em 2015, passam a ser acolhidos nas REMS (residências para execução de medidas de segurança) que, no entanto, “não existem em um número suficiente, e há uma lista de espera em toda a Itália para entrar. Essas pessoas são assim confiadas aos serviços de saúde mental, que, no entanto, não têm recursos e preparação para responder, também no que diz respeito às medidas de segurança.
Depois, há a questão da violência sofrida por trabalhadores e pacientes, como o caso de Bárbara Capovani, morta em 2023 por um de seus pacientes, cuja internação havia sido ordenada pela autoridade judiciária, à espera da REMS. Isso também explica o medo e um pouco de descontentamento também devido à carga excessiva de responsabilidade, razão pela qual também temos um problema com o recrutamento de pessoal”.
Sobre isso, acrescenta o psiquiatra Antonio Calento, que trabalha no SPDC especialmente com infratores, “a lei Basaglia havia retirado da psiquiatria o papel de tutela dos pacientes do ponto de vista da periculosidade. Nos últimos anos, porém, estamos voltando a esse caminho, e nos é dada a tarefa de realizar uma medição em um local onde ela não deveria ser realizada”.
Cerveri acompanha o La Lettura na visita à comunidade de reabilitação de alta assistência (CRA, na sigla italiana) de Lodi, ou seja, a residência para internamentos prolongados, com 16 leitos (há também um centro diurno), onde chegam pacientes pós-agudos ou de reabilitação.
A psiquiatra responsável Elisabetta Pionetti apresenta a estrutura, inaugurada em 1998 para receber pacientes do instituto manicomial feminino, e que hoje abriga internações que variam de 18 a 36 meses, para uma faixa etária de 18 a 50 anos.
“Chegam aqui pacientes em uma fase muito ativa – explica Pionetti – que perderam habilidades, e trabalhamos em todas as frentes, incluindo a da formação profissional e da inserção com as entidades locais. Trabalhamos com patologias graves: transtornos psicóticos, esquizofrênicos, de personalidade e formas depressivas e bipolares”.
Os internados atuais são maioritariamente homens com situações sociais difíceis, com coabitações familiares impossíveis de reativar ou com níveis de autonomia deteriorados. “Neste momento, também temos três pessoas em medidas de segurança. Os estrangeiros aqui são uma carga de trabalho importante para nós, porque o juiz continua renovando a medida até que tenham um teto e uma atividade, o que é impossível, porém, sem a autorização de residência”.
Em quase 30 anos de atividade, explica Pionetti, muitas coisas mudaram, como a desconfiança externa: “No início, não conseguíamos encontrar apartamentos para alugar aos pacientes. Agora estamos discutindo a inserção no mercado de trabalho com a província e com as entidades. E fazemos divulgação, até mesmo com as crianças, para sensibilizar contra o estigma social”.
A pé, chegamos com Cerveri ao CPS (centro psicossocial) de Lodi que, de forma simplificada, corresponde às clínicas de psiquiatria. É Marco Vercesi, psiquiatra, quem nos apresenta esta outra realidade: “nos últimos anos, em comparação com os quadros psicóticos esquizofrênicos narrados pela experiência manicomial, os usuários são variados. Identificamos algumas áreas críticas acompanhadas pelas equipes: autismo em adultos, com diagnósticos crescentes, assim como crescem os de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), em relação aos quais, na Itália, até cerca de dez anos atrás, não estávamos muito preparados. Ou a depressão resistente, ou seja, quadros de depressão de longa duração que não respondem a uma série de terapias farmacológicas”. E ainda antes da Covid, acrescenta Vercesi, aqui tinha nascido o Centro Juvenil (18-25 anos) para identificar, por exemplo, situações de início de esquizofrenia.
É a psiquiatra do CPS, Maria Marasco, quem esclarece este trabalho: “o desejo de Basaglia era reintroduzir no tecido social os internados em manicômios e, principalmente, em suas famílias, onde nascem o desconforto e a dor. Procuramos dar apoio a eles e àquelas situações que antes só encontravam uma certa paz com o distanciamento. A diferença entre o pré e o pós-Basaglia é que tudo tem um começo e um fim, não há mais pessoas que tenham uma ‘sentença sem fim’ em relação aos tratamentos”.
Com Cerveri, tentamos então olhar um pouco mais de cima para as causas dos mal-estares na nossa sociedade: “Um tema relevante – diz ele – é a incerteza quanto aos equilíbrios que o nosso país alcançou, como o clima, a geopolítica, o declínio da fertilidade... Isso cria um estresse de fundo na população, tornando os frágeis mais expostos ao sofrimento de uma patologia psiquiátrica, como aconteceu com a Covid. O risco da incerteza é de perder o nosso presente e as oportunidades do futuro. Outro tema que vemos em toda a população, mas principalmente entre os idosos, é a solidão. Somos animais sociais e precisamos de relações para nos sentirmos bem. Vimos isso com a Covid: sair do isolamento foi diferente para um jovem de 14 anos e para um adulto de 67 anos. Isso também vale para os jovens que se isolam: quando você é rejeitado pelo grupo, a solidão se torna avassaladora”.
“O aspecto mais difícil do meu trabalho – responde Marasco – é convencer o paciente de que ele tem pleno direito, com todos os direitos e como todos os outros, dentro da sociedade. E voltamos à superação do estigma que nós, psiquiatras, também sofremos”.
Cerveri conclui: “é difícil trabalhar sem ter os instrumentos para ajudar as pessoas. E, se a pessoa não se cura, é frustrante. Depois da lei Basaglia, faltou a narrativa para nós, psiquiatras: não conseguimos contar o que está acontecendo, somos vistos ora como os violentos que amarram as pessoas, ora como os que liberam sujeitos perigosos. Porém, a quantidade de pessoas que nos pedem ajuda e de quem depois se sente melhor não diminui. E não se investe em saúde mental porque é uma área que não agrada”.
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Quando a solidão é uma doença - Instituto Humanitas Unisinos - IHU