06 Mai 2017
“É um grande sábio, misericordioso como pessoa e como moralista, e uma pessoa livre, ainda que, por causa disto, teve que pagar um preço alto”. Foi dessa forma que Antonio Ávila, diretor do Instituto Superior de Pastoral, apresentou o teólogo redentorista Marciano Vidal (San Pedro de Trones, 1937), antes que palestrasse sobre a Amoris Laetitia no II Colóquio de PPC e do ISP, ocorridas em Madri.
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 05-05-2017. A tradução é do Cepat.
E Marciano Vidal não desapontou, apresentando uma leitura da Amoris Laetitia clara, direta, pedagógica e muito livre. Com a santa liberdade que os anos oferecem e a consciência de ser assistido pelos novos ventos que sopram de Roma, por obra e graça do Espírito e do Papa Francisco.
O moralista espanhol, discípulo de Bernard Haering, foi o grande renovador da moral, fazendo-a passar da casuística à ‘moral de atitudes’, nome de uma de suas obras mais famosas. Uma obra que, no pós-concílio, foi a palavra de ordem para padres e seminaristas e depois, na era da involução, foi quase proscrita e seu autor chamado à ordem por Roma. Mas, Marciano sofreu em silêncio e o passar do tempo e o novo pontificado de Francisco vieram lhe dar a razão e lhe reabilitaram de fato.
Sua conferência tinha como título Amoris Laetitia: para um novo paradigma eclesial do matrimônio. Com particular atenção às situações especiais. E o professor, em magnífica forma física e mental, começou sua brilhante exposição sobre “este texto maravilhoso do Papa Francisco”.
Iniciou sua fala reconhecendo que “há um conflito de interpretações”, que “corresponde a diferentes eclesiologias”. Daí que este conflito constitua “uma radiografia das diversas tendências eclesiológicas da Igreja atual”. Desde os que querem “seguir na dinâmica do poder” aos que pretendem seguir “entre uma ribeira e outra do rio”, passando pelos que apostam em uma “Igreja normal e simples, que aceita o que diz o Papa”.
De entrada, também destacou que no texto da exortação papal se notam perfeitamente diferentes motes. “O capítulo sobre o amor é belíssimo; o da Sagrada Escritura, mais solto; o da educação sexual, inovador e o oitavo, o que mais conflitos criou”.
O documento se inscreve no “contexto do magistério do Papa Francisco”, com “quantidade enorme de documentos”. Entre eles, o programático: a Evangelii Gaudium e a Amoris Laetitia, que é “um dos mais valiosos”.
Após analisar o contexto, Marciano Vidal se perguntou se há inovações no texto do Papa Francisco. Respondeu que sim e as foi apresentando. Primeiro, do ponto de vista da moral. Nesta perspectiva, não hesitou em afirmar que “a Amoris Laetitia é o contrário da Veritatis Splendor, ou seja, um texto que desejávamos como reparação a esse outro que freou a renovação da Teologia Moral do Vaticano II”. E, para apoiar sua tese em argumentos de autoridade, recorreu à opinião do cardeal Schönborn (o apresentador do documento papal), dos teólogos jesuítas de Boston e dos teólogos alemães.
A partir de uma perspectiva mais geral, as inovações da Amoris Laetitia são evidentes, segundo o moralista espanhol. Primeiro, inovações de caráter geral. Por exemplo, a “visão realista”, baseada no princípio da encarnação; uma nova linguagem, “outra maneira de escrever”, uma forma nova de se pronunciar, que chamou “evento linguístico, com um castelhano precioso”; e o conteúdo de “caráter positivo e propositivo”.
Entre as inovações destacou, além disso, “a confirmação (com acréscimo) de opções de progresso já existentes”, como o pecado estrutural, a hierarquia das verdades dogmáticas e morais (“coisa que incomodou a muitos”), o “amor como núcleo definidor do matrimônio (e da família) ” e “a integração positiva da sexualidade”. Este último aspecto é, em sua avaliação, “o mais chamativo para o povo, a maior inovação”.
Além das inovações, o texto apresenta “perspectivas implícitas”, assim como “silêncios, especialmente sobre a ética da procriação”. Segundo Vidal, talvez para não se meter em mais problemas, o texto do Papa “não fala da procriação, que é um dos problemas que a Humanae vitae” de Paulo VI traz para a Igreja. Em sua avaliação, esta encíclica “não é praticada, em absoluto”, e seria necessário renová-la, no sentido em que o fizeram os anglicanos, aceitando que os casais escolham “os métodos contraceptivos”.
Outro silêncio da exortação é o referente à homossexualidade, ainda que, como comentou Vidal, com seu fino sentido de humor, “sobre esse tema o Papa já fez uma encíclica, em uma frase”.
De qualquer modo, com silêncios e inovações, a Amoris Laetitia aponta “para um novo paradigma eclesial (teológico-pastoral) de matrimônio”, que supera os paradigmas históricos: o parenético, da época patrística; o ontológico-sacramental, da Idade Média; o jurídico-moral, do período pós-tridentino, e o jusnaturalista, da teologia neoescolástica da época contemporânea.
Em sua avaliação, o Papa abandona o paradigma baseado no direito natural, assim como a concepção canônico-jurídica do matrimônio, com “a qual muitos lucraram”. Por isso, o Papa quer que as nulidades “não sejam uma ocasião para ganhar dinheiro” e que “se abandonem os resíduos da colonização do sistema canônico que tivemos até agora”.
Na segunda parte de sua fala, Marciano Vidal abordou o tema estrela da Amoris Laetitia, o que “esperava a opinião pública e a publicada: que o Papa dissesse se os divorciados recasados podem comungar ou não”.
A primeira novidade, quando saiu o documento, foi que a Amoris Laetitia não foi apresentada pelo cardeal Müller, presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, mas pelo cardeal Schönborn, o que, sem dúvida, “incomodou o purpurado alemão”.
Tanto o prefeito da Doutrina da Fé, que os apoia, como os quatro cardeais que deram a cara (os conhecidos como ‘cardeais das dúvidas’) “afirmam que se opõem ao que disse o Papa com base na Familiaris Consortio, porque acreditam que esse texto é definitivo”. Também, entre os ‘resistentes’, citou os teólogos do Instituto Matrimônio e Família João Paulo II.
E o moralista acrescentou: “Fui companheiro de estudo de um desses cardeais, Carlo Cafarra, já então preparadíssimo, mas que já tinha suas coisas. Como um cardeal tão preparado pode dizer algo assim? A Familiaris Consortio diz que os divorciados em segunda união são cristãos como todos os demais, mas não podem participar da comunhão eucarística. Ou, sendo mais preciso, diz que, sim, podem comungar, caso vivam como irmãos. Portanto, a razão não está na teologia do matrimônio, mas, sim, na sexualidade”.
Segundo Vidal, “é falso dizer que o Papa vai contra a doutrina do matrimônio ou que vai contra a indissolubilidade ou contra a Veritatis Splendor, como prova, em um excelente livro, o cardeal Coccopalmerio”.
De fato, para abordar a questão dos divorciados recasados, no Sínodo foram apresentadas várias soluções. Em primeiro lugar, a do cardeal Kasper, que pedia aos divorciados que se colocassem em um caminho penitencial e que a comunidade determinasse sua participação na eucaristia.
A segunda consistia em que o Papa adotasse “uma postura de caráter normativo” e dissesse explicitamente em que condições podiam comungar os divorciados recasados. A terceira mantinha que se continuasse com a Familiaris Consortio, pedindo aos divorciados que vivessem como irmãos.
O Papa optou por uma quarta solução: Discernimento e opção de consciência, tendo sempre em conta que, como costuma dizer, “a confissão não é uma câmara de tortura”, nem a comunhão “um sacramento para perfeitos”. Portanto, “os divorciados em segunda união podem comungar”. E para avalizar sua afirmação, o moralista citou o documento dos bispos da região de Buenos Aires e a resposta do Papa, dizendo que sua interpretação do texto, que se move nestes parâmetros, é a única válida.
É chamativo, no entanto, para Marciano Vidal, que nenhum conferencista episcopal do mundo tenha se pronunciado na íntegra sobre a questão dos divorciados recasados. Exceto alguns bispos alemães, a favor da comunhão dos divorciados. E exceto três bispos espanhóis (López de Andújar, Rico Pavés e Reig Pla), que se posicionaram contra e que “passaram por vários lugares até chegar a Alcalá”.
Firme partidário da solução papal, Marciano Vidal apresentou quatro critérios de discernimento para acompanhar no processo de incorporação à comunhão dos novos divorciados em segunda união. “Que não sejam ofendidos direitos de terceiros; que a nova situação seja mais cristã e mais correta; que não haja escândalo na comunidade, e que não se queira comungar por prestígio social”. Seguindo estes critérios, “a decisão é do crente leigo, sem que seja nem sequer obrigado a recorrer ao diálogo pastoral com o sacerdote”. Obrigado, mestre sábio e livre.
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Marciano Vidal: “Os divorciados em segunda união podem comungar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU