20 Setembro 2024
O Pe. Gerald O'Collins faleceu em Melbourne em 22 de agosto, aos 93 anos. Jesuíta por 74 anos e sacerdote por 61 anos, o Pe. O'Collins foi um teólogo de renome internacional. Professor de longa data na Gregoriana, onde lecionou disciplinas teológicas por 33 anos — especialmente cristologia e teologia das religiões —, também atuou como decano da Faculdade de Teologia, aposentando-se em 2006. Publicou mais de 70 volumes e inúmeros artigos especializados. Para homenageá-lo, retomamos uma entrevista que ele concedeu em 2015 à revista America por ocasião da publicação da nova edição de sua Cristologia. A entrevista é editada por Sean Salai, jesuíta e colaborador de America (02-12-2015).
A entrevista é de Sean Salai, publicada por America e reproduzida por Settimana News, 18-09-2024.
Prof. O'Collins, o senhor publicou recentemente a sequência do seu primeiro livro sobre cristologia. O que o inspirou a escrever um segundo livro sobre o tema?
Meu primeiro livro sobre cristologia, agora em edição revisada pela Oxford University Press, tinha como objetivo fornecer aos alunos e professores um ensinamento de base. Isso significava que eu tinha que tratar as questões bíblicas, históricas e teológicas fundamentais. Depois, o ilustre diretor da Baylor University Press, Dr. Carey Newman, quis um livro meu e eu pensei: “Sim, vale a pena traçar um mapa dos debates recentes sobre Jesus, ilustrando como Pedro e Paulo representam guias fundamentais para a fé Nele e fazendo um balanço de algumas das questões que se referem ao diálogo vital de hoje com outras religiões”. E assim publiquei meu recente Christology.
Do que trata a cristologia e o que é mais importante para os católicos saberem a esse respeito?
Na cristologia, nos questionamos: “Quem foi e quem é Jesus?” e “O que ele fez por nós e pelo nosso mundo?” As respostas que damos moldam o significado de nossa identidade como cristãos e como católicos. Se não entendermos Jesus da maneira correta, não entenderemos a Igreja da maneira correta.
Na nova edição de sua Christology, que lições e ensinamentos extrai dos debates mais recentes nesse setor?
Eu gostaria de mencionar três. Primeiro, Larry Hurtado e outros estabeleceram com certeza que, desde o início, Jesus é reconhecido e adorado como realmente divino. Em segundo lugar, a cristologia de Jon Sobrino e de outros teólogos da libertação enfatizou fortemente a importância de transformar a sociedade por meio da prática da justiça e da paz. Em terceiro lugar, Hans Urs von Balthasar incentivou o reconhecimento da beleza de Cristo como ponto central.
O senhor é um teólogo sistemático. O que significa e o que distingue sua abordagem nesse campo?
A teologia sistemática visa esclarecer os conceitos, fazer perguntas centrais e organizar os dados fundamentais da fé cristã em um todo coerente. Desde o início de minha carreira, tenho me baseado nas Escrituras e nas fontes históricas, valendo-me dos filósofos mais importantes. Além disso, sempre tentei usar uma linguagem direta e acessível em meus livros e artigos. É lamentável que muitos teólogos continuem a escrever em uma linguagem complicada que não consegue comunicar com clareza.
Pesquisas recentes mostram que os jovens católicos desejam uma experiência de Deus que venha da religião e não de um conjunto de princípios. O Papa Francisco parece reforçar essa atitude quando fala da fé em termos de um encontro com Jesus Cristo, que é verdade. Dada a ênfase na primazia das relações sobre os conceitos, como o senhor descreveria o papel da teologia na Igreja de hoje?
Grande parte da teologia católica já conta com o apoio de excelentes conhecimentos bíblicos e da pesquisa histórica, sem mencionar as contribuições das ciências humanas e naturais. Mas a teologia deveria ser mais relacional, experiencial e de oração. Isso significa imitar os cristãos do rito oriental, permitindo que o Espírito Santo traga à tona o melhor de nossas experiências e relações, colocando assim a teologia a serviço do culto comum e da oração pessoal. A teologia ocidental ainda precisa abrir mais espaço para o “Deus que está no meio”.
Em suas cinco décadas de atividade como teólogo acadêmico, quais foram os desenvolvimentos e as mudanças mais importantes a que assistiu na teologia católica?
A teologia católica passou por mudanças radicais quando deixou de ser, em grande parte, um monopólio masculino e clerical. Alicerçada pelo crescimento dos estudos bíblicos e históricos, ela geralmente deixou para trás uma escolástica abstrata e se uniu ao beato John Henry Newman na investigação de como o ensino da Igreja realmente se desenvolveu ao longo dos séculos. A competência teológica passou basicamente da Bélgica, França e Alemanha para os Estados Unidos.
Do seu ponto de vista, o que a teologia católica mais precisa hoje?
Impulsionados pelas exigências pastorais de nosso mundo e de nossa Igreja, muitos teólogos emergentes relutam em aprender as línguas, antigas e modernas, e em se empenhar na pesquisa exigida por sua vocação. A teologia católica precisa, mais do que nunca, de homens e mulheres prontos para se dedicar a estudos desafiadores.
O magistério, ou seja, a autoridade de ensinamento dos bispos unidos ao papa, muitas vezes restringe os teólogos por motivos pastorais, para proteger os fiéis de teorias que parecem demasiado novas ou não suficientemente comprovadas. Que dom o magistério oferece aos teólogos?
Os bispos não apenas guiam a Igreja, mas também representam um grande número de fiéis de toda ordem e grau. Constituem um júri ao qual os teólogos devem recorrer para verificar os resultados de seus estudos e de suas novas intuições. O diálogo com os bispos ajuda a garantir uma teologia saudável.
Muitos teólogos jesuítas, especialmente nos anos anteriores ao Vaticano II, sofreram restrições em suas publicações e ensinamentos, mas depois foram reconhecidos como ortodoxos. Karl Rahner chegou a sugerir que os teólogos não fazem nada de interessante até serem censurados por algum tempo. Que dom os teólogos oferecem ao magistério?
Muito mais do que os bispos, os teólogos têm tempo para ler, refletir e discutir. Eles deveriam oferecer aos bispos os frutos de seu trabalho e, às vezes, uma correção respeitosa.
Seu livro sobre a Trindade é intitulado “The Tripersonal God” (O Deus Tripessoal). Quais são as principais intuições que tentou trazer para a teologia católica da Trindade?
Quatro perguntas eram importantes para estimular as intuições do livro “The Tripersonal God”: O que podemos saber sobre Deus trino? Como deveríamos adorar o nosso Deus? O que Deus nos chama a fazer? O que podemos esperar receber por meio da “graça de nosso Senhor Jesus Cristo, do amor de Deus Pai e da comunhão do Espírito Santo”?
Seu livro sobre Jesus Sacerdote enfatiza o tríplice ofício de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Qual imagem captura essa teologia do sacerdócio de Cristo de forma mais vívida em sua opinião?
A pintura de uma catedral copta no Egito que mostra Cristo Sumo Sacerdote em glória, estendendo suas mãos feridas em direção ao universo.
Nas últimas décadas, alguns teólogos cristãos rearticularam o antigo desconforto em relação à realidade histórica e física da ressurreição de Jesus Cristo, tentando explicar o evento em termos metafóricos ou psicológicos. Mas em suas obras sobre a ressurreição, o senhor insistiu que as Escrituras tornam impossível interpretar a ressurreição de Cristo como algo diferente de um evento que aconteceu com um corpo físico. Com base em suas pesquisas, o que há de errado nas teologias recentes que tentam reinterpretar a ressurreição em termos não literais?
As teologias que favorecem uma interpretação “excessivamente espiritual” da ressurreição de Cristo propõem a sobrevivência de seu eu pessoal ou, pior ainda, afirmam que a “ressurreição” seria apenas uma forma de indicar a nossa vontade de continuar vivendo à altura de seus ideais. Eles interpretam de forma errônea a robusta afirmação do Novo Testamento segundo o qual Jesus Cristo ressuscitou corporalmente do túmulo para entrar em uma nova vida de glória. Sem aceitar o túmulo vazio, não acreditamos no Cristo vivo e poderoso que transformará os seres humanos e seu mundo.
Um desafio teológico com a ressurreição, assim como com muitos dos milagres relatados nas Escrituras, é que não conseguimos explicar com precisão como aconteceu. Resumindo seu trabalho, o que acredita que realmente aconteceu a Jesus Cristo durante a ressurreição?
Quando Jesus ressuscitou em corpo e alma dos mortos, sua existência histórica ressuscitou com ele. Sua existência material foi transformada e elevada além de todas as limitações que experimentamos na vida terrena. Com a capacidade humana de Cristo de se relacionar e se comunicar expressa ao máximo, a ressurreição prefigurou a transformação divina que mudará e redimirá todo o universo criado. Esses são apenas os títulos; é difícil se aprofundar mais e acrescentar detalhes. Afinal de contas, ao falar da ressurreição, nos deparamos com o imenso mistério pascal que não pode ser compreendido por nosso intelecto.
Em seu livro The Survival of Dogma (A sobrevivência do dogma), o falecido cardeal Avery Dulles ressaltou que a teologia católica da Eucaristia poderia ser mais aperfeiçoada hoje, mas acrescentou que teorias recentes como a “transfinalização” e a “transignificação” não conseguiram oferecer alternativas satisfatórias ao dogma clássico da transubstanciação. Nesse ponto da história do dogma católico, quais são, se é que existem, as maneiras pelas quais a teologia da Eucaristia pode se desenvolver de forma positiva, respeitando o ensinamento tradicional?
O Beato Papa Paulo VI observou sabiamente que “como resultado da transubstanciação, as espécies do pão e do vinho, sem dúvida, assumem um novo significado e finalidade”. Sendo o maior dos sacramentos e o ato central de culto na vida da Igreja, a Eucaristia nunca pode ser facilmente definida. Mario Farrugia e eu dedicamos muitas páginas do livro Catholicism (Oxford University Press, 2015) à tentativa de uma atualização do ponto de vista teológico da interpretação tradicional e contemporânea da Eucaristia.
Nas Igrejas Católicas Orientais, a teologia se desenvolveu em direções muito mais próximas do cristianismo ortodoxo do que do catolicismo romano, resultando em uma fé plenamente católica que, ao mesmo tempo, completamente livre de influências tomistas. O que os católicos de rito latino podem aprender com a tradição católica oriental na teologia contemporânea?
A tradição católica oriental valorizou o papel do Espírito Santo na vida da Igreja e manteve um senso vivo de beleza, divina e humana. A teologia dos ícones tem muito a ensinar aos católicos e teólogos ocidentais.
Qual é a coisa mais importante que aprendeu com a teologia?
Ao longo dos anos, aprendi na presença de Deus a necessidade de “vigiar a minha linguagem”. Nós, teólogos, devemos ser escrupulosos com as palavras que usamos.
Como sua identidade e formação jesuíta influenciam sua maneira de fazer teologia?
Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, que caracterizam a formação e a identidade jesuíta, são totalmente centrados em Jesus. Não há dúvida de que isso influenciou profundamente minha teologia e me levou a incluir o nome “Jesus” nos títulos de pelo menos 10 de meus livros.
Quem é Jesus Cristo para o senhor?
O companheiro constante de minha vida. Jesus é aquele em quem desejo basear todos os meus pensamentos e o meu amor.
Quando encontrar Jesus na outra vida, o que espera que aconteça?
Espero ser simplesmente arrebatado pela beleza única de Cristo. Espero e rezo para que Ele perdoe meus pecados e talvez até me agradeça por ter falado Dele em meu ensinamento e na minha obra.
Quem são seus modelos de referência na fé católica, vivos ou mortos?
Encontrei modelos nos estudantes a quem ensinei na Universidade Gregoriana que, como o beato Oscar Romero (um ex-aluno), foram martirizados pela prática de sua fé: Patrick Gahizi, SJ, Irmã Luz Marina Valencia Treviño e outros. Bons samaritanos modernos, eles se esforçaram para ajudar pessoas feridas e pagaram o preço mais alto por seu amor.
Como o senhor ora?
Os Salmos e certas frases do Novo Testamento (por exemplo, “o amor tudo suporta”) são o que mais alimenta minha vida de oração.
Como sua fé mudou ou evoluiu ao longo dos anos?
Quando entrei na Companhia de Jesus, eu pensava demais em minha salvação eterna pessoal. Tive de aprender a importância fundamental de servir aos outros com amor.
Qual é a sua passagem favorita das escrituras e por quê?
Eu aprecio muito o hino de São Paulo ao amor em 1 Coríntios 13 e acho que ele ganha vida repetidamente quando substituo o nome “Jesus” por “amor”. Afinal, Ele foi e é, em pessoa, o agapē que Paulo celebra.
Como descreveria a teologia do Papa Francisco?
O Papa Francisco está tentando colocar em prática os ensinamentos do Concílio Vaticano II: por exemplo, o governo colegiado e a preocupação radical pelos pobres que o Concílio promoveu.
Se pudesse dizer uma coisa ao Papa Francisco sobre a teologia católica de hoje, o que diria?
Por favor, incentive mais teólogos como o cardeal Walter Kasper a se manifestarem e ajude-os a serem ouvidos.
Que arrependimentos tem do passado?
Eu gostaria de ter feito mais pelos doentes, pelos famintos e pelos presos.
Quais são suas esperanças para o futuro?
Espero que o bom Deus continue a me ajudar a servir aos outros nos anos que me restam.
O que deseja que as pessoas aprendam com sua vida e seu trabalho?
Estou prestes a publicar o terceiro volume de minhas memórias, From Rome to Royal Park (Connor Court e Gracewing). Uma autobiografia é sempre um ato de autojustificação. Espero, no entanto, que essas obras esclareçam as pessoas sobre como cresceram, com todos os seus defeitos, a minha vida e a minha teologia.
Onde considera que Deus está mais presente em sua vida neste momento?
Vivendo entre milhares de estudantes universitários, tanto australianos quanto internacionais, encontro Deus em sua vontade de viver e em suas esperanças para o futuro.
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"A teologia precisa, mais do que nunca, de homens e mulheres prontos para se dedicar a estudos desafiadores". Entrevista com Gerald O'Collins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU