Jesus veio para revelar em nós uma vida possível em Deus hoje, uma vida fecunda, que “dá muito fruto”, uma “vida em abundância”: é essa vida superabundante, hoje e agora, que é a vida “eterna”, que poderíamos traduzir como vida infinitamente bela, vida divina.
O comentário é da historiadora da arte francesa Colette Deremble, publicado por Saintmerry-hors-les-murs.com, 08-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
O primeiro pensamento cristão sobre a ressurreição desenvolve-se a partir de um substrato complexo: por um lado, o Antigo Testamento não transmite aos primeiros cristãos um pensamento sobre o além. Por outro lado, o pensamento semita é influenciado pelo pensamento iraniano do Juízo Final, com uma concepção binária, que opõe o bem e o mal, e que se expressa na literatura apocalíptica (da qual o Apocalipse bíblico é uma das inúmeras versões). E, por fim, esse pensamento semita é influenciado pela antropologia dualista grega, que opõe a alma ao seu “invólucro” material que é o corpo.
Para compreender a complexidade do pensamento cristão das origens, é preciso distinguir, por um lado, o que é dito sobre a ressurreição nos Evangelhos e uma certa ambivalência da linguagem sobre a ressurreição; por outro, o modo como os evangelistas narraram o evento da Ressurreição de Jesus; e, enfim, o modo como Paulo fala da ressurreição.
O espaço ocupado nos Evangelhos pela noção de ressurreição é marginal. Ela praticamente não se encontra na controvérsia de Jesus com os saduceus (Mateus 22,32). Essa controvérsia reflete as divisões dos judeus sobre o assunto: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos” [trad. Bíblia Pastoral]. A expressão impressiona: Jesus evita a armadilha que lhe foi armada por seus interlocutores que queriam levá-lo para o assunto da vida após a morte.
Essa especulação não é problema dele: o Deus em que Jesus crê se ocupa dos vivos. O Evangelho de João fala abundantemente da vida eterna, termo sobre o qual convém refletir para não o tomar literalmente:
- No capítulo 3, no diálogo com Nicodemos: “Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna” [v. 16]. A expressão “não morra” (não seja perdido) é surpreendente: João evidentemente não quer dizer que a fé em Cristo evita a morte física e nos torna imortais. O cristianismo não negligencia a morte: nós somos mortais. Temos que compreender que aqui a expressão “morte” é utilizada de forma metafórica. A noção de “vida eterna”, que espontaneamente situamos cronologicamente após a morte, deve, portanto, ser repensada: talvez “vida eterna” deveria ser entendida como “vida divina”, isto é, “vida plena de Deus”?
- No capítulo 4, no diálogo com a Samaritana: “A água que eu lhe darei vai se tornar dentro dele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” [v. 14]. Nesse contexto, não se fala de morte, mas se trata de compreender que quem tem fé em Cristo tem dentro de si uma “vida eterna”, uma “vida divina”, isto é, inteiramente voltada para o amor.
- No capítulo 5, após a cura do enfermo de Betesda: “Quem ouve a minha palavra e acredita naquele que me enviou, possui a vida eterna” [v. 24]. O presente confirma fortemente o que dissemos antes. A vida “eterna” não se desdobra no futuro.
- No capítulo 6, no discurso sobre o pão da vida em Cafarnaum: “Esta é a vontade do meu Pai: que todo homem que vê o Filho e nele acredita, tenha a vida eterna” (v. 40). “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome” (v. 35). “Os pais de vocês comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram” (v. 49). “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida” (v. 51).
- No capítulo 8, após o episódio da mulher adúltera: “Se alguém guarda a minha palavra, jamais verá a morte" (v. 51). Novamente, não podemos imaginar que Jesus esteja falando da morte física: ele sabe muito bem que nós somos mortais. Trata-se, portanto, necessariamente da morte espiritual. Pôr em prática a palavra de Cristo significa estar espiritualmente “vivo” hoje, vivendo de Deus.
- No capítulo 11 sobre a ressurreição de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e acredita em mim não morrerá para sempre”. Mesma reflexão. Nessas diferentes passagens, a escola joanina nos convida a não situar a questão da ressurreição no nível de uma vida após a morte física. Somos convidados a reconsiderar o que é a vida, a vida “verdadeira”, a vida “eterna”, que consiste em receber a Deus, e a “morte”, que é descrita como o fato de não crer.
- No capítulo 12: “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” (v. 24). Essa frase nos oferece uma imagem ao mesmo tempo banal e muito fecunda para compreender a ressurreição, com a ideia de que morrer é dar fruto.
- No capítulo 17, há todo o discurso de despedida, particularmente com esta frase essencial: “A vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro” (v. 3).
João não situa a vida eterna no além da morte; nem sequer a considera como uma recompensa para os justos: ele faz uma inversão radical do pensamento apocalíptico generalizado em dois pontos essenciais. Ele também faz uma inversão do sentido da vida e da morte, mostrando que não é necessário opor vida e morte físicas, mas “vida em Deus” e “morte espiritual”. Há uma vida, que é plena de Deus, vida de amor, de perdão, de liberdade e, por oposição, uma vida de encurvamento sobre si mesmo que é portadora de morte.
Ele também subverte a nossa atitude em relação à morte, que nos oprimiria como uma maldição: “Ninguém tira a minha vida: eu a dou livremente” (10,18). Até a morte é objeto de um dom, de uma liberdade.
A vida humana não é uma vida em provação, à espera de outra vida (na qual, no fim, não aconteceria grande coisa, exceto que se viveria de uma forma infinitamente longa e feliz): Jesus veio para revelar em nós uma vida possível em Deus hoje, uma vida fecunda, que “dá muito fruto”, uma “vida em abundância”: é essa vida superabundante, hoje e agora, que é a vida “eterna”, que poderíamos traduzir como vida infinitamente bela, vida divina.
Relendo o Evangelho de João, percebe-se a exigência de ajudar a tornar real essa vida divina hoje. A vida eterna é vivida não na passividade de uma recompensa esperada após a morte, mas na dinâmica atual de uma tensão “por” e “em” Deus. Não é a morte física que constitui a clivagem que leva à ressurreição: é a fé. Somos convidados a crer que é o amor total que dá a verdadeira vida.
Uma última observação: há uma grande diferença entre o que se lê no Evangelho e a formulação do Credo da Igreja, que, no fundo, parece muito mais próxima das formulações arcaicas... e pagãs da apocalíptica judaica.
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O pensamento cristão sobre a ressurreição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU