05 Agosto 2021
"É hora de pegar esse alimento, um dom de Deus que desceu do céu. Acreditamos que a superioridade da civilização ocidental, a defesa de uma identidade cultural ou religiosa, o nosso modelo único de família sejam verdades de fé? Jesus não come daquele pão. Jesus não é aquele pão. Vindo do céu, ele abre os nossos mundos para nos fazer sair de nossos fechamentos atávicos e portadores de morte. Ele é o pão da vida", escreve Patrick Royannais, padre francês, da diocese de Lyon, em artigo publicado por Baptisés, 31-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há vinte anos, o rabino Marc-Alain Ouaknin falava da história do maná (Êxodo 16). No deserto, os filhos de Israel comem "Mann hu?", comem "o que é isso?". O "o que é isso?" é o nutrimento humano, a ponto que ser humanos é nutrir-se de questionamentos, a ponto de ser homem e mulher é saber questionar-se.
Aproximando o discurso de João sobre o pão da vida (Jo 6,24-35) ao do Êxodo, percebe-se a oposição radical entre duas formas de alimentação: de um lado comer e morrer, de outro comer e viver; comer para se saciar e dormir ou comer questionamentos até não conseguir mais dormir; comer para não se fazer perguntas ou alimentar-se de uma busca infinita.
Limitar-se a tomar o maná para saciar a fome é atordoador e mortal. O alimento que Deus nos doa permite admirar-se. Deus nunca é totalmente conhecido, assim como suas criaturas nunca são totalmente conhecidas. A admiração é o que dá início à filosofia, mas não só isso: é também a mola que inicia a vida com Deus. Jesus nunca deixa de se maravilhar, de admirar a fé das pessoas.
Se viemos todos os domingos para nos alimentarmos de certezas, para nos tranquilizarmos empanturrando-nos de uma identidade cultural católica e francesa (ou italiana ...), somos como pessoas obesas e pesadas que só podem se movem com dificuldade, e não como homens e mulheres que caminham.
Com o pão das certezas e da identidade cultural, continuamos a ter fome, e comemos até ficar obesos, até morrer por isso. A fé em Jesus, o colocar-se em caminho ao seguimento de Jesus, acaba com essa fome mortal. “Quem vem a mim de modo algum terá fome, quem crê em mim jamais terá sede”.
Então, estar unido a Jesus, significa não ter mais nenhuma certeza, não ter mais certeza nem mesmo das afirmações de fé? Se tudo tem que ser questionado incessantemente, não acabamos relativizando tudo, inclusive a convicção de que devemos nos questionar sobre tudo?
Questionar tudo incessantemente é o pressuposto para viver, porque questionar tudo, inclusive a fé e o que se tem de mais caro é o que dá consistência à nossa vida. Só este questionamento incessante evidencia o que tem realmente valor, o que resiste, o que se mantém, o que é sólido, isto é, "amém", como se diz em hebraico. Quanto menos considerarmos o amor como adquirido, como possuído, maior será a probabilidade de "durar" no amor. Quanto mais questionamos a nossa fé na radicalidade - que é uma forma de nos abandonarmos a Deus -, mais nos mantemos fiéis a Jesus.
É com a convicção de levar a civilização e a verdadeira fé aos outros que a colonização se justificou. É com o pretexto de outrora fazer uma obra de civilização, hoje exportação de democracia, que se saqueiam os países, cujos migrantes depois são recusados. Pensar-se superiores tira a possibilidade de se maravilhar, de descobrir no outro a profusão do dom de Deus, dom do qual os ocidentais, principalmente do sexo masculino, se consideram evidentemente os donos ...
Com a convicção de que se basear em uma lei da natureza, a civilização e a religião continuam a justificar a não igualdade homem-mulher. Com a convicção de lutar pela moral e a ordem social e religiosa, outros modelos sexuais diferentes daqueles heterossexuais, masculinos e dominadores são rejeitados. Afirma-se que uma união que não tenha a procriação como fim é impensável. Essa pseudoevidência é uma punhalada nas costas para os casais que não podem ter filhos! E um crime contra outros ...
Com a convicção de defender a civilização e a verdadeira fé, justifica-se a recusa dos migrantes. Mas quando os estrangeiros trazem dinheiro, não fazemos objeções e concedemos vistos sem dificuldade. Por outro lado, por que consideramos nefastos e parasitas aqueles que pedem apenas para viver dignamente? Porque, na realidade, somos contra os pobres.
Não seria talvez urgente nos colocarmos essas e outras perguntas? O que estamos fazendo? "O que é aquilo?" o que Jesus nos oferece?
É hora de pegar esse alimento, um dom de Deus que desceu do céu. Acreditamos que a superioridade da civilização ocidental, a defesa de uma identidade cultural ou religiosa, o nosso modelo único de família sejam verdades de fé? Jesus não come daquele pão. Jesus não é aquele pão. Vindo do céu, ele abre os nossos mundos para nos fazer sair de nossos fechamentos atávicos e portadores de morte. Ele é o pão da vida.
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Jesus não come daquele pão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU