"O fato inconteste é que temos hoje uma civilização deslizando a passos largos para o colapso. As novas circunstâncias para superarmos o nosso condicionamento patriarcal estão dadas, seja pela improvável conscientização das lideranças mundiais – a via da “reforma do pensamento” e da regeneração das instituições, proposta pelo sociólogo, filósofo e antropólogo francês Edgar Morin –, seja pela indesejável via da regressão e da barbárie que se anuncia como a mais provável. Insistir em viver no patriarcado é viver numa inútil e infindável luta contra a realidade complexa que nos cerca", escreve Antônio Sales Rios Neto, engenheiro civil e consultor organizacional.
“Deus e Satã não estão fora de nós nem acima de nós: estão em nós.
O pior da crueldade e o melhor da bondade do mundo estão no ser humano”
Edgar Morin
Nas últimas décadas e notadamente nos últimos anos, as reflexões de muitos críticos do nosso sistema-mundo têm sido permeadas por um crescente sentimento de que estamos sendo arrastados para um colapso civilizatório. Ao que parece, trata-se do esgotamento de um sistema-mundo que tem funcionado sob a hegemonia do modo de produção capitalista, forjado especialmente a partir do século XVI, e que nos últimos cinquenta anos, sob os auspícios do neoliberalismo, reduziu o modo de viver de quase toda a humanidade à lógica de mercado, na qual tudo vem sendo transformado em mercadoria. Estamos vivendo uma crise de dimensão complexa, uma vez que abrange múltiplas crises entrelaçadas que vêm afetando dramaticamente nosso modo de viver, nas mais diversas instâncias da experiência humana, pois seus desdobramentos têm interferências nefastas nas esferas social, política, ecológica, ética, econômica, institucional, espiritual, afetiva, dentre outras. Essa crise tornou-se mais visível depois que dois fenômenos de escala global foram adquirindo uma crescente e perigosa expressividade nos últimos tempos:
1) as mudanças climáticas que a cada dia apresentam mais evidências e vêm ganhando mais validade no meio científico;
2) o desmoronamento dos regimes democráticos como resultado do experimento do laissez-faire global impulsionado pela doutrina neoliberal, em interação com o fenômeno da algoritmização da vida, desencadeado a partir dos anos 1980.
A face mais preocupante desse cenário tão emblemático talvez seja a rapidez com que essa real possibilidade de colapso parece aproximar-se, sem que haja qualquer política de civilização em movimento que possa fazer frente à gravidade da situação atual, mesmo que para atenuá-la. Como alertou recentemente o respeitado naturalista britânico, David Attenborough, “dentro da vida útil de alguém nascido hoje, prevê-se que a nossa espécie provocará nada menos que o colapso do mundo vivente, precisamente no que se baseia a nossa civilização”, constatação que o faz concluir que “estamos diante da possibilidade real de uma sexta extinção em massa, causada por ações humanas”.
A cada dia surgem novos dados científicos para confirmar esse prognóstico de Attenborough. Um desses dados mais recentes está no artigo intitulado “Deforestation and world population sustainability: a quantitative analysis”, publicado em 06/05/2020 na conceituada revista científica Nature, dos físicos Gerardo Aquino, do Alan Turing Institute, e Mauro Bologna, da Universidad de Tarapacá. Eles realizaram um estudo correlacionando a taxa atual de crescimento populacional com a taxa de desmatamento, a partir do qual observaram que “um colapso catastrófico da população humana, devido ao consumo de recursos é o cenário mais provável da evolução dinâmica com base nos parâmetros atuais”. Nas palavras de Bologna e Aquino, “adotando um modelo combinado determinístico e estocástico, concluímos do ponto de vista estatístico que a probabilidade de nossa civilização sobreviver é inferior a 10% no cenário mais otimista”.
Ainda sobre o drama existencial posto pela questão climática, um dos alertas mais contundentes sobre as consequências da intervenção humana no planeta está no livro A terra inabitável – Uma história do futuro (Companhia das Letras, 2019), do jornalista norte-americano especializado em mudança climática, David Wallace-Wells, editor da New York Magazine. A obra reúne as melhores referências científicas sobre o assunto produzidas mais recentemente. Para Wallace-Wells, as mudanças climáticas representam uma real “crise existencial”, em que estamos deixando por conta do acaso possibilidades dramaticamente infernais para um futuro bem próximo, cujo “resultado do melhor cenário é morte e sofrimento numa escala de 25 Holocaustos e o resultado do pior cenário nos deixa à beira da extinção”. Outro que vem, já há um bom tempo, pesquisando e divulgando, sistematicamente, as evidências científicas mais atuais sobre os graves riscos de um colapso climático é o doutor em demografia e pesquisador titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ENCE/IBGE, José Eustáquio Diniz Alves. Segundo ele, se o processo de degradação dos ecossistemas não for interrompido, “o extermínio das espécies não humanas culminará e reverterá no extermínio dos próprios seres humanos”.
Mesmo entre aqueles não céticos em torno do assunto, as muitas explicações oferecidas para entender quais são as razões que nos trouxeram a este cenário de crise terminal são ainda muito dispersas. Uma parte delas parece convergir para a ideia de que há uma nítida incompatibilidade entre os limites no nosso planeta Terra e a dinâmica de reprodução do sistema capitalista, especialmente a que foi desencadeada a partir da primeira metade do século XIX, quando a Revolução Industrial estava se consolidando na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Atualmente, a quase totalidade da população mundial, que vem crescendo irresponsavelmente de forma exponencial nos últimos duzentos anos, está submetida à dinâmica do capital, cuja lógica se baseia no crescimento econômico ilimitado, que, por sua vez, sustenta-se na extração predatória dos recursos naturais limitados.
Outras explicações para o agravamento da crise ambiental chegam a questionar se a própria natureza humana não seria, em sua essência, rapinante e autodestrutiva, isto é, a espécie humana seria o resultado de um desvio da evolução natural e, neste caso, estaríamos, desde sempre, irremediavelmente condenados ao encontro da tragédia final que se anuncia. Por isso a identificação da atual era geológica da Terra como Antropoceno, na qual o Homo Rapiens – termo utilizado pelo filósofo político John Gray, para quem a natureza humana é mais bem compreendida pelo seu ímpeto de destruição – é considerado o novo meteoro a se chocar com a Terra, após aquele que 66 milhões de anos atrás provocou uma extinção em massa.
Diante do quadro apocalíptico (a palavra “apocalipse” também comporta o sentido de “revelação”) que muitos centros de pesquisa voltados para a questão climática já vêm apontando para as próximas décadas, a ideia é trazer aqui outras dimensões da crise civilizatória que têm passado ao largo das reflexões. Hoje está muito claro o fracasso das duas grandes narrativas – capitalismo e socialismo – postas em prática pela humanidade, que rivalizaram ao longo do século XX, cada qual se autodeclarando a melhor alternativa capaz de assegurar alguma viabilidade à continuidade do chamado “processo civilizatório”, iniciado após a revolução do neolítico, quando o homem caçador-coletor nômade fez a passagem para a era do agrarianismo, tornando-se sedentário e acomodando-se à vida “civilizada” nas cidades. Esta é, por exemplo, a constatação do historiador inglês Eric Hobsbawm, que conheceu como poucos a dinâmica da História, especialmente no período que vai da segunda metade do século XVIII ao fim do trágico século XX, registrada nas suas obras A era das revoluções (1962), Era do capital (1975), A era dos impérios (1987) e Era dos extremos - o breve século XX (1994). Para Hobsbawm, “chegamos a um ponto de crise histórica”, no qual “o fracasso do modelo soviético confirmou aos defensores do capitalismo sua convicção de que nenhuma economia sem Bolsa de Valores podia funcionar, o fracasso do modelo ultraliberal confirmou aos socialistas a crença mais justificada em que os assuntos humanos, incluindo a economia, eram demasiado importantes para ser deixados ao mercado”.
Segundo o filósofo britânico John Gray, “no início do século XXI, o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas.” A lição mais recomendável que se pode aprender das experiências do século XX e da crise civilizatória atual talvez seja a ideia de que a dinâmica da realidade é plural demais para suportar uma única visão de mundo. Por isso, Gray conclui que “os humanos não podem salvar o mundo”. Mas Gray também nos tranquiliza ao dizer que o mundo “não precisa de salvação”, pois, segundo ele, “felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos”. Aliás, essa percepção está muito longe de ser um consenso; ao contrário, após o advento da revolução tecnológica, inaugurada nos anos 1980, nunca a humanidade acreditou tanto na possibilidade de moldar o mundo segundo à sua imagem, revigorando mais uma vez sua ilusão num progresso iluminista, agora patrocinada pelos pulsos magnéticos e sob os ditames dos que controlam a “inteligência artificial”. Nas duas primeiras décadas deste século, as chamadas Big Techs, encabeçadas por corporações como Facebook, Apple, Amazon, Tesla, Google, Alphabet, Microsoft, dentre outras, vêm moldando não só os rumos de uma nova economia de plataformas, mas também interferindo nos processos políticos e debilitando os regimes democráticos, representando, na contemporaneidade, o novo Leviatã.
Se observarmos bem, a maior parte da história da humanidade é uma história de regressões recorrentes e, vale salientar, até aqui progressivas, em direção à autodestruição. Daí a razão de alguns pensadores como Gray entenderem que a ideia de progresso na ciência, na tecnologia e, especialmente, na economia de mercado, a qual constitui o eixo de funcionamento da civilização nos últimos quinhentos anos, não passa de um grande mito. “O mito do progresso é o maior consolo da humanidade moderna”, diz Gray. Acrescentaria ainda que essa ilusão no progresso tem sido também a maior armadilha contra o ser humano na contemporaneidade. A esse respeito, vale lembrar as reflexões em torno da ideia de progresso do bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976), Nobel de Fisiologia em 1965, para quem os seres vivos são o resultado de uma evolução adaptativa influenciada pela interação entre acaso e necessidade. Monod teve uma participação ativa nos movimentos da Resistência Francesa contra as potências do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. Para ele, “as sociedades liberais do Ocidente ainda demonstram uma concordância hipócrita a uma desagradável miscelânea de religiosidade judaico-cristã, progressismo cientificista, crença nos direitos 'naturais' do homem e pragmatismo utilitarista, apresentando-os como uma base para a moralidade.” Ainda assim, o suposto progresso patrocinado pelo mercado e pela tecnologia continua sendo o nosso consolo contemporâneo.
Diante de tanta barbárie já observada ao longo da história, talvez uma das ideias que foi elaborada e que prevaleceu em torno da natureza humana foi a de que o Homo sapiens é um animal inerentemente insensato e predador, portanto, estaria mais próximo do resultado de um processo de involução, uma espécie de desvio no processo de “seleção natural” proposto por Darwin. Essa percepção contradiz a própria noção em torno do conceito Homo sapiens, no qual o animal humano seria, supostamente, a única espécie que se destacou por ser portadora de autoconsciência, racionalidade e sapiência. Podemos perceber a construção desta imagem mental, por exemplo, nesta passagem do livro O zero e o infinito (1940), do jornalista e ativista político húngaro, Arthur Koestler (1905-1983), que, ao fazer uma incisiva crítica às aberrações do Grande Expurgo stalinista dos anos 1930, utiliza a seguinte analogia para tentar explicar as origens e os atributos da natureza humana:
“Os macacos altamente civilizados balançavam-se graciosamente de galho para galho; o homem de Neanderthal era rude e preso ao solo. Os macacos, saciados e brincalhões, viviam em sofisticada jovialidade, ou capturavam pulgas em filosófica contemplação; o Homem de Neanderthal se arrastava melancólico pelo mundo, fazendo barulho com seus porretes. Do alto das árvores, os macacos se divertiam com eles, atirando frutos em suas cabeças. Vez por outra, ficavam aterrorizados: eles comiam frutas e plantas tenras com delicado refinamento; o Homem de Neanderthal devorava carne crua, abatia os animais e os seus semelhantes. Derrubava árvores que estavam ali desde sempre, tirava rochas dos lugares abençoados pelo tempo, transgredia todas as leis e tradições da selva. Ele era rude, cruel, sem dignidade animal - do ponto de vista dos macacos altamente civilizados, um retrocesso bárbaro da história”. (citado por John Gray no livro The silence of animals, 2013)
Temos hoje alguns estudos arqueológicos, paleontológicos e antropológicos que descartam essa imagem ficcional criada por Koestler – provavelmente influenciada pela sua trágica experiência pessoal ao tornar-se prisioneiro das tropas do ditador espanhol Francisco Franco e ter sido condenado à morte –, embora aos olhos do senso comum ela pareça cada vez mais prevalente ante a realidade distópica que vem se amplificando nas últimas décadas. O stalinismo foi apenas uma das inúmeras expressões da cultura de controle, dominação e destruição patriarcal pela História e não representa uma condição sine qua non da natureza humana como muitos pensam. É por isso que, para tentarmos compreender melhor a condição humana, precisamos seguir recomendações como a do teólogo e filósofo espanhol Raimon Panikkar: “ver, por um lado, se o projeto humano realizado durante seis milênios pelo Homo historicus é o único possível e, por outro lado, ver se não seria necessário, hoje, fazer outra coisa”.
A crise de civilização atual que assola a humanidade não se iniciou na contemporaneidade, com a visão mercadológica de mundo imposta pelo liberalismo econômico, hoje globalizada, que canalizou os desejos humanos, por meio do fetiche da mercadoria, para a lógica do consumo e da acumulação. Ela é apenas o reflexo de uma longa crise que contém elementos que podem sugerir que está chegando tanto ao seu ápice quanto ao seu esgotamento neste século XXI. Todo o percurso civilizatório, iniciado após as revoluções agrícola e depois urbana, ocorridas no neolítico, tem, no estado de crise permanente, a sua condição natural. Como bem afirmou Hobsbawm, “a história é o registro dos crimes e loucuras da humanidade”, uma história orientada pelo desejo de controle e de dominação cujo poder de destruição – não só entre os humanos, mas sobretudo do ambiente –, vale frisar, potencializou-se e amplificou-se na mesma proporção das ferramentas criadas pelo homem.
Por isso, nos últimos anos, vem crescendo a preocupação de alguns centros de pesquisas com as implicações da tecnologia para a humanidade. Já existem alguns conceituados centros de pesquisa trabalhando com vistas a tentar evitar que a humanidade mergulhe, com o advento das novas tecnologias, num mundo cada vez mais distópico e autodestrutivo. Por exemplo, a Universidade de Oxford criou, em 2005, o Instituto para o Futuro da Humanidade – FHI (sigla em inglês), fundado e dirigido pelo filósofo sueco Nick Bostrom, dedicado, dentre outros objetivos, à investigação do que eles chamam de “risco existencial”, em face das consequências que fenômenos como a tecnologia representam ao futuro da humanidade. Com um propósito parecido, a Universidade de Cambridge também criou, em 2015, o Centro de Estudos de Risco Existencial – CSER. Por isso vale lembrar o alerta de Bostrom de que "os humanos serão responsáveis por sua própria extinção", caso não saibam lidar adequadamente com os riscos ligados aos avanços tecnológicos, especialmente aqueles que estão permitindo alterar o funcionamento natural do mundo, como é o caso da biotecnologia, que abrange diversos âmbitos de atuação como genética, medicina, indústria, meio ambiente, produção de alimentos, dentre outros.
Essa pulsão de morte, entretanto, não é uma exclusividade do tempo atual, muito menos do surgimento da tecnologia e dos riscos que ela oferece, como vêm estudando esses centros de pesquisa voltados a entender os riscos existenciais implicados na atual dinâmica civilizacional. Ela é um elemento constituinte da própria história da civilização. Quanto mais o homem aperfeiçoa suas ferramentas, mais ele aumenta sua capacidade de autodestruição. Não à toa, a história da humanidade coincide com a história de impérios e de Estados absolutos e com os conflitos, massacres e destruições que eles patrocinaram, embora intercalada por lacônicos espasmos de paz. Como prefere Gray, “a história da humanidade é uma história de redenção em andamento”. Essa redenção só chegará a um bom termo se passarmos a buscar novos pressupostos para compreensão das dimensões mais recônditas que estão por trás da nossa tortuosa trajetória civilizatória. Tais dimensões já foram, ao longo da história, percebidas por muitos pensadores notáveis que conseguiram dialogar com a realidade para além do que ela se apresenta ao nosso método cartesiano de observação, ainda hoje prevalente.
Os maiores inimigos da humanidade têm sido as diversas visões reducionistas de mundo que disputaram – e continuam disputando – hegemonia ao longo da História. Todas elas sempre tiveram um ponto em comum: amparavam-se na ideia de controle e de dominação, pilares da cultura patriarcal milenar sobre os quais a civilização foi construída. Atualmente, vigora a visão mercadológica de mundo imposta pela doutrina neoliberal entrelaçada à visão cibernética de mundo, que juntas vêm forjando o novo capitalismo de vigilância denunciado pela filósofa e psicóloga social estadunidense Shoshana Zuboff. Por isso, a possibilidade de superação da crise civilizatória atual passa pela compreensão da cultura patriarcal, das suas origens, de como ela se conecta com a noção de civilização, do que ela representa para o nosso modo de viver e, principalmente, de como ela limitou nossa percepção da realidade e forjou, ao longo de milênios, visões de mundo incongruentes com a dinâmica daquilo que chamamos de mundo natural. Essa cultura patriarcal é caracterizada pela ideia de que há uma realidade independente da nossa vontade, a qual é supostamente regida pelos seguintes fundamentos: controle, dominação, hierarquia, superioridade, guerra, luta, apropriação da verdade, separação homem-natureza, dentre outras concepções distorcidas da realidade complexa que nos cerca.
A ideia de aprofundarmos o entendimento da natureza humana numa perspectiva antropológica, conforme sugere Panikkar, pode ser observada, por exemplo, nos estudos do renomado neurobiólogo chileno Humberto Maturana, para quem o processo evolutivo do Homo sapiens perdeu sua congruência biológico-cultural quando houve uma grande transformação comportamental em algum momento no neolítico, época em que a cultura patriarcal sobrepôs-se à cultura pré-patriarcal europeia e passou a moldar toda a conflituosa trajetória da civilização. Os estudos de Maturana amparam-se nos trabalhos da arqueóloga lituana Marija Gimbutas (The Goddesses and Gods of Old Europe, 1982, e The Civilization of the Goddess, 1991). Inclusive, escrevi recentemente um texto, sob o título A biopolítica do desacoplamento, em que abordo exclusivamente as inestimáveis contribuições de Maturana não só para a ciência, mas especialmente para a compreensão de como o comportamento humano de índole patriarcal forjou os graves problemas civilizatórios que se exacerbaram na contemporaneidade.
No texto valoroso para compreensão das origens do nosso modo de viver atual, intitulado Conversações Matrísticas e Patriarcais, que é parte integrante do livro Amor y Juego - Fundamentos Olvidados de lo Humano desde el patriarcado a la democracia (1993), escrito em parceria com a psicóloga alemã Gerda Verden-Zoller, Maturana descreve como se deu o processo de bifurcação cultural em que “a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos”. A partir dessa grande transformação cultural, o patriarcado passou a moldar todo o curso da história. O patriarcado constitui, assim, a matriz cultural do nosso modo de viver, que subjaz a todas as dimensões da experiência humana, inclusive nos campos da ciência e da filosofia, tendo tudo o mais se desdobrado a partir dessa dinâmica patriarcal, nos mais diversos campos da atuação humana.
O modo de vida patriarcal que permeou toda a história da humanidade se caracteriza, conforme a definição de Maturana, “pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade”. Por isso é urgente hoje ampliar nossa compreensão do patriarcado para além do senso comum que o traduz, em regra, pelo comportamento machista, facilmente observado no cotidiano das sociedades, inclusive no meio acadêmico, que tende a reduzi-lo a um sistema de dominação e opressão do homem sobre a mulher. Estas são apenas as expressões mais visíveis do patriarcado. Como percebemos a partir da acepção proposta por Maturana, a noção de cultura patriarcal é bem mais ampla e profunda do que isso. Seu oposto não seria a cultura matriarcal, que nessa lógica binária de disputa de forças entre homem e mulher teria o mesmo sentido de hierarquia do patriarcado, no caso, a relação de superioridade e de dominação do feminino sobre o masculino.
Antes da cultura pré-patriarcal a que se refere Maturana, havia o que se convencionou chamar de cultura matrística, a qual era mais igualitária em relação a valores e símbolos masculinos e femininos. Essa cultura matrística era, também conforme Maturana, caracterizada por “conversações de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e coinspiração”, atributos que evidenciavam uma cultura “centrada no amor e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte”. Não significa dizer que não havia as guerras e os conflitos inerentes ao impulso patriarcal. Tais comportamentos existiam, mas não como regra, e sim como contingência da realidade. Na cultura patriarcal que predomina há milênios, as sociedades mais igualitárias, em que as hierarquias e a apropriação da verdade não constituem o padrão, sempre foram a exceção, e não a regra. A História está aí para confirmar isso, e não há sinais que indiquem que as próximas décadas serão diferentes.
Nessa perspectiva defendida por Maturana, que também é acompanhada por muitos outros pensadores de grande notoriedade, o impulso que move o ser humano desde tempos imemoriais é não só de origem biológica (ou existencial como preferem alguns) mas também cultural. Com a sobreposição da cultura patriarcal sobre a cultura matrística, houve uma grande ruptura na congruência entre o biológico e o cultural no comportamento humano. O cultural aqui refere-se às capacidades adquiridas, no sentido antropológico do termo, em que criamos crenças, valores, técnicas, arte, moral, costumes etc, que, em conjunto, expressam a visão de mundo por meio da qual moldamos e mantemos a nossa concepção de realidade. Para Maturana, “as culturas são sistemas essencialmente conservadores”, pois, uma vez instaladas como sistemas de relação hegemônicos, elas mesmas se autorreforçam criando uma espécie de blindagem a favor de sua permanência. Tal fenômeno é visto por muitos autores que vêm estudando o peso do aspecto cultural no comportamento humano, especialmente no campo da biologia da cognição, como um grave problema que distorce nossa forma de entender e elaborar da realidade que nos cerca.
Dizendo de outro modo, mais do que uma grave crise civilizatória, vivenciamos o agravamento de uma grande crise de percepção da realidade que permeou toda a história da humanidade, inclusive, em boa medida, alimentada pela ciência e pela filosofia. Foi a partir dessa cultura patriarcal de origem eurocêntrica que o animal humano concebeu suas várias percepções da realidade, em cada época histórica, irradiando-as para os outros continentes. Estamos falando aqui das diversas cosmovisões já vivenciadas como o teocentrismo da Idade Média (séculos V e XV), o antropocentrismo da Renascença (séculos XIV e XVI), o mecanicismo e o economicismo iluministas (séculos XVII e XVIII), ainda prevalentes na contemporaneidade, e o transumanismo atual emanado do Vale do Silício a partir dos anos 1980, que aposta na fantasia da remodelagem da natureza humana a partir da “inteligência artificial” e projeta um futuro prometedor, desta vez sob os auspícios dos algoritmos.
O que temos observado ao longo das duas últimas décadas é o surgimento de um capitalismo de vigilância como a mais nova forma de expressão patriarcal, promovida pelas principais potências globais, lideradas pelos Estados Unidos, China e Rússia, que estão reformulando uma nova polarização para o mundo, desta vez entre o capitalismo de vigilância ocidental e o oriental. Atualmente, são essas as nações que vêm ditando os próximos (des)caminhos da civilização, muito embora, cabe frisar aqui, a China – que muitos julgam ser o próximo modelo de convivência humana promissor a ser irradiado para o mundo – venha apresentando uma retórica contraditória que tenta conciliar o aparentemente irreconciliável: “desenvolvimento global sustentável” por meio de uma economia de mercado atrelada à tecnologia, agora sob o crivo exclusivo do Estado, em favor de uma suposta pacificação, harmonização e sustentabilidade civilizatória. Para o bem e para o mal, esta é a nova diretriz global em curso, um totalitarismo de plataformas com potencial de acelerar e agravar ainda mais a crise planetária, como podemos pressentir em manifestações recentes do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao apontar as novas tendências do cada vez mais conflituoso cenário geopolítico atual: "a inteligência artificial é o futuro, não só para a Rússia, mas para toda a humanidade. Ela vem com oportunidades colossais, mas também ameaças difíceis de prever. Quem se tornar o líder nesta esfera se tornará o governante do mundo".
Nossas expressões patriarcais abarcam um largo espectro de perfis comportamentais, com diversos matizes, dos menos aos mais destrutivos. Ao longo desse espectro encontramos desde as categorias mais comuns e aparentemente inofensivas como os tecnocratas e os econocratas, que acreditam numa ideia de mundo regido por ordem, progresso, números, previsibilidade e certeza; passando pelos gurus da autoajuda e pelos líderes de movimentos neopentecostais vendendo receitas fantasiosas de prosperidade e de sucesso; e, no extremo, aquelas expressões mais autodestrutivas como os fundamentalistas, os intolerantes, os negadores da política, o crime organizado, as milícias digitais, que, quando alçados a posições de grande poder, invariavelmente arrastam as sociedades para violência desmedida acompanhada de genocídios e ecocídios. Todos prometendo soluções para os problemas humanos que nada têm a ver com a complexidade do mundo real.
Noutra vertente, a lógica de controle e de dominação patriarcal predominante tem levado o senso comum a aceitar como parte integrante da realidade, em especial a da natureza humana, a ideia de que a liberdade e a possibilidade de realização humana estão irremediavelmente atreladas à acomodação na servidão voluntária e ao entendimento de que o mundo é um local hostil regido por uma dinâmica competitiva e predatória. Essas percepções de mundo, por sua vez, alimentam a ilusão de que todos têm as mesmas chances de algum dia alcançar a posição do 1% que está na parte de cima da pirâmide socioeconômica. Ao reforçarmos essa dinâmica cruel, continuamos aumentando as patologias humanas e amplificando os desarranjos ambientais e é aqui que reside a miséria e a tragédia do nosso atual modo de viver, determinado por esse condicionamento patriarcal.
Cada um de nós, sem exceção, em maior ou menor grau, está preso nesse espectro, somos reféns de nossas ilusões patriarcais, o quartinho newtoniano sem o qual nos vemos perdidos diante das incertezas, imprevisibilidades, ambiguidades e mudanças inerentes ao mundo real. A grande ilusão patriarcal mais poderosa hoje é a que nos aprisiona à visão de mundo tecnoeconomicista, que tem dominado todos os campos da experiência humana. O ser humano apegou-se a essa ilusão porque é assim que ele vem sendo moldado pela educação, pelas relações familiares e, sobretudo, pelas relações narcisistas e utilitaristas do mercado, que hoje permeiam todas as dimensões da vida humana. Só sairemos do impasse civilizatório atual na medida em que mais e mais pessoas e lideranças questionarem a falsa segurança desse universo mercado-digital no qual mergulhamos.
Para além das disputas de narrativas por hegemonia – que sempre fizeram e provavelmente ainda farão parte da condução da história da humanidade por um bom tempo –, o patriarcado, a partir da concepção aqui delineada, talvez represente o principal referencial não só para tentarmos ir ao âmago da atual e grave crise em que nos encontramos, mas também para melhorar nosso entendimento em torno da ideia que temos sobre civilização. Portanto, a cultura patriarcal instalada há milênios, que forjou a civilização tal como a conhecemos, precisa ser considerada para uma melhor compreensão dos desafios que estão sendo colocados para a humanidade, pois tem sido a partir dela que, sem percebermos, nos relacionamos com o mundo em nossa volta. Nesse sentido, ela talvez represente o componente chave para entendermos o que alimenta o nosso modo linear de pensar, a nossa cegueira cognitiva, a nossa acomodação à servidão voluntária e o mais emblemático desafio do nosso tempo: a cisão entre o homem e a natureza.
Entramos nessa dinâmica autodestrutiva em algum momento do neolítico, como apontam estudos de Maturana e outros, em um processo muito gradual que pode ter durado em torno de mil anos ou mais. Embora já seja possível observar muitos sinais de mudança no comportamento humano, libertando-se do patriarcado em direção a uma nova cultura mais biocentrada e menos predatória e antivida, que começa a perceber a multiplicidade, a incerteza, a diversidade, a contradição, a interdependência, a alteridade e, especialmente, a íntima ligação homem-natureza como atributos constituintes da complexidade do mundo real, a gravidade da crise planetária atual talvez não nos reserve tanto tempo assim para alcançarmos uma nova bifurcação cultural que nos permita reconciliar com a nossa condição natural. Entretanto, pelo menos no campo da ciência, as novas teorias da complexidade (caos, neguentropia, auto-organização, fractais, autopoiese, lógica fuzzy, dentre outras) estão à nossa disposição para essa difícil tarefa. Falta-nos a superação no campo da política e da ética, ainda sob as amarras do patriarcado.
Diante de um impasse civilizatório de tal magnitude, como então podemos vislumbrar a possibilidade de superação dessa cultura patriarcal milenar e da crise de percepção da realidade que ela forjou para se manter? O cenário de crise planetária que estamos vivenciando, ainda que aparente cada dia mais insolúvel, parece apontar para duas formas de sairmos dessa armadilha ontológica. A primeira é pela via da regeneração consciente, na medida em que mudamos o nosso modo de pensar, em especial as lideranças nas empresas, instituições, comunidades e nos países, e passamos a ver, compreender, aceitar e, então, lidar melhor com a complexidade do mundo real. A outra é pela via de uma profunda regressão civilizatória seguida pela barbárie, como desdobramento da manutenção da dinâmica de pulsão de morte patriarcal que vem se manifestando de variadas formas na atualidade: conflitos armados, desastres ambientais, fome e desnutrição, desemprego, doenças crônicas e infecciosas e outras formas de geração de indigências.
A primeira via aparenta ser a mais improvável, pois não há nenhum esforço civilizatório em curso que aponte nesse sentido. A segunda hipótese se faz mais presente a cada dia, a possibilidade da barbárie generalizada, em que as agruras de um inevitável flagelo humanitário de escala planetária, que se anuncia, revelarão a insustentabilidade da cultura patriarcal e tornarão nossa realidade tão insuportável que o ser humano perceberá, enfim, a necessidade de alçar um novo patamar civilizatório, mais congruente com a nossa condição natural. Seja lá como for o desfecho desse grande impasse, ao que tudo indica, as palavras do filósofo húngaro István Mészáros parecem estar mais próximas do que está por vir ainda neste século XXI: “a famosa frase de Rosa Luxemburgo, ‘socialismo ou barbárie’, precisa ser reformulada para o nosso tempo em ‘barbárie, se tivermos sorte’. A aniquilação da humanidade é a nossa sina se falharmos na conquista dessa montanha que é o poder destrutivo e autodestrutivo das formações estatais do sistema do capital”.
Para John Gray, uma das questões primordiais do mundo atual é sabermos como lidar com as nossas ilusões. Segundo ele, “de agora em diante, nosso propósito será identificar nossas imbatíveis ilusões. De que inverdades podemos nos livrar, e quais as que, sem elas, não podemos passar?”. Chegou o tempo de acreditarmos que não estamos definitivamente condenados a viver sob as ilusões de ordem, controle, dominação e hierarquia do patriarcado. Como todo o percurso civilizatório foi forjado a partir de um modo de viver patriarcal, dentro de um processo multissecular, tendemos a pensar que o patriarcado constitui um atributo existencial da condição humana e, o que é pior, o projetamos na natureza – daí a origem da nossa crise de percepção da realidade. Ao contrário, precisamos compreender que ele é circunstancial, como Maturana e muitos outros sustentam. Portanto, se foi possível imergir nesse modo de viver, é também razoável imaginar que podemos nos libertar dele.
O fato inconteste é que temos hoje uma civilização deslizando a passos largos para o colapso. As novas circunstâncias para superarmos o nosso condicionamento patriarcal estão dadas, seja pela improvável conscientização das lideranças mundiais – a via da “reforma do pensamento” e da regeneração das instituições, proposta pelo sociólogo, filósofo e antropólogo francês Edgar Morin –, seja pela indesejável via da regressão e da barbárie que se anuncia como a mais provável. Insistir em viver no patriarcado é viver numa inútil e infindável luta contra a realidade complexa que nos cerca. A única luta que faz sentido, doravante, é a luta contra os nossos conflitos internos, impingidos por essa prisão patriarcal, na qual o homem tornou-se o inimigo de si mesmo.
Reaprenderemos a lidar com a complexidade do mundo real? Esta talvez seja a grande questão do nosso tempo. “Vamos estourar por não compreender a complexidade”, eis o alerta de Morin. Espero que, diante dessa insondável agonia civilizatória, na qual estamos mergulhando, consigamos compreender, aceitar e abraçar a complexidade das realidades vivas que ainda temos e, assim, reencontrar nossa jovialidade contemplativa, tal como a dos macacos de Arthur Koestler!
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