Pandemia e colapso civilizatório. Artigo de Raúl Zibechi

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14 Abril 2020

“A civilização democrática se diferencia da estatal, na medida em que busca satisfazer o conjunto da sociedade por meio da gestão comum de assuntos comuns (Abdullah Öcalan). Sua base material e sua genealogia devem ser buscadas nas formas sociais anteriores ao Estado e naquelas que, logo após seu surgimento, foram deixadas à margem do Estado”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 10-04-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Em seus efeitos e consequências, a pandemia é a grande guerra de nossos dias. Como aconteceu com as duas conflagrações do século XX e com a peste negra do século XIV, a pandemia é o fechamento de um período de nossa história que, em resumo, podemos chamar de civilização moderna, ocidental e capitalista, que abarca todo o planeta.

A globalização neoliberal incorporou o ápice e o começo da decadência dessa civilização. As pandemias, como as guerras, não ocorrem em qualquer período, mas na fase terminal do que o professor de história econômica Stephen Davies (da Universidade Metropolitana de Manchester) define como um ecúmeno, uma parte do mundo que possui uma economia integrada e uma divisão do trabalho, unidas e produzidas pelo comércio e pela troca.

As pandemias são verificadas, em suas análises, quando um período de crescente integração econômica e comercial em grande parte da superfície do planeta chega a seu fim. São possíveis por dois fenômenos complementares: um elevado movimento humano e um aumento da urbanização, potencializadas por um modo de vida que chamamos de globalização e pela criação intensiva de gado.

A rigor, a pandemia acelera tendências pré-existentes. São basicamente três: a interrupção da integração econômica, enfraquecimento político que provoca crise das classes dominantes, e profundas mutações psicológicas e culturais. As três estão acelerando até levar à desarticulação do sistema-mundo capitalista, no qual nossa civilização está ancorada.

A primeira se manifesta na interrupção das cadeias de fornecimentos de longa distância, que levam à desglobalização e multiplicação de empreendimentos locais e regionais.

A América Latina está em péssimas condições para enfrentar esse desafio, uma vez que suas economias estão completamente focadas no mercado global. Nossos países competem entre si para colocar os mesmos produtos nos mesmos mercados, ao contrário do que acontece na Europa, por exemplo. A estreiteza dos mercados internos joga contra, enquanto o poder do um por cento tende a dificultar a saída desse modelo neoliberal extrativo.

Em segundo lugar, as pandemias, diz Davies, costumam “enfraquecer a legitimidade dos estados e dos governos”, enquanto as rebeliões populares se multiplicam. As pandemias afetam principalmente as grandes cidades, que compõem o núcleo do sistema, como é o caso de Nova York e Milão. As classes dominantes habitam as metrópoles e tem uma idade superior à média, portanto também serão afetadas pelas epidemias, como é possível observar agora.

Mas as pandemias também costumam arrasar com boa parte da riqueza das elites. Assim como as guerras, as grandes catástrofes “produzem uma grande redução na desigualdade”. Assim aconteceu com a peste negra e com as guerras do século XX.

O terceiro ponto de Davies, as mudanças culturais e psicológicas, são tão evidentes que ninguém deveria ignorá-las: o ativismo das mulheres e de povos originários, com a tremenda crise que tem produzido no patriarcado e no colonialismo, são o aspecto central do colapso de nossa civilização estadocêntrica.

O líder curdo Abdullah Öcalan, no segundo volume da monumental obra de sua defesa perante a Corte Europeia de Direitos Humanos, contrapõe a civilização estatal à civilização democrática e conclui que ambas não podem coexistir [1].

Para Öcalan, o Estado “se formou com base em um sistema hierárquico sobre a domesticação da mulher” (p. 451). Com o tempo, o Estado se tornou o núcleo da civilização estatal, existindo uma “estreita relação entre guerra, violência, civilização, Estado e justiça-Direito” (p. 453).

Pelo contrário, a civilização democrática se diferencia da estatal, na medida em que busca satisfazer o conjunto da sociedade por meio da “gestão comum de assuntos comuns” (p. 455). Sua base material e sua genealogia devem ser buscadas nas formas sociais anteriores ao Estado e naquelas que, logo após seu surgimento, foram deixadas à margem do Estado.

“Quando as comunidades alcançarem a capacidade de decidir e atuar sobre os assuntos que lhes concernem, então se poderá falar de sociedade democrática”, escreve Öcalan.

Tais tipos de sociedades já existem. Formam os modos de vida em que podemos nos inspirar para construir as arcas que nos permitem sobreviver na tempestade sistêmica, que agora se apresenta em forma de pandemia, mas que no futuro se combinará com caos climático, guerras entre potências e contra os povos.

Conheço algumas sociedades democráticas, sobretudo em nosso continente. A maior e mais desenvolvida já conta com 12 caracóis de resistência e rebeldia, onde constroem mundos novos.

Nota

[1] La civilización capitalista. La era de los dioses sin máscara y los reyes desnudos. Caracas, 2017.

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