"Os novos documentos do Papa Francisco são, através do Concílio Vaticano II, o início de um processo de superação daquele 'complexo de inferioridade' que marcou profundamente a experiência feminina e que correspondia a um 'complexo de superioridade' masculino. O acesso formal aos ministérios instituídos também por parte das mulheres se torna a aceitação do 'perfil público' do feminino, o reconhecimento da sua plena dignidade e a saída da minoridade teórica e prática que as reduzia a um simples 'instrumento'".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 12-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com dois textos de grande importância simbólica (um motu proprio e uma carta), o Papa Francisco abriu o ministério eclesial para as mulheres. Por mais que se possa tentar redimensionar o fato – e não é óbvio que não se consiga fazer isso no nível teórico e mais ainda no nível prático – gostaria de examinar a questão no nível estritamente sistemático. Ou seja, avaliar as implicações “estruturais” dessa histórica decisão. E não vale dizer: “Já se fazia isso há 40 anos”. Porque, se e quando os fatos se tornam normas, eles se institucionalizam e se tornam princípios de uma nova elaboração da tradição, explícita e formalmente.
O primeiro texto realiza uma pequena mudança no cânone 230 do Código de Direito Canônico, fazendo cair o adjetivo “masculino” e, portanto, não reservando mais o leitorado e o acolitado apenas aos “viri”; o segundo texto fornece as motivações teológicas do motu proprio.
Aqui, gostaria de me limitar a examinar alguns aspectos decisivos dessas argumentações.
O horizonte da decisão é repetidamente referido ao Concílio Vaticano II e à sua reivindicação de adaptação, de reforma, com a relevância a ser atribuída ao povo de Deus e à sua autoridade. A possibilidade de superar a “reserva aos homens” da autoridade eclesial implica um conceito de fidelidade à tradição marcada pela “índole pastoral”.
Essa índole, de fato, pensa a tradição como “substância de antiga doutrina” e “formulação do seu revestimento”. Para permanecer fiel à substância, não só é possível, mas às vezes também é necessário reformular o seu revestimento. A “reserva masculina” de toda autoridade eclesial, portanto, é um elemento contingente, não necessário da tradição.
É de grande interesse o fenômeno que, depois do Concílio, permitiu repensar a “ordem sagrada”. A partir de uma identificação do ministério com as ordens (maiores e menores), passou-se a uma distinção entre ordem e ministérios instituídos, com uma distinção adicional, dentro da ordem, entre episcopado/presbiterado, de um lado, e diaconato, de outro.
A introdução dessas distinções é o fruto de uma reavaliação da identidade eclesial e da relação entre todos os fiéis e os clérigos. É evidente que se trata de uma elaboração teórica que tem, no nível prático, um efeito ainda modesto. Grande parte dos leitores/acólitos são, ainda hoje, seminaristas ou, no máximo, candidatos ao diaconato permanente.
Digamos assim: o léxico conciliar se choca, ainda duramente, com o cânone clássico, que pensa todos os graus do ministério em vista do clássico cumprimento sacerdotal. Essa inércia histórica não é apenas um lastro.
A corresponsabilidade dos “não clérigos” na vida da Igreja agora parece claramente delineada. E assumida com decisão, estendendo a identidade dos “não clérigos” a “omnis utriusque sexus fidelis”: se a categoria de “clérigo” permanece ligada, por enquanto integralmente, ao sexo masculino – não excluindo um aprofundamento adicional sobre o grau do diaconato –, a partir de agora, os não clérigos corresponsáveis são pensados sem diferença de gênero.
Esse é um ponto decisivo sem volta. E aqui um duplo fato é singular: que o papa escreva uma carta à Congregação para a Doutrina da Fé, quase que para sublinhar a autoridade da intervenção; e que o papa cite, em uma passagem decisiva, referindo-se ao Sínodo sobre a Amazônia, não o seu documento (“Querida Amazônia”), mas o sinodal. Com efeito, a demanda explícita de extensão às mulheres dos ministérios instituídos, salvo erro, não havia permanecido na “Querida Amazônia”. O sonho daquele texto, por assim dizer, tinha um suplemento de imaginação.
As consequências do motu proprio implicam uma reforma dos textos e ritos do Pontifical Romano. E a ativação de ritos oficiais – precedidos de percursos formativos – que terão as mulheres como sujeitos, chamadas a desempenhar o ministério do leitorado e do acolitado. Essa poderá ser, em diversos lugares e em diversas histórias, uma passagem de grande relevo.
O que é central é um “ato de reconhecimento”, um reconhecimento de autoridade. O caminho foi longo e acidentado, e encontrou, por muito tempo, uma profunda surdez eclesial. A exclusão das mulheres de toda autoridade encontrava palavras de apoio desde Tertuliano. Mesmo quando era admitida, era profundamente limitada ao âmbito privado. As mulheres podiam ler, ensinar e batizar, mas apenas em privado.
A novidade entrou no magistério da Igreja Católica com a Pacem in terris. Que coloca o dedo na ferida. E convida a considerar a entrada da mulher na vida pública como um “sinal dos tempos”. Escutemos novamente as palavras do Papa João XXIII, de 1963, quando ele lembra:
“(...) o fato por demais conhecido, isto é, o ingresso da mulher na vida pública: mais acentuado talvez em povos de civilização cristã; mais tardio, mas já em escala considerável, em povos de outras tradições e cultura. A mulher se torna cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não aceita mais ser tratada como um objeto ou um instrumento, reivindica direitos e deveres consentâneos com a sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social.”
E, um pouco mais adiante, acrescenta:
“Em muitíssimos seres humanos, vai-se dissolvendo, assim, o complexo de inferioridade que se estendeu por séculos e milênios; enquanto em outros se atenua e tende a desaparecer o respectivo complexo de superioridade, decorrente do privilégio econômico-social, do sexo ou da posição política.”
Os dois documentos do Papa Francisco são, através do Concílio Vaticano II, o início de um processo de superação daquele “complexo de inferioridade” que marcou profundamente a experiência feminina e que correspondia a um “complexo de superioridade” masculino.
O acesso formal aos ministérios instituídos também por parte das mulheres se torna a aceitação do “perfil público” do feminino, o reconhecimento da sua plena dignidade e a saída da minoridade teórica e prática que as reduzia a um simples “instrumento”.
A dignidade sacerdotal também das mulheres, com base no batismo, torna-se, assim, uma evidência eclesial. A insistência com que a carta sublinha a correlação estrutural entre sacerdócio ordenado e sacerdócio comum constitui também o critério pelo qual é possível adquirir hoje, serenamente, novas formulações da mesma substância: “É bom em qualquer caso reiterar, com a constituição dogmática Lumen gentium do Concílio Vaticano II, que eles ‘estão ordenados uns aos outros; cada um, à sua maneira, participa no único sacerdócio de Cristo’ (LG, n. 10). A vida eclesial nutre-se desta referência recíproca e é alimentada pela tensão frutuosa destes dois polos do sacerdócio, ministerial e batismal, mesmo se na sua distinção estão enraizados no único sacerdócio de Cristo”.