19º domingo do tempo comum – Ano B – Subsídios exegéticos

Foto: Stephanie Leblanc | Unsplash

06 Agosto 2024

"A afirmação de que os judeus murmuravam (v. 41) é claramente uma releitura de Ex 16,2-8. Há, no entanto, diferenças. No Êxodo, o motivo da murmuração era a falta de pão; em João, os judeus murmuram porque Jesus afirmou: 'Eu sou o pão que desceu do céu' (vv. 35 e 38). Eles não aceitam a origem celeste, proclamada por Jesus, porque partem da evidência da condição humana: Este não é Jesus o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? (v. 42). Esta incongruência faz parte do estilo de narração próprio de João chamado de “técnica do mal-entendido”: Jesus fala uma coisa, o interlocutor entende outra, e este engano provoca uma discussão catequética. Assim acontece com Nicodemos (Jo 3,1-21) e com a samaritana (Jo 4,7-42).

"No v. 44, Jesus interrompe a murmuração e recomeça os ensinamentos: ninguém pode vir a mim a não ser que o atraia o Pai que me mandou. Isso significa que, para chegar até Jesus, é preciso deixar-se levar pelo Pai. Sem dúvida, a fé tem como fonte primeira a iniciativa de Deus, mas não exclui a responsabilidade do ser humano. A ação de Jesus e a do Pai são circulares e interligadas: tudo passa por Jesus e, no entanto, tudo procede do Pai e no Pai terminará".

O subsídio é elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF:

Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno

Leituras do dia

Primeira Leitura: 1Reis 19,4-8
Salmo: 33,2-3.4-5.6-7.8-9
Segunda Leitura: Ef 4,30 – 5, 2
Evangelho: Jo 6, 41-51

Eis o texto.

O Evangelho

Jesus

O Evangelho de hoje pertence ao chamado “discurso do pão da vida” (Jo 6,26-59), que é uma releitura do episódio do maná, no início da peregrinação pelo deserto, em Êxodo 16.

A afirmação de que os judeus murmuravam (v. 41) é claramente uma releitura de Ex 16,2-8. Há, no entanto, diferenças. No Êxodo, o motivo da murmuração era a falta de pão; em João, os judeus murmuram porque Jesus afirmou: “Eu sou o pão que desceu do céu” (vv. 35 e 38). Eles não aceitam a origem celeste, proclamada por Jesus, porque partem da evidência da condição humana: Este não é Jesus o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? (v. 42). Esta incongruência faz parte do estilo de narração próprio de João chamado de “técnica do mal-entendido”: Jesus fala uma coisa, o interlocutor entende outra, e este engano provoca uma discussão catequética. Assim acontece com Nicodemos (Jo 3,1-21) e com a samaritana (Jo 4,7-42).

No v. 44, Jesus interrompe a murmuração e recomeça os ensinamentos: ninguém pode vir a mim a não ser que o atraia o Pai que me mandou. Isso significa que, para chegar até Jesus, é preciso deixar-se levar pelo Pai. Sem dúvida, a fé tem como fonte primeira a iniciativa de Deus, mas não exclui a responsabilidade do ser humano. A ação de Jesus e a do Pai são circulares e interligadas: tudo passa por Jesus e, no entanto, tudo procede do Pai e no Pai terminará. O evangelista utiliza o verbo grego hélkō (atrair), que denota o uso de força, como sugere Os 11,4: Eu os atraía com vínculos humanos, com laços de amor. Esta afirmação de Oseias tem como pano de fundo a resistência humana à ação divina: o ser humano resiste a uma atração repleta de amor.

O mesmo v. 44 termina com a promessa sobre o destino de quem aceita entrar nesta dinâmica circular da ação divina. Jesus afirma: eu o ressuscitarei no último dia. A ressureição era aceita e defendida pelos fariseus como prêmio final para os que obedeciam a Lei. Para Jesus, a condição para a ressureição é adesão a ele: Em verdade, em verdade vos digo: quem crê tem a vida eterna. Esta ideia está repetida logo adiante, no v. 47 e em Jo 8,51; 11,25.

Para fundamentar sua afirmação, Jesus cita o profeta Isaias: E todos serão instruídos por Deus (54,13). Com isso, Jesus garante que a vontade salvífica do Pai é universal e não exclui ninguém: nem gênero, nem raça, nem credo. Jesus anuncia que a nova comunidade estará aberta a todos os que escutam e colocam em prática os ensinamentos do Pai (vv. 45-47).

No v. 48, Jesus repete o que já havia dito nos v. 35: eu sou o pão da vida. No Evangelho de João, o termo grego zōê (vida) não significa unicamente a vida física; define, mais adequadamente, qualidade de vida que é definitiva e que, portanto, não está sujeita à morte. Desde a criação, o Projeto de Deus é dar a vida. Este projeto de vida tem seu ápice na encarnação e missão do Filho (Jo 1,1-4). Por isso, Jesus – eu sou o pão da vida – deve ser entendida como “eu sou o pão que liberta da morte e faz participar da vida definitiva em Deus”.

Fica clara a contraposição entre Jesus, como pão da vida, e o maná e a Lei. Na compreensão rabínica, a Lei é a fonte da vida e, por isso, é chamada de “pão”. Mas a vida trazida pela Lei não é eterna: um dia termina. O projeto salvífico do Pai realizado pelo Filho, o pão que desce do céu, supera a vida conforme a Lei: Quem comer deste pão viverá para sempre (v. 51b).

A condição para receber a vida é reconhecer o amor de Deus expresso no projeto de Jesus e aderir a ele. O evangelista usa metáforas para explicitar o que significa tal adesão: escutar a voz do Filho de Deus (5,25), aproxima-se dele (6,37), aceitar suas exigências (6,63), comer o pão da vida (6,50). Portanto, a missão de todos os cristãos é levar a vida definitiva a todos os seres humanos; para isso, é necessário demonstrar concretamente o amor na partilha (6,5-13).

A técnica do mal-entendido está na base dos vv. 51-58 e envolve a palavra “carne”. Convém recordar que, no Evangelho de João, o que se poderia chamar de “instituição da Eucaristia”, não é ocorre na última ceia (Jo 13–16), como em Mt 26,26-29; Mc 14,22-25 e Lc 22,14-38, mas sim no capítulo 6, no “discurso do pão da vida”. No v. 51, Jesus afirma: "O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. O pão dado por Jesus é agora qualificado como carne (sárx) e não corpo (sōma). Jesus retoma o que já fora afirmado no prólogo do Quarto Evangelho (Jo 1,14): O verbo tornou-se carne. Ao dizer “o pão é a minha carne” e “quem come minha carne”, Jesus afirma que a Eucaristia faz parte do mistério da sua encarnação; por isso, celebrar a Eucaristia não tem a finalidade de produzir objetos de culto e adoração (hóstias consagradas), mas consagrar o alimento que fortalece os cristãos para que possam se comprometer com o projeto de vida e libertação proposto por Jesus. Em outras palavras, quando celebramos a Eucaristia e comemos o pão-carne de Jesus, renovamos e atualizamos nossa opção de realizar o projeto de amor de Jesus em defesa da vida plena.

Elias

A Eucaristia – A carne e o sangue de Jesus (cf. Jo 6,51-58) dão vida e coragem para o cristão, da mesma forma que, na primeira leitura de hoje, o pão e a água trazidos pelo anjo do Senhor fortaleceram Elias. Este profeta desenvolveu sua atividade no Reino do Norte, durante os governos de Acab (874-853 a.C.) e Ocozias (853-852 a.C.). Em hebraico, o nome Elias é ’ēliyyāhû e significa “Meu Deus é Yahweh”. O nome se torna o lema de seu trabalho: lutar contra os ídolos que legitimam a opressão do povo.

O chamado “ciclo do profeta Elias” ocupa poucos capítulos na Bíblia: 1Rs 17–21 + 2Rs 1–2. Todo ele é marcado pela luta contra o uso da religião para legitimar desmandos, arbitrariedades e assassinatos que provocavam o aumento da pobreza e da injustiça. Os dois reis citados – Acab e Ocozias – sacrificaram a vida do povo para impulsionar a economia e o comércio internacional. Com a desculpa de enriquecer o país, esfolavam a população. Contra tal situação Elias se levanta em nome da fé dos antepassados: para ele, a religião ancestral, isto é, o javismo autêntico (“Meu Deus é Yahweh”), é um projeto de vida e dignidade para todos. Qualquer governante que não lute por isso é idólatra e genocida.

A primeira leitura de hoje (1Rs 19,4-8) mostra Elias fugindo da rainha Jezabel. Ele havia desmascarado o projeto idolátrico desta rainha e ela não perde tempo: manda perseguir e matar Elias. O texto é duplamente irônico. Primeiro, porque Elias tem o poder para fazer vir fogo do céu e devorar os representantes religiosos de Baal (1Rs 18,20-40), mas se sente fraco para enfrentar a rainha. A segunda ironia é que, para salvar sua vida, Elias foge para o deserto, o lugar da morte (19,4).

Estas ironias têm a função de demonstrar que o profeta é uma pessoa real, não desfigurada por um sentimento devocional falso, comum em quem pratica uma religião desencarnada. O narrador quer mostrar que a força de Elias não vem de uma imagem fantasiosa que ele faz de si mesmo, mas da consciência que tem de ser dependente de Yahweh. Isso está expresso na aparição do Anjo e no alimento trazido: Mas eis que um anjo o tocou e disse-lhe: “Levanta-te e come” (...), havia um pão cozido sobre pedras quentes e um jarro de água (vv. 5-6). O mesmo Deus que salvou o povo no deserto interrompe o esgotamento físico e mental de Elias, enviando duas vezes um anjo trazendo pão e água (v. 7). Fortalecido o profeta caminha quarenta dias e quarenta noites (v. 8) até a montanha de Deus, o Horeb. Ali Elias terá respostas para seus questionamentos. Mas sua missão continua, pois o “longo caminho a percorrer” ainda não acabou.

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