18 Outubro 2023
"Na historicidade e fragilidade, a Palavra de Deus se torna carne. Jesus é a revelação de Deus que se dá na carne, ou seja, de forma velada, carregada de debilidade e relatividade. Deus não escolheu uma manifestação gloriosa e poderosa para se encarnar na humanidade", escreve Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas e professor de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte.
A revelação de Deus chegou ao seu auge, na plenitude dos tempos, quando o Deus da vida enviou o seu Filho, nascido de uma mulher (Gl 4,4), Jesus Cristo. Jesus é a imagem visível do Deus invisível, que veio revelar-nos a face do Pai, como afirma os Evangelhos e o apóstolo Paulo. Segundo o Evangelho de João, Jesus é o verbo encarnado que veio morar entre nós (Jo 1,14). Essa revelação é: histórica, progressiva, acontece ao longo da história por meio de gestos e palavras, pela mediação dialógica e pessoal, que revela o pensamento de Deus, ao ser humano. Sua revelação é Trinitária como se revela no batismo (Mc 1,9-11) e na Transfiguração de Jesus (Mc 9,2-8); é Cristológica, em Jesus de Nazaré (Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo), Deus, Uno e Trino. O homem Jesus vive a história humana e é Palavra encarnada de Deus, mistério de infinito amor. Jesus é a imagem invisível de Deus (Cl 1,15-20).
Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) revelam a manifestação, por excelência de Deus, ao narrarem o testemunho, os ensinamentos e a prática de Jesus no meio do povo injustiçado. Se observarmos atentamente o que Jesus fez e ensinou, percebe-se que, se por um lado, as palavras e os gestos de Jesus revelam a força transformadora e o poder de Deus, por outro lado, mostram uma espantosa debilidade que parece desmentir essa força e o poder de Deus. Jesus não faz a demonstração de um milagre, a pedido dos fariseus, para confirmar a sua origem divina (Mc 8,10-13). Feliz, afirma Jesus a Tomé, quem crê sem ver. Os milagres vão diminuindo na medida em que se aproxima a paixão de Jesus. Não há dúvidas que a cruz de Jesus é um fracasso, sob o olhar humano, no entanto, sob o olhar da fé é nesta fragilidade que se revela o poder de Deus, pela ressurreição.
O início da vida pública de Jesus Cristo foi marcado por uma grande e crescente receptividade do seu projeto (Ensinamento e Práxis) pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos. “As multidões acorriam para Jesus” (Lc 6,17-19), mas pouco a pouco Jesus foi aprofundando sua postura e radicalizando sua Opção pelos Pobres, marginalizados/as e injustiçados/as da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com “gregos e troianos” – era de “paz e amor” – durou pouco. Começaram a surgir conflitos com poderosos e opressores (Lc 13,31), pois sua prática incomodava os interesses dos que viviam explorando e escravizando o povo. Jesus descobriu que precisava formar melhor seus discípulos e discípulas, pois viu que a adesão popular inicial era ‘fogo de palha’ e ‘oba oba’. Com o avanço da missão pública de Jesus, os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião foram aumentando gradativamente. Em seus últimos dias, os embates [1] de Jesus com as autoridades judaicas e grupos religioso-políticos renomados se intensificaram (Cf. PALLARES, 1994, p. 117).
Nos evangelhos sinóticos, Jesus se revela na busca constante dos pobres e dos pecadores, não faz acepção de pessoas, perdoa a todos/as, mesmo que ele não seja aceito pela sua prática, mas ela revela o rosto misericordioso de Deus que passa pela mediação histórica da vida e ação de Jesus. Para os evangelhos sinóticos, Jesus é o único revelador de Deus, porque só ele é o Filho, e ao mesmo tempo ele é o revelado pelo Pai, o mistério da sua pessoa resta inacessível à “carne e ao sangue”, não o reconheceríamos sem a revelação do Pai (Mt 16,17), nas narrativas do batismo (Mc 1,9-11) e da transfiguração de Jesus (Mc 9,2-8).
Jesus se serve também das parábolas como linguagem da revelação, para falar de Deus, do Reino e de si mesmo. Não é possível falar do mistério de Deus e de seu Reino senão por meio de parábolas, em uma linguagem que ao mesmo tempo esconde e revela, é luminosa e obscura. Elas não nos conduzem, pela nossa experiência, diretamente a Deus, mas nos fazem passar pela experiência de Jesus. A sua história é passagem obrigatória para chegar ao mistério do Reino.
O mistério escondido foi revelado pelo apóstolo Paulo. A palavra mistério, na verdade, revela um vocabulário amplo que pode ser identificado com: evangelho, kerigma, revelação, escritos proféticos, conhecimento, palavra de Deus. Este mistério se manifestou em Jesus Cristo e nos foi transmitido pelos apóstolos e pelos ensinamentos da Igreja, mas o protagonista interior que o revela e atualiza é o Espírito Santo. “Àquele que tem o poder de vos confirmar segundo o meu evangelho e a mensagem de Jesus Cristo, revelação de mistério envolvido em silêncio desde os séculos eternos, agora, porém, manifestado e, pelos escritos proféticos e por disposição do Deus eterno, foi dado a conhecer a todas as nações, para levá-las à obediência da fé...” (Rm 16,25-26).
A função do Espírito Santo é indispensável: “A nós, porém Deus o revelou pelo Espírito. Pois, o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus” (1Cor 2,10). A revelação do mistério é ao mesmo tempo um fato teológico e eclesial como afirma a carta aos Efésios: “... para dar agora a conhecer aos Principados e às autoridades nas regiões celestes, por meio da Igreja, a multiforme sabedoria de Deus...” (Ef 3,10). O mistério estava já presente nas Escrituras, mas se revelou pela luz de Cristo, embora os cristãos esperem ainda a plena revelação de Jesus Cristo (1Cor 1,7). Mesmo assim esse mistério revelado torna-se acessível somente pela fé, e não só pela razão.
O apóstolo Paulo acentua a contraposição entre passado e o momento presente, porque ele quer ressaltar a unicidade e a novidade da revelação em Cristo, mesmo que esteja em continuidade com os escritos proféticos (Rm 16,26). A revelação do mistério é feito a todos os crentes com dimensões universais, a todas as nações, a todos os povos e culturas. O conteúdo desse mistério é o projeto divino de salvação: “Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória” (1Cor 2,7). É um projeto global que diz respeito ao sentido último de toda a criação. Segundo a Carta aos Efésios é um projeto de comunhão e de reunificação da humanidade em Cristo, em um único corpo (Ef 3,6).
Na revelação segundo o Evangelho de João Jesus se fez carne. São temas centrais no evangelho de João a revelação e a fé em contraposição à incredulidade. Estes podem se traduzir também pelo vocabulário: logos (palavra), luz, glória, verdade, manifestar, ver, compreender, crer, testemunhar. A história da revelação de Deus se desenvolve em três níveis: na história universal de todos os povos, na história dos povos da Bíblia e na história de Jesus. Nas três se evidencia a mesma dialética de revelação e rejeição. Por essa razão, o evangelista João vê como se a história de Jesus fosse interpretativa da história universal. Na historicidade e fragilidade, a Palavra de Deus se torna carne. Jesus é a revelação de Deus que se dá na carne, ou seja, de forma velada, carregada de debilidade e relatividade. Deus não escolheu uma manifestação gloriosa e poderosa para se encarnar na humanidade.
Esta manifestação gloriosa diz respeito à humanidade de Jesus e aos sinais que Jesus realizou ao longo de sua vida e que o conduziram à pena de morte (cruz) e à ressurreição, que para João é a glorificação. Em toda a sua vida, Jesus revelou Deus, cujo ápice está na cruz, onde foi transpassado. A palavra feita carne, afirma João: “é plena de graça e de verdade” (Jo 1,17) e ela veio por meio de Jesus Cristo. Ele é a palavra do Pai, voltada para o Pai em uma atitude de escuta e obediência (Jo 4,34). “Ele era a luz verdadeira que ilumina a todo pessoa humana que vem a este mundo” (Jo 1,9).
Para o evangelista João, sem o dom do Espírito Santo não há possibilidade de compreender Jesus e sua palavra, tornar-se testemunhas, participar da vida divina, de entrar em comunhão com o Pai. Sua tarefa é a de interiorizar e atualizar a palavra de Jesus: “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14,26). O Espírito não se afasta da tradição histórica de Jesus e da tradição eclesial que garantem a sua continuidade. O ensinamento da Tradição eclesial é o ensinamento do Jesus histórico, elas o interiorizam e o fazem presente em toda a sua plenitude. Uma revelação interior, viva, atual e progressiva. Negritamos que o Espírito Santo age e se revela nas entranhas da história e não de forma mágica.
*As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
2 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022
3 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
4 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
5 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
1. Como por exemplo: Lc 19,45-46; 20,9-26; 21,1-4; 22,2.52; todo o capítulo 23.
PALLARES, J. C. Dios es Puro Corazón, la misericordia de Dios en San Lucas. Messico, 1994
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Como Jesus se revela Filho de Deus? Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU