13 Janeiro 2017
“Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (Jo 1,32)
Estamos iniciando o tempo litúrgico conhecido como “Tempo comum”; tempo para um longo e demorado olhar centrado na pessoa de Jesus: “ver” e “mirar” nos conduzem a uma identificação com Ele. Do olhar correspondido brota o seguimento.
A reflexão bíblica é de Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum (15/01/2017) que corresponde ao texto de João 1,29-34.
Como seguidores(as) de Jesus, também vivemos à luz do Espírito, não à sua sombra. Nossa existência, em sintonia com o desejo de Deus para que vivamos em plenitude, é enriquecida pelos nossos desejos profundos de nos constituir como seres livres, ou seja, capacitados a tomar decisões oblativas, desafiados permanentemente por uma pluralidade de opções abertas que se apresentam diante de nós. Não somos escravos de nossa pobre condição mortal, mas o espaço livre por onde habita e transita o Espírito.
No evangelho de hoje, mais uma vez o autor do quarto Evangelho nos coloca diante da figura de João Batista, relatando a experiência dele de encontro com Jesus e revelando-o como aquele que “viu” e que “deu testemunho” de que Jesus é “o Filho de Deus”.
Daí sua insistência no verbo “ver”. Não se trata de um “ver” neutro, preso à exterioridade, mas de um olhar contemplativo, capaz de distinguir e apontar quem de fato era o Messias.
João não recebeu o encargo de divulgar uma ideia, uma doutrina... mas apontar uma pessoa.
Como nos evangelistas sinóticos, também o evangelista João faz do batismo de Jesus o acontecimento fundante com o qual Ele inicia sua atividade pública.
Que é que João Batista “viu”? Viu um homem cheio de Espírito. Ou seja, Jesus é aquele que, habitado pelo Espírito, se deixa conduzir pelo mesmo Espírito. Ele deixa “transparecer” esta presença do Espírito e só quem tem olhar contemplativo é capaz de perceber quem O move.
Sempre quando temos a sorte de encontrar uma pessoa “transparente” (não “perfeita”, mas humana), torna-se mais fácil reconhecer, apreciar, “ver” o Mistério que a habita.
Mas não é suficiente encontrar-nos com alguém assim; é preciso também desenvolver a própria “capacidade de ver”, ou seja, um “saber olhar” que transcende para além das aparências.
Os sábios sempre foram conscientes de que existem diferentes níveis de realidade aos quais podemos ter acesso através de diferentes órgãos de conhecimento. São Boaventura fala do “olho do espírito”, ou seja o “olho da contemplação”.
Empobrecemo-nos quando nos reduzimos ao “olho da carne” e também ao “olho da razão”.
Precisamos ativar o “olho do espírito” que nos capacita para “ver” a realidade em sua dimensão mais profunda, para perceber o Mistério em tudo o que nos rodeia, nós incluídos.
A qualidade humana, o futuro da humanidade e do planeta depende de que saibamos “ver” deste modo.
Nossa experiência do seguimento de Jesus brota da capacidade de fixar nosso olhar n’Ele. De fato, o olhar é o primeiro sentido que nos faz sentir presentes junto ao outro. E, como João Batista, ao fixar nosso olhar contemplativo na pessoa de Jesus, o que vemos é o Espírito agindo n’Ele.
E porque se deixa conduzir pelo Espírito, Jesus não suporta lugares fechados, rompe com os “espaços sagrados”, com os esquemas fechados, com as estruturas arcaicas... O Espírito é “movimento” e Jesus inicia um movimento de vida e vida plena.
Jesus, cheio do Espírito, sempre foi o homem das praças, ruas, caminhos e campos abertos... Não foi o homem dos templos, dos lugares fechados, das cidades fortificadas, mas o “homem em saída”, revelando sua mensagem e sua missão ao ar livre da vida.
A comunidade dos seus seguidores, conduzida pelo Espírito, também não se deixa atrofiar pelos lugares fechados, cheirando a incenso mofado, nem se prende a um ritualismo e religiosidade alienante, mas é aquela que sai para os espaços públicos e ali oferece o testemunho de Jesus.
Somos seguidores de Jesus nos espaços amplos da vida, sem distinção de classes, sem hierarquias, onde todos podem comunicar-se com todos, pois são habitados pelo mesmo Espírito, a força da vida.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
Jesus, na Galileia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens...
Depois do seu batismo e pleno do Espírito, Jesus se faz presente no lugar onde se encontram aqueles que não tem “lugar”, os “deslocados” e que são a razão de seu amor e do seu cuidado; faz-se solidário com os “sem lugares” e os convida a caminhar para um novo lugar. Na Galileia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
Dessa forma, “habitado pelo Espírito”, experimenta que a vida é forte e formosa e que vale a pena acolhê-la e doá-la, como Jesus fez, sabendo que o tempo da opressão, da enfermidade, da morte e da condenação... não tem a última palavra.
Esse é o sentido da expressão de João Batista aplicada a Jesus: “Aquele que tira o pecado do mundo”.
Por isso, Jesus e os primeiros cristãos não usaram modelos de poder centralizado para cultivar a presença de Deus. Nem tiveram a preocupação de construir um novo templo, nem formatar uma nova religião, mas descobriram o Templo de Deus na vida mesma, no diálogo e no encontro das pessoas nos espaços públicos, onde sob o impulso do Espírito, buscaram inspiração e sentido para suas existências.
E a vida não é um templo já construído mas uma rede de conexões múltiplas que vão se refazendo, recriando, de um modo incessante, por obra do Espírito de Cristo.
A presença provocativa e o chamado exigente de Jesus colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada e legalista, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo do Espírito que nos faz romper nossos estreitos lugares e nos projeta em direção ao mundo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. O caminhar dela é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida, sendo presença misericordiosa.
“Fazer caminho” com Jesus implica sair pelas estradas e encruzilhadas para escutar o clamor das pessoas e para alargar a nossa vida no contato com elas. A novidade do Espírito aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
Não estaremos desperdiçando as nossas melhores forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia?
Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
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