15 Setembro 2023
"A liberdade de Cristo validada contra a liberdade da mulher aparece, por entre as linhas, uma espécie de hipoteca sobre a questão, que polariza no plano doutrinário um discernimento disciplinar, que exigiria maior tato e menor preconceito", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 07-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No debate que acompanha o catolicismo há 50 anos sobre a possível admissão de mulheres ao ministério ordenado, um dos “lugares-comuns” com os quais é impossível não se confrontar é o seguinte: se Jesus quisesse ordenar uma mulher, o teria feito. Se livremente não o fez, essa sua vontade, livremente assumida, deve ser zelosamente preservada pela sua Igreja.
Os documentos oficiais, desde a Inter Insigniores - sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial, são muito claros ao defender uma leitura linear da vontade do Senhor, que se acredita ter chamado para o ministério apostólico apenas homens e não mulheres: no seu ato positivo (a escolha de pessoas do sexo masculino) estaria incluído um ato negativo (a exclusão das mulheres). Mas esse valor exemplar da ação de Jesus apresentou, desde o início, alguns problemas que não são fáceis de resolver. Ao contrário de uma leitura pacífica reconstruída com demasiado interesse a posteriori - e que, no entanto, aplicamos com indiferença apenas à dimensão do "gênero" - seria útil recordar que a escolha feita por Jesus, bem como atestada pelos Evangelhos, diz respeito a homens, do sexo masculino, circuncidados e galileus.
O fato, como tal, contém todas essas determinações étnicas, religiosas e de gênero referentes às pessoas objeto da ação de Jesus. A pergunta que surge imediatamente é: o que resulta de normativo nessas determinações? O que devemos conservar e guardar e o que, ao contrário, podemos e talvez devemos mudar e trocar? Poderíamos traduzir essa hesitação numa série de perguntas provocativas, mas não inúteis: dada a ação fundadora de Jesus, em que medida a Igreja é livre para ordenar “não galileus”? Em que medida a igreja pode ordenar “não circuncisos”? Em que medida podemos ordenar “pessoas não do sexo masculino”? E finalmente, no limite extremo, em que medida seria possível pensar em ordenar “não homens”?
Se o silêncio da reflexão que acompanhou a ação do Senhor simplesmente exigisse que a imitássemos, não teríamos nenhuma escolha: apenas homens galileus, circuncidados, do sexo masculino poderiam ser chamados para servir a Igreja. Mas foi inevitável uma interpretação da ação do Senhor, que começou já desde a primeira geração dos seus discípulos. Mais fácil foi identificar em sujeitos “não galileus” válidos apóstolos (como Paulo de Tarso); mais complexa e até custosamente deliberada por um Concílio, de Jerusalém, foi a passagem para conceber discípulos e depois também apóstolos entre os “não circuncisos”.
Teve que passar um longo período na história, mas quando descobrimos (na consciência europeia da modernidade tardia) que as mulheres podem "in re publica interesse" e podem, portanto, exercer uma autoridade comunitária e pública, surgiu o legítimo questionamento de saber se seria possível que ao ministério pudessem ser chamados não só “nascidos de mulher”, mas também “nascidas de mulher”.
A liberdade do Senhor não é mortificada pela liberdade histórica e pelo amadurecimento da consciência da sua Igreja. Foi possível, e até necessário, pensar numa ação institutiva, historicamente posta pelo Senhor, que originalmente tivesse em si todo o seu conteúdo, com toda a clareza de determinações definidas desde o início; mas tornou-se possível, e talvez até necessário, pensar num gesto institutivo que a Igreja, com toda a fidelidade possível, teve de compreender plenamente ao longo da história, à luz das descobertas que a vida de fé, a história das consciências e cultura dos povos estavam realizando. Foi possível que a plenitude da vontade do Senhor aparecesse, lenta e gradualmente, com o dom do Espírito que abriu corações e mentes, que esclareceu preconceitos e confortou as consciências.
O que está em jogo não é tanto a liberdade e a clareza com que o Senhor realizou o gesto institutivo, mas sim a liberdade e a clareza com que, ao longo dos séculos, aquele gesto foi lentamente recebido, aprofundado e compreendido. Portanto, não é o condicionamento histórico que impede o Senhor de fazer gestos definitivos. É a humanidade da qual o Senhor participou e à qual o Senhor falou, que precisa de tempo para compreender plenamente o significado daquele gesto. Se o “verdadeiro Deus” foi “verdadeiro homem” de uma forma não acessória, mas constitutiva, entrou na forma hermenêutica de recepção que para os homens e as mulheres permanece incontornável. A divindade e a humanidade do Senhor não podem ser duas “mesas” autônomas sobre as quais a cada necessidade se possam jogar as distintas ações.
Se estas primeiras reflexões não forem exageradas, deveríamos colocar, ao mesmo tempo, mais uma questão, igualmente decisiva, perguntando-nos com toda a franqueza: por que só deveria contar a livre ação do Senhor sobre a humanidade e não também a livre consciência e autoconsciência da mulher dentro da humanidade comum? Por que razão somos obrigados por essa abordagem magisterial, que parece demasiado rígida, a pensar que Jesus tenha sido livre para discernir entre homens e mulheres, e o tenha feito de uma vez por todas, como se homens e mulheres fossem identidades definidas de uma vez para sempre, fora da história e fora da consciência, sob o olhar seguro do Filho de Deus. Se a mulher, exatamente como o homem, é "à imagem e semelhança de Deus", ela é dotada de liberdade finita e de consciência finita e, portanto, ainda não é realizada. Como dizia K. Rahner, “a mulher vista como única e sempre igual... em última análise, não existe”. Por isso a sua exclusão do ministério sacerdotal só pode ser atribuída à vontade do Senhor apenas por um modelo estático de teologia e antropologia. Justamente aquele modelo que Paulo VI expressou de forma tão eficaz (e tão problemática) ao comentar a divulgação do texto da Inter Insigniores, poucos dias após sua publicação:
“Por que só os homens e não as mulheres podem ser investidos do sacerdócio?… Cristo, ao dar à Igreja a Sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica, depois sempre seguida pela Tradição da mesma Igreja, assim o estabeleceu” (Paulo VI, O papel das mulheres no desígnio de Deus, 1977).
Não é por acaso que justamente esse mesmo texto tenha sido retomado quase vinte anos depois, na Ordinatio Sacerdotalis: dele emerge, com grande clareza, não só o cone de sombra de uma antropologia estática e essencialista, que fixa homem e mulher num projeto pré-definido e sem liberdade, mas também o papel que esta velha antropologia desempenha no magistério sobre a "reserva masculina ". Descobrimos assim que no magistério sobre a ordenação reservada aos homens as partes estão invertidas.
Analisando bem, de fato, não é a doutrina que fundamenta e a antropologia como chave hermenêutica, mas sim uma visceral antropologia essencialista do feminino que impõe uma única solução doutrinária possível, que relê o texto bíblico e a tradição de forma unilateral e tende à dogmatização apologética da diferença entre masculino e feminino. A liberdade de Cristo validada contra a liberdade da mulher aparece, por entre as linhas, uma espécie de hipoteca sobre a questão, que polariza no plano doutrinário um discernimento disciplinar, que exigiria maior tato e menor preconceito. As consequências desta forma de pensar, porém, não são apenas antropológicas, mas eclesiológicas e espirituais: bloqueiam a Igreja no seu “antigo regime” e fixam-na na condição constitutiva e originária de societas inaequalis. Uma pirâmide que por direito divino não pode se inverter.
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A liberdade de Jesus, a liberdade da mulher e a Igreja como pirâmide. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU