30 Agosto 2023
"Uma exclusão da mulher do ministério ordenado, que se pretende justificar apenas com base na tradição eclesial, e que não encontra um fundamento bíblico indiscutível, não resiste à falta de argumentos plausíveis".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 26-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não se deve esconder que o exercício formal da “infalibilidade”, como prerrogativa papal, conheceu, a partir de 1854, apenas dois usos formais e diretos, e um terceiro uso, não formal e apenas indireto. As duas formas oficiais, em que primeiro o Papa Pio IX e depois o Papa Pio XII valeram-se do "pronunciamento ex cathedra", dizem respeito ao dogma da Imaculada Conceição de Maria (1854) e ao da Assunção de Maria (1950). O terceiro caso, que não é tecnicamente exercício da infalibilidade “ex cathedra”, mas que pretende ser o simples reconhecimento por autoridade e definitivo de uma compreensão eclesial infalível, diz respeito à “reserva masculina” da ordenação sacerdotal, sobre a qual o Papa João Paulo II afirma em 1994 não ter a faculdade de modificá-la, pertencendo à “divina constituição da Igreja”.
Todos os três pronunciamentos têm como objeto as “mulheres”: os dois primeiros intervêm na definição da origem e do fim de Maria de Nazaré, ou seja, a concepção sem pecado e a morte redimida em corpo e alma. O terceiro diz respeito, em negativo, a todas as mulheres, incluindo Maria.
A delicadeza da figura feminina, na economia da salvação cristã e católica, resulta extraordinariamente confirmada pela convergência, sobre o tema feminino, de todos os pronunciamentos dotados de autoridade máxima nos últimos 170 anos: dizem respeito precisamente às mulheres. Uma mulher decisiva como a “mãe de Deus”, “imaculada” e “assunta” e todas as outras mulheres, excluídas do ministério sacerdotal.
Contudo, analisando melhor, uma diferença fundamental não escapa ao observador atento. Enquanto as duas afirmações de caráter dogmático, que identificam formalmente uma “verdade de fé”, caracterizam-se pelo traço positivo que qualifica as peculiaridades de Maria na economia da salvação, o terceiro pronunciamento, justamente pelo seu caráter “negativo” (como negação de uma faculdade eclesial) e pelo seu efeito de exclusão (das mulheres da ordenação sacerdotal) não assumiu a forma oficial de uma definição ex cathedra, mas recorreu a um artifício interessante: o Papa João Paulo II afirmou que a Igreja não tem a autoridade para admitir mulheres ao ministério sacerdotal. Essa verdade não é definida pelo Papa, mas declarada como uma “verdade de fé” que a Igreja elaborou com certeza em seu caminho histórico.
No entanto, esse “artifício” produz uma situação paradoxal, porque desloca o foco da atenção da declaração do papa para a consciência da Igreja, na qual seria mantida a verdade que o papa teria se limitado a constatar. Seria, portanto, a história da consciência eclesial, no seu desenvolvimento orgânico, que amadureceu a evidência segundo a qual apenas os homens e não as mulheres podem ter acesso ao ministério sacerdotal.
Aqui, porém, a falta de um fundamento certo no plano bíblico, onde se encontra em positivo o chamado dos homens, mas não em negativo a exclusão das mulheres, cria uma condição precária para a assunção da “infalibilidade” não definida pelo Papa. Porque a condição da infalibilidade eclesial requer uma evidência que o passado teve, mas o presente não tem mais. Portanto, nessa argumentação mínima, sobre a qual é construído o texto da Odinario sacerdotalis de 1994, surge uma tensão não resolvida entre duas dimensões heterogêneas entre si:
a) Seria o “fato” da tradição da “reserva masculina” que fundamenta a evidência de uma ausência de autoridade da Igreja quanto à sua possível extensão da ordenação às mulheres. Mas tal “fato” é produto de uma leitura que a tradição tem acompanhado fortemente com reflexões profundamente marcadas por uma leitura redutiva, subjugada, subordinada das mulheres; na Igreja houve tradições saudáveis, mas também tradições doentes: o discernimento pede um critério sistemático, que não pode ser apenas o factual.
b) A transcrição “doutrinária”, que identificaria a reserva masculina como pertencente à “divina constituição da Igreja”, não assume o valor de um pronunciamento “ex cathedra”, remetendo à “evidência da tradição eclesial” aquela que o papa simplesmente reconhece, mas não coloca. Essa diferença cria uma certa dificuldade em qualificar o nível de autoridade do texto, cujo conteúdo doutrinário parece depender de uma constatação factual tudo menos que pacífica.
Mas justamente esse duplo nível estrutural da Ordinatio Sacerdotalis mostra o lado descoberto da Carta Apostólica. Se não há como demonstrar, no plano exegético e no plano da tradição, um “fato” que seja realmente independente de interpretações profundamente patriarcais e misóginas, o risco (que não se quis correr) era o de empenhar o Igreja para sempre e ex cathedra numa leitura não atualizada da tradição.
Se quiséssemos atribuir à “divina constituição da Igreja” a inexistência da América (após a sua descoberta), a centralidade da terra no universo mesmo depois de Copérnico, ou a subordinação da mulher ao homem no casamento, mesmo depois do novo direito de família, teríamos ficado presos a noções geográficas, astronômicas ou familiares elaboradas por culturas que hoje já superamos em grande parte.
Uma exclusão da mulher do ministério ordenado, que se pretende justificar apenas com base na tradição eclesial, e que não encontra um fundamento bíblico indiscutível, não resiste à falta de argumentos plausíveis. OS, ciente desse risco, escolheu uma espécie de “via média”: tornou a reserva masculina absolutamente “doutrinal”, mas evitou cuidadosamente explicá-la teologicamente. Esperava que, nas décadas seguintes, algum teólogo encontrasse a força ou o engenho para dar uma figura sistemática convincente a essa “declaração”. Porém, todas as tentativas falharam e assim restam apenas dois caminhos:
a) Contentar-se com uma “teologia de autoridade”, que, no entanto, não diz toda a verdade. Porque se dizemos que as mulheres não podem aceder ao ministério sacerdotal “porque assim disse o Papa”, não estamos dizendo a verdade. O papa remete, antes e além de si, à consciência eclesial, na qual a pergunta não recebe uma resposta pacífica há décadas.
b) Descobrir que por baixo das palavras da OS existem assunções factuais questionáveis e soluções doutrinárias que dependem de forma demasiado unilateral dessas reconstruções convenientes. Quando Jesus chama os apóstolos, somente numa leitura demasiado orientada podemos ler a “livre escolha” de chamar apenas homens. A ação de Jesus não é tão clara como nós gostaríamos hoje. Jesus chamou homens galileus, circuncidados e masculinos. Cada uma dessas determinações (galileu, circuncidado, masculino) sofreu nas diferentes épocas interpretações diferentes. Para colocar seriamente a questão da possível ordenação de mulheres ao ministério ordenado, é preciso permanecer fiel ao trabalho interpretativo que levou a Igreja, desde as primeiras décadas, a questionar-se se era possível ordenar não galileus, depois não circuncidados e, mais recentemente, não masculinos. A antiga cultura mediterrânica ou a cultura universal da modernidade tardia não podem permanecer alheias à meditação e à deliberação eclesial. Ter fechado os olhos, a boca e os ouvidos diante dessa evolução cultural é o ponto fraco da OS.
A Igreja pode muito bem deliberar de forma infalível sobre a concepção e morte de Maria. Mas não pode deliberar sobre a exclusão das mulheres da ordenação sem assumir explicitamente a transformação que a identidade feminina sofreu no desenvolvimento cultural dos últimos 200 anos, em grande parte do mundo. Se a Igreja se fechar no pequeno quintal das suas tradições de gestão da autoridade e pensar que, com base nelas, possa continuar a excluir toda mulher de toda autoridade ministerial ordenada, corre o risco de confundir uma declaração de ausência de autoridade com uma manifestação de prepotência. O que, como é evidente, estaria em contradição com a sua vocação.
Finalmente, se muitos gostam de se comprazerem do fato de que, quando o Papa fala, o católico deve obedecer ao que ele diz, e que, portanto, sobre o tema da ordenação sacerdotal não há mais nada de novo a dizer, então é claro que as ideias permanecem um pouco confusas. Sobre o tema da ordenação sacerdotal, o papa não se pronunciou de modo infalível, mas declarou como definitiva uma consciência eclesial considerada infalível. Mas se o fato em discussão, ou seja, a reserva masculina, está ligado não simplesmente a uma evidência de fé, mas a uma concepção genealógica, biológica, sociológica e cultural da mulher, a pretensão de encerrar o discurso numa simples evidência de fé - o que tornaria similares a "reserva masculina" à "natureza divina de Cristo" ou à "presença real" da Eucaristia - seria realmente um resultado totalmente desproporcional e condicionado no plano emocional, portanto inadequado como solução plausível para uma questão séria.
Em questões onde não só a fé, mas também a cultura estão em jogo, não existe nenhuma competência indiscutível nem da Igreja nem do Papa. Quando se trata da identidade dos sujeitos humanos, sejam homens ou mulheres, é precisamente a tradição cristã e católica que descobre que a “liberdade” é uma parte decisiva da sua identidade. Reconhecer também às mulheres a autoridade para presidir na Igreja é um dado cultural e antropológico que a Igreja não sabe valorizar, porque não consegue conceber uma “vocação universal ao ministério ordenado”.
Portanto, mesmo nesse âmbito, se um Papa dissesse que é branco o que é preto, eu não poderia segui-lo não por razões de fé, mas por razões de verdade. A mulher que “entrou na vida pública (quae in re publica interest)” há apenas dois séculos é um “sinal dos tempos” que também muda a tradição eclesial. Pensar em salvar a igreja mantendo uma estrutura injusta da societas inaequalis seria um erro gravíssimo. Também a grande orquestra Filarmônica de Berlim, enquanto H. Von Karajan era o seu diretor, não admitia as mulheres na sua composição. Uma reserva masculina era a norma indiscutível. Com a chegada de Claudio Abbado a Berlim a situação mudou. Também a Igreja Católica precisa entrar na perspectiva de C. Abbado: não como forma de ceder à cultura dominante, mas para não ceder à nostalgia tóxica de identificar a diferença de Deus com a diferença entre homem e mulher. A intenção de salvar a diferença de Deus com a resistência obstinada sobre a reserva masculina, ao custo de torná-la até mesmo um “mistério da fé”, é um beco sem saída. Que não pode ser obstáculo para o caminho da tradição saudável.
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Uma infalibilidade apenas para as mulheres? Questões abertas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU