02 Setembro 2024
À medida que os Estados Unidos se dirigem rumo à potencial eleição de sua primeira presidente mulher, a Igreja Católica lida com questões de gênero no Sínodo de 2024. Enquanto a política estadunidense normaliza a liderança feminina, a Igreja continua debatendo os papéis das mulheres, revelando uma lacuna crescente entre o progresso social e as práticas eclesiásticas.
O artigo é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University. O artigo foi publicado em La Croix International, 29-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os rápidos desdobramentos da campanha eleitoral presidencial dos Estados Unidos durante os meses de julho e agosto de 2024 pintaram um quadro que tem alguma relevância para o futuro imediato da Igreja Católica.
No dia 15 de julho, o dominus e dono do Partido Republicano, Donald Trump, escolheu o senador júnior J. D. Vance, de Ohio, como seu candidato a vice-presidente. As opiniões de Vance sobre mulheres e família, influenciadas por sua conversão ao catolicismo em 2019, aos 35 anos, parecem paleoconservadoras para muitos estadunidenses.
No Partido Democrata, após o desastre do debate de 27 de junho com Trump, a política católica mais poderosa do Congresso estadunidense, a deputada da Califórnia Nancy Pelosi, tirou o presidente americano, Joe Biden, da disputa: uma funcionária pública educada por freiras (na Trinity Washington University das Irmãs de Notre Dame de Namur) e a primeira mulher presidente da Câmara falou em nome de muitos do partido ao presidente Joe Biden, o “sumo-sacerdote” dos Estados Unidos, “uma nação com a alma da Igreja" (G. K. Chesterton).
Isso abriu caminho para a nomeação da atual vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, como candidata do Partido Democrata à presidência. Ela é a segunda mulher candidata, depois de Hillary Clinton, que, em 2016, foi derrotada por Trump. Ao contrário da campanha de oito anos atrás, Harris e o Partido Democrata não dedicaram muito tempo ou energia à defesa da ideia de que uma mulher possa ser presidente dos Estados Unidos.
A teóloga estadunidense Phyllis Zagano escreveu recentemente: “A Igreja Católica está em maus lençóis quando o Partido Democrata dos Estados Unidos traz mais esperança e alegria às pessoas – especialmente às mulheres – do que o Papa Francisco”.
Nos mesmos dois meses que elevaram Harris como a candidata presidencial que pode se tornar a primeira mulher presidente dos Estados Unidos, diversos eventos ocorreram na Igreja Católica. Em 9 de julho, a Secretaria do Sínodo apresentou ao público o Instrumentum laboris para a segunda assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade, em outubro de 2024. Na coletiva de imprensa, os quatro oradores eram todos clérigos, apesar do fato de várias mulheres serem membros do Sínodo e terem trabalhado em vários cargos desde a abertura do processo sinodal em 2021.
O Instrumentum laboris instruiu o Sínodo a não abordar a questão do diaconato das mulheres: “O aprofundamento de algumas questões teológicas e canônicas referentes a formas específicas de ministerialidade eclesial – em particular a questão da necessária participação das mulheres na vida e orientação da Igreja – foi confiado ao Dicastério para a Doutrina da Fé, em diálogo com a Secretaria Geral do Sínodo (Grupo de estudo n. 5)” (par. 30).
Ao mesmo tempo, o Instrumentum laboris coloca essa questão em primeiro plano no texto (par. 12), enquanto tem de lidar com aquela entrevista de maio para a rede de televisão estadunidense CBS, na qual o Papa Francisco expressou sua firme oposição às mulheres diáconas de forma inequívoca, “se forem diáconas com ordens sagradas”.
O que acontece nos Estados Unidos raramente fica nos Estados Unidos. Harris pode se tornar a primeira mulher presidente do país. Mas mesmo que não seja, a mensagem que emerge da política estadunidense em 2024 é a de que, durante a última década, o país foi além da questão sobre se “uma mulher pode ser presidente”. Estamos observando a normalização da ideia de uma “Senhora Presidente”, também à luz de preocupações mais urgentes, especialmente o futuro da democracia estadunidense.
Agora, a situação na Igreja Católica apresenta um quadro diferente. Não sabemos o que acontecerá no Sínodo e depois do Sínodo sobre a questão das mulheres. Está claro que o Papa Francisco não quer que o Sínodo seja sequestrado por nenhuma questão – como as mulheres, mas também o gênero e as pessoas católicas LGBTQ.
Mas também está claro que as mulheres na Igreja Católica ainda hoje precisam dizer coisas que as mulheres estadunidenses (e não apenas estadunidenses) não precisam mais dizer ou dizer tanto sobre sua participação e liderança na política e na sociedade. Na Igreja, mais do que um problema de doutrina, é uma questão de confrontar práticas já existentes, a realidade do catolicismo vivido em muitas Igrejas ao redor do mundo (como já surgiu no Sínodo de 2019 para a região amazônica).
A assembleia do Sínodo de 2024 e o tratamento pós-sinodal sobre a questão das mulheres pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, liderado pelo cardeal Víctor Manuel Fernández, podem decidir adiar a questão mais uma vez. Atualmente, não há nenhum documento da Igreja Católica que diga que as mulheres não possam ser ordenadas ao diaconato, e os relatórios das duas comissões criadas pelo Papa Francisco para estudar a questão permanecem inéditos, deixando seu conteúdo desconhecido. Isso é relevante, porque seria importante saber o que Francisco recebeu nesses relatórios e como eles moldaram suas decisões.
O Vaticano pode recorrer ao argumento de que as mulheres não podem ser ordenadas ao diaconato porque elas não podem ser a imagem de Cristo. Se isso acontecer, independentemente da posição de alguém sobre a ordenação das mulheres ao diaconato, será difícil convencer as mulheres, especialmente aquelas que acreditam no processo sinodal, a evitar a conclusão de que o clube de celibatários masculinos, conhecido como clero católico romano, parece estar à beira, mais uma vez, de fazer o melhor para manter as mulheres no seu devido lugar.
Durante o último século, a lacuna entre as oportunidades de participação das mulheres na política e na Igreja aumentou. Agora, essa lacuna se tornou visivelmente maior, especialmente do ponto de vista das mulheres católicas nos Estados Unidos, na esfera anglo-americana e em muitos países europeus. Esse é um problema sério sobre o que a Igreja precisa fazer em termos de evangelização.
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O momento Kamala, as mulheres católicas e o Sínodo sobre a Sinodalidade. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU