28 Agosto 2024
"A campanha aposta no 'choque narrativo', construído em torno da identidade de Kamala Harris e espelhando a esperança obamista de 2008, para recuperar os eleitores progressistas desencantados com Biden, cujas principais linhas de ação são reivindicadas para conservar os moderados".
O artigo é de Juan Elman, cientista político e jornalista especializado em política internacional, publicado por Nueva Sociedad, agosto de 2024.
Como os democratas recuperaram o espírito épico.
Poucos imaginaram que a vice-presidente americana, com uma gestão de perfil baixo, pudesse encarnar o 'choque narrativo' exibido na Convenção Democrata após o afastamento de Joe Biden. Com uma campanha que fala de liberdade e futuro, Harris enfrenta o discurso apocalíptico de Donald Trump. Não sem tensões internas, especialmente em relação à guerra em Gaza, o massivo e diversificado conclave de Chicago foi uma espécie de Super Bowl democrata.
Na quinta-feira, às oito da noite, duas horas antes de Kamala Harris subir ao palco para encerrar a Convenção, os corredores do United Center em Chicago estavam lotados de pessoas e rumores. Os jornalistas se amontoavam nas áreas de segurança para acessar o piso, onde estavam sentados mais de 4.000 delegados democratas e que agora estava vedado, obrigando grande parte da imprensa a acompanhar o evento das arquibancadas. Então começaram os rumores. Quem seria o convidado surpresa de que as redes sociais falavam o dia todo? Era dado como certo que Beyoncé, autora de "Freedom", a música oficial da campanha de Harris, se apresentaria, então os olhares estavam voltados para um orador surpresa. Don Lemon, ex-apresentador da CNN, insinuou que essa pessoa poderia ser George Bush, o último presidente republicano antes de Trump.
Por alguns minutos, a ideia de que Bush poderia aparecer na Convenção Democrata – uma ideia absurda, rapidamente desmentida por seus assessores – parecia plausível no contexto dessa Convenção, provavelmente a mais espetacular das últimas décadas. Durante quatro dias, os democratas montaram um show cinematográfico cheio de histórias, coreografias e discursos, levando alguns usuários a compará-lo ao Super Bowl. O roteiro construído durante os primeiros três dias antecipava uma grande reviravolta narrativa para a última noite.
Mas nem Bush nem Beyoncé apareceram no palco naquela noite, nem houve figura surpresa. Os momentos antes do discurso de Kamala Harris foram dominados por políticos mais apagados do que nos dias anteriores e até menos articulados, como Leon Panetta, ex-diretor da CIA e secretário de Defesa na era Obama, que falou sobre o assassinato de Osama Bin Laden e terminou citando Ronald Reagan. A reviravolta escolhida para a última noite era outra e ficaria clara com o discurso de Harris. A nova candidata escolheu um tom presidencial e assertivo: resgatou seu passado como procuradora geral da Califórnia e fez um chamado à unidade nacional com as mesmas palavras que Reagan usava ("Serei a presidente de todos os americanos"). Utilizou sua história pessoal para falar da classe média, e não de sua identidade como mulher negra. Ao contrário de outros discursos de campanha e dos clipes nas redes sociais, fez poucos elogios e falou de Trump como uma ameaça nacional antes de chamá-lo de "estranho" (weird), como o denominou eficazmente seu companheiro de chapa, Tim Walz.
"Como comandante-em-chefe, garantirei que os Estados Unidos sempre tenham a força de combate mais poderosa e letal do mundo. Cumprirei nossa sagrada obrigação de cuidar de nossas tropas e suas famílias", disse aos delegados e ao restante do público, que agitava bandeiras americanas – entregues pelos organizadores nas horas anteriores – e gritava "U-S-A" com uma efervescência que não se viu na Convenção Republicana.
Se Harris escolheu para o clímax do evento um discurso mais sóbrio e centrista, precedido por oradores que além de Panetta incluíam Adam Kinzinger, um republicano não trumpista, foi porque todo o componente identitário de sua candidatura e a renovada mística democrata já haviam sido amplamente explorados nos dias anteriores. Harris terceirizou essa narrativa para outras figuras como Michelle e Barack Obama, os Clintons, Oprah Winfrey, um punhado de artistas e atletas e até o próprio Joe Biden, cujo discurso na segunda-feira à noite – o primeiro dia da Convenção – superou todas as expectativas.
O presidente conseguiu defender sua gestão de forma vigorosa, algo que não conseguiu durante todo o ano, e se permitiu algumas improvisações. Fez isso em seu último grande discurso público, despedindo-se do partido e de uma carreira política que durou 50 anos. Biden conseguiu representar, de forma natural, a reviravolta inesperada da campanha, quando Harris assumiu a candidatura e injetou no partido uma energia impensada em qualquer um dos cenários projetados. Biden, sob o olhar atento de Nancy Pelosi, a ex-presidente da Câmara dos Deputados, que liderou a campanha de pressão pública para que ele se afastasse e estava na primeira fila, passou a tocha. Disse que escolher Harris foi a melhor decisão de sua carreira, anunciou que ela seria sua "melhor voluntária" e a recebeu no palco. Os democratas começavam sua Convenção com o pé direito.
No segundo dia, Michelle Obama fez provavelmente o melhor discurso do evento, carregado de invocações à esperança – a retórica de 2008, o grau zero do obamismo – e ataques diretos a Trump. Tanto seu discurso quanto o de seu marido, que foi mais longo e incluiu referências econômicas, foram conceitualmente densos. Os Obama articularam uma defesa do liberalismo americano, desde o tratamento entre as pessoas até a forma de seu ordenamento político: a democracia. Houve citações a Abraham Lincoln e uma leitura do sentido da história. Foi o argumento mais elaborado sobre o eixo da campanha democrata, centrado no conceito de liberdade e que enquadra a disputa eleitoral como uma disputa sobre o próprio significado dos Estados Unidos, antes de ser um referendo sobre a democracia – como fez Biden em 2020. A ideia foi retomada por Harris em seu discurso, que descreveu essas eleições como "as mais importantes na vida de nossa nação".
A Convenção também ofereceu, para surpresa de vários delegados e observadores próximos, a constatação de que o partido, ao contrário do que se dizia há pouco, renovou seus quadros e tem uma oferta robusta. Legisladoras ascendentes como Alexandria Ocasio-Cortez e Jasmine Crockett, o ex-prefeito e secretário de Transporte, abertamente gay, Pete Buttigieg, os governadores Josh Shapiro e Gretchen Whitmer, e o líder da bancada democrata na Câmara dos Deputados, Hakeem Jeffries - além do ultracarismático Tim Walz, companheiro de chapa de Harris - mostraram com seus discursos que o partido tem um novo grupo de figuras, diversas tanto em termos ideológicos quanto de perfis demográficos, que os republicanos, atados a Trump, hoje não mostram.
Mas o relato cuidadosamente escrito pelo comitê do partido começou a se desgastar à medida que a Convenção avançava e se rompeu no último dia, quando o clamor pela guerra em Gaza se tornou impossível de ignorar.
Começou com uma protesto na segunda-feira ao meio-dia, poucas horas antes da abertura oficial do evento. Cerca de 2.000 pessoas marcharam de um parque de Chicago – cidade que abriga a maior comunidade palestina dos Estados Unidos – até as proximidades do estádio, bem antes do cordão de segurança. Em sua maioria jovens brancos, os manifestantes gritavam o slogan "Free Palestine" [Palestina livre] enquanto lembravam aos líderes do partido o financiamento e as armas que os Estados Unidos fornecem a Israel. "Os democratas querem um genocídio com boas maneiras", dizia uma faixa. Era a marcha contra a Convenção que se organiza em todas as eleições, com a presença de ativistas e pequenos grupos de esquerda, mas este ano foi centrada em Gaza e teve a participação de eleitores regulares do partido; alguns afirmavam que ainda não tinham decidido seu voto deste ano e esperariam pela posição de Harris.
Nos últimos dois dias, no entanto, o protesto se trasladou para dentro da Convenção. Impulsionado pelo grupo de delegados "não comprometidos" (uncommitted) de Minnesota, que foram eleitos nas primárias como sinal de protesto, o movimento exigiu a inclusão de uma voz palestina na programação da Convenção. Até então, o tema da guerra só havia sido abordado pela família de um refém em Gaza e por alguns políticos progressistas como Bernie Sanders e Ocasio-Cortez, que pediram um cessar-fogo (Biden também fez isso). Os delegados se sentaram fora do estádio, mas dentro do perímetro de segurança, ou seja, dentro do espaço da Convenção, esperando uma convocação.
Essa convocação nunca chegou. Segundo alguns delegados, o comando de Harris ofereceu uma reunião privada, mas rejeitou qualquer tipo de intervenção no palco. O movimento então divulgou o discurso que estava previsto, a cargo de Ruwa Romman, uma legisladora estadual da Geórgia de origem palestina, que acabou sendo lido na quinta-feira à tarde para um pequeno grupo de jornalistas. A oradora se emocionou diante das câmeras e disse que não conseguia entender a posição do partido. Mas, em privado, os delegados apontavam para o "lobby pró-Israel", que responsabilizavam por algumas derrotas de candidatos progressistas nas primárias democratas deste ano. Os grupos pró-Israel tiveram provavelmente uma presença mais sutil do que em outros anos, e para acessar os eventos paralelos, os requisitos de segurança eram mais invasivos do que para o resto, mas eram identificáveis.
Na segunda-feira foi lançado o Zioness Action Fund, uma organização que se define como "descaradamente progressista, e sionista sem complexos, apaixonadamente pró-Kamala e pró-democrata" e à qual assistiram altos congressistas. Na quinta-feira, o Jewish Democratic Council of America (JDCA) organizou uma palestra sobre antissemitismo em que falou Doug Emhoff, o marido de Harris, justamente quando começava o segundo protesto de rua. Naquela noite, a candidata se referiu ao tema, mas começou apoiando assertivamente "o direito de Israel de se defender", o que provocou alguns gritos isolados de "Palestina livre" entre o público, que não foram ouvidos na transmissão oficial. Depois pediu o fim da guerra para que "o povo palestino possa realizar seu direito à dignidade, segurança, liberdade e autodeterminação", tentando reconciliar a demanda com seu discurso.
O episódio ilustra não apenas como a guerra em Gaza divide o Partido Democrata, mas também o difícil equilíbrio proposto por Kamala Harris, que já retificou algumas propostas mais progressistas, como sua oposição ao fracking, e se define de maneira ampla, destacando tanto seu papel como procuradora quanto seu apoio aos sindicatos e à defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, uma linha que não é nova e vem do governo Biden. No final, a Convenção demonstrou que a candidatura de Kamala é um choque narrativo mais do que programático, e que há temas em que o partido decide desviar o olhar. Além de Gaza, o outro grande exemplo foi a imigração, em que a linha foi atacar Trump por sua oposição a um acordo bipartidário antes de seu enfoque estrutural da política migratória.
Em uma Convenção onde havia histórias comoventes sobre todos os temas possíveis – aborto, tiroteios em massa, o ataque ao Capitólio – os democratas não ofereciam um contrarrelato no principal tema de campanha dos republicanos. E se não havia histórias que atacassem as políticas migratórias de Trump, era porque as de Biden e Harris se parecem com elas. Ainda assim, destacou-se a presença da esquerda partidária, como Alexandria Ocasio-Cortez ou Bernie Sanders no horário nobre da Convenção, o que mostra que a candidata não pode deixar de lado essa corrente que cresceu com força nos últimos anos.
A campanha aposta no "choque narrativo", construído em torno da identidade de Kamala Harris e espelhando a esperança obamista de 2008, para recuperar os eleitores progressistas desencantados com Biden, cujas principais linhas de ação são reivindicadas para conservar os moderados.
Esse equilíbrio precário está funcionando: Harris lidera várias pesquisas a nível nacional e em estados competitivos que definirão a eleição. Embora o cenário esteja equilibrado, o movimento era impensável há um mês e se explica pelo renovado entusiasmo entre as bases democratas (Trump, ainda desorientado, não perde apoio significativo nessas pesquisas). Se Harris conseguir mantê-lo, será justamente pela surpresa desta campanha: os democratas conseguiram construir uma fórmula competitiva a poucos meses das eleições e ampliaram o impulso de energia com o anúncio da fórmula completa e a Convenção. Agora, com pouco mais de um mês para o início da votação antecipada e pouco mais de dois meses para as eleições gerais, há menos tempo para que a percepção inicial sobre Kamala Harris se reverta.
Talvez a retirada tardia de Biden tenha ocorrido no momento certo para salvar os democratas.
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O momento Kamala. Artigo de Juan Elman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU