21 Agosto 2024
"Identidade e homogeneidade foram, assim, conceitos-chave da filosofia política e da teoria social do nazismo. A igualdade deveria basear-se numa imaginária identidade coletiva ariana, com exclusão de todos os diferentes, supostas ameaças à homogeneidade. O Holocausto não foi apenas de judeus, mas também de ciganos, de negros, de homossexuais, de incapacitados, de comunistas", escreve Muniz Sodré, em texto publicado por Folha de S. Paulo e reproduzido por André Vallias em sua página no Facebook, 17-08-2024.
Muniz Sodré é professor, pesquisador, sociólogo, jornalista e tradutor. Professor emérito da Escola de Comunicação – ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e membro da Academia de Letras da Bahia, atualmente é colunista do jornal Folha de S.Paulo e considerado um dos maiores intelectuais brasileiros no campo da comunicação. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 2009 a 2011 e fundador do PPG em Comunicação da ECO. É autor de diversas obras, entre elas Pensar Nagô (Vozes, 2023) e O fascismo da cor (Vozes, 2023).
Segundo ele, "sim, toda identidade é ilusória. Mas essa ilusão própria pode ser estratégica na luta pelos direitos civis".
Ao questionar o que supõe ser "identidade racial" de Kamala Harris, Trump, besta inquestionável, suscita, entretanto, um objeto de controvérsia que embaraça ativistas políticos. Kamala, de origem indiana e jamaicana, tem pele escura como seus genitores e ancestrais. Em matéria de fenotipia, a Índia é um mosaico, a depender da região. Na Jamaica, Bob Marley seria o padrão.
Mas a pele clara também tem grandes variações: os escandinavos diferem dos gauleses, dos eslavos e assim por diante. O comum é a despigmentação. Branco e negro são categorias morfofenotípicas criadas pelo pensamento colonial a partir da falsa ideia de raça. Não identificam, tentam classificar.
Não existe identidade racial. Nem identidade humana que não seja construção social, uma ilusão estabilizadora das oscilações caóticas da consciência. Até mesmo a fonte da vida histórica é o caos, no sentido originário do verbo grego chasko, em que transparece o torvelinho na constituição da realidade.
Daí o medo das diferenças inerentes ao processo identitário. Identidade e homogeneidade foram, assim, conceitos-chave da filosofia política e da teoria social do nazismo. A igualdade deveria basear-se numa imaginária identidade coletiva ariana, com exclusão de todos os diferentes, supostas ameaças à homogeneidade. O Holocausto não foi apenas de judeus, mas também de ciganos, de negros, de homossexuais, de incapacitados, de comunistas.
É possível que a fonte desse eugenismo seja norte-americana (teoricamente, o tratado Crania Americana, de Samuel Morton). Mesmo sem descambar na alucinação nazista, a América baseou sua democracia igualitária no racismo, isto é, na construção da brancura como identidade central, geradora de um sentimento de distinção excludente de outras formas de representação social. No Sul, pele branca era sinal de nobreza, os escravistas adotavam modos aristocráticos dos franceses. O racismo americano cresceu como demanda de identidade e homogeneidade. Ilusão qualitativa, dominação hierárquica.
Sim, toda identidade é ilusória. Mas essa ilusão própria pode ser estratégica na luta pelos direitos civis.
Aconteceu com o movimento negro, impelido pela percepção de aspectos positivos na ideia de "identidade negra" como contra-hegemonia descolonial. Ninguém jamais reivindicou isso na África. E na rebeldia afro-americana do século passado, era só recurso crítico, tático. Sob o pós-espírito de insurreição, surge como identitarismo, lugar de fala exclusivo. Ópio das esquerdas: articula identidade como essência, não como posição dialética na dinâmica social. É o caso do racista Trump. Para Kamala, entretanto, negro é configuração lógica, um topos: não qualidade antropológica, mas um lugar que se ocupa.
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Kamala idêntica a Harris. Artigo de Muniz Sodré - Instituto Humanitas Unisinos - IHU