20 Julho 2024
"Debater se o atentado foi ou não simulado é cabível – e anima conversas de boteco. Mas eclipsa o crucial: ele deu coesão à ultradireita. Um fascista com poder nuclear é ameaça global. Campo democrático não pode seguir passivo, chorando pitangas da “polarização”" escreve Maurício Abdalla, em artigo publicado por Outras Palavras, 18-07-2024.
Maurício Abdalla é filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).
No plano das opiniões e impressões pessoais, todos têm o direito de suspeitar da veracidade dos fatos relacionados ao atentado contra Donald Trump. Afinal, a vítima, que saiu ilesa e mais viva do que antes, é uma pessoa mentirosa, pertencente a um campo político que tem a mentira e a simulação de realidade como método e o ocorrido foi no país em que as conspirações são práticas históricas e não meras teorias.
Logo apareceram vários analistas profissionais da imprensa (corporativa ou independente) e amadores das redes sociais debatendo sobre a veracidade ou não do atentado. Curioso ver como muitos da esquerda davam ares de superioridade à sua análise por recusar qualquer suspeita de forjamento de realidade e acusar os que duvidavam de sustentar “teorias da conspiração”. E seguiam com declarações de repúdio à violência e ao atentado, quase como uma moção de solidariedade ao candidato republicano.
Ora, por que menosprezar ou ridicularizar as opiniões e suspeitas pessoais de que o atentado pode ter sido armação, se só temos informações fragmentadas, indiretas, produzidas por agências estadunidenses e colhidas na grande mídia? Engana-se quem faz isso na certeza de apresentar uma análise racional em contraste com meras opiniões, pois o que faz é apenas sustentar uma opinião mais crédula, apresentada com ares de superioridade analítica, em contraste com as opiniões mais incrédulas, que se mesclam com certos exageros e afirmações apressadas.
Se me permitem uma quebra de estilo, a questão é que não é essa a questão. Discutir se o atentado é fato ou fake é debater no plano das opiniões e desviar do foco principal para o qual nossas preocupações e análises deveriam estar voltadas. Sobre isso, eu também tenho a minha opinião para consumo próprio e para animar conversas de boteco. Mas não vou compartilhar aqui, pois não tenho elementos que permitam uma análise. Prefiro os pontos de vista baseados em análises. Ao final, eles não deixam de ser opiniões, mas do tipo que se sustentam em coisas que podemos ter como certas e não em palpites.
Embora não tenhamos condição de saber se o atentado foi uma armação ou não, podemos saber que a disputa eleitoral nos EUA não é entre direta e esquerda, no sentido tradicional. As duas candidaturas apoiam o genocídio palestino, mantém o embargo criminoso a Cuba, são favoráveis à invasão e intervenção em outros países, são submissas aos interesses das petrolíferas, dos bancos, indústria de armas, big pharmas etc. O fato de o Partido Democrata se abrir para temas identitários não o torna um partido de esquerda para o qual valha a pena torcer como se fosse nosso. Não importa se a bomba que cai sobre a cabeça dos palestinos e o embargo que mata de fome os cubanos venham com o slogan Black Lives Matter ou com o arco-íris da diversidade, pois eles doem e matam da mesma forma e com a mesma intensidade.
Embora com tons diferentes, Biden e Trump defendem os EUA como império. Os que manipulam as linhas invisíveis que controlam o poder aceitam de bom grado ambas as candidaturas. Não dá para confiar plenamente em nenhuma informação que venha dos EUA. E nem podemos cair na armadilha de uma “polarização” em que precisamos estar de um lado. Eles abusam da falácia do falso dilema para que creiamos que somos obrigados a apoiar e reproduzir apenas as duas opções apresentadas, como se não houvesse outras forças políticas no mundo. Assim, temos uma direita no Brasil que acha que deve imitar o trumpismo e uma esquerda que está se transformando em réplica dos democratas estadunidenses.
Contudo, os que têm maior poder e mais dinheiro podem ver em Trump um atalho para passar por cima das discussões sobre direitos humanos, democracia, ecologia, direito internacional e autodeterminação dos povos. Um presidente sem escrúpulos, negacionista da ciência e dos valores democráticos e republicanos pode atropelar essas coisas que atrasam ou estorvam os interesses dos donos mais poderosos do capital. E são esses que realmente definem a política nos EUA e na maior parte do planeta. É isso que cria um risco enorme para o mundo.
O problema, para nós, é que Trump é proto-fascista e pode ser eleito presidente da maior potência bélica e econômica do Ocidente. Não faz sentido perdermos tempo na discussão palpiteira se o atentado foi real ou simulado. Fato ou fake, o ocorrido contribui para o sentimento de coesão dos reacionários e adesão a uma liderança que traz os valores mais perigosos e ameaçadores para a civilização mundial. Essa é a ameaça que nos diz respeito.
Não há tempo para perder com notas de solidariedade a um proto-fascista ou para tornar-se especialista em segurança e serviço secreto estadunidense. Podemos estar diante de uma vitória com a qual Hitler sonhou, mas não conquistou: o império mundial do nazi-fascismo conduzido por uma potência bélica nuclear. Isso nos traz outras questões para a reflexão.
A direta liberal democrática será minimante sensata para entender o que a extrema-direita representa para os valores que dizem defender? Os profissionais da mídia corporativa entenderão que a simulação de uma neutralidade diante do que chamam de “polarização” é na verdade uma aceitação do fascismo como alternativa política? O Judiciário vai entender que suas decisões sobre os golpistas devem ser independentes das opiniões políticas e que o “cálculo político” pode dar tempo para a extrema-direita crescer? O diversificado campo da esquerda vai entender que o identitarismo liberal e a militância performática, linguística e virtual, cuja artilharia só tem acertado quem dela deseja se aproximar, não definem realmente um campo eficaz de resistência ao fascismo?
É sobre isso que as forças democráticas, progressistas e de esquerda deveriam estar refletindo. O sangue do povo palestino, o sofrimento do povo cubano, as eleições do Brasil em 2026 (com articulação da extrema-direita local para tomar o Senado), a sombra que pode se estender sobre os países do Sul global com o avanço do fascismo mundial são coisas que me preocupam muito mais do que saber se o sangue na orelha de Trump era ketchup.
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Trump e a bala que pode acertar a democracia. Artigo de Maurício Abdalla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU