05 Outubro 2022
Ernst Nolte, em um de seus livros (“Controversie”), defendeu que a esquerda não foi inventada por Marx, porque ela existia desde sempre: a “eterna esquerda” – como ele a definia – que se enraíza no pensamento das religiões celestes e que somente ao longo do século XIX conheceu uma opção armada e violenta, nunca antes vista. Posta dessa forma, a discussão sobre as culpas históricas do comunismo muda: uma coisa é o comunismo comunitarista, outra coisa é aquilo que nós chamamos de comunismo soviético.
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado em Settimana News, 01-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É evidente que a substância dessa “eterna esquerda” deveria ser investigada aprofundadamente, para explicar por que a esquerda política ainda não se extinguiu no mundo a tantos anos do fim do horror soviético, com seus gulags e seu desastroso coletivismo. Para Nolte, a eterna esquerda tem o profeta Isaías e Jesus entre seus pontos de origem.
Chegando aos nossos tempos, ele escreveu: “No contexto filosófico e social criado por Furier e por Owen, foi cunhado o termo socialismo, que é contraposto do modo mais firme à economia da concorrência, que tornava os homens inimigos entre si, fazendo com que um se tornasse rico, e o outro, pobre. Só em Babeuf era predominante a ideia da luta de classes sanguinária e, portanto, a disponibilidade para destruir tudo, contanto que a igualdade reine soberana”.
Da mesma forma, Umberto Eco falou de certo tipo de direita radical, quando, em uma de suas famosas conferências, cunhou a expressão “Ur-fascismo”, em que o termo Ur, tirado da língua alemã, significa “perene” ou – como na tradução escolhida pela maioria – “eterno”, precisamente no sentido da eternidade indicada por Nolte.
O Ur-fascismo é algo que diz respeito ao debate sobre o que está ocorrendo na Itália e além. O importante é não cair em equívocos e falar de nostalgias pelo fascismo histórico. Não é esse o ponto, pelo menos para mim, assim como, com a “eterna esquerda”, a questão não pode ser o partido único ou os desvios violentos.
Em vez disso, o que importa é ver as pedras angulares culturais e as posteriores transformações de ambos e perceber que algo do “perene fascismo” nos diz respeito, e diz respeito particularmente aos eleitores católicos, certamente não marginais na recente vitória dos Fratelli d’Italia e, no passado, da Liga.
Acho interessante unir as teses de Nolte e de Eco com a convergência de definições tão claras: plena, se os autores tivessem escrito “eterna esquerda” e “Ur-direita”.
Em uma síntese muito feliz da segunda parte do texto de Eco, Giorgio Barberis resume assim os arquétipos que se cruzam, às vezes até de forma contraditória, nesse fenômeno político do Ur-fascismo:
- o culto da tradição e a fé em uma verdade revelada ab origine, que só deve ser corretamente identificada, interpretada, conhecida e defendida para além das suas manifestações aparentemente contraditórias;
- o irracionalismo ou – mais precisamente – a rejeição do modernismo mais sólido e mais forte do que o entusiasmo, às vezes até presente, em relação à tecnologia;
- o culto da ação pela ação, ou seja, a suspeita em relação ao mundo intelectual e a hostilidade à cultura e às suas complicações, já que a dúvida paralisa, e a reflexão retarda a marcha;
- a rejeição da crítica e do dissenso, que é lido como uma traição;
- o medo da diferença, do pluralismo e o consequente corolário de fechamentos xenófobos e de desvios racistas, mais ou menos desdobrados;
- considerando-se, além disso, que o Ur-fascismo surge da frustração individual ou social, um de seus elementos fundadores é justamente o apelo às classes médias frustradas, “desconfortáveis com qualquer crise econômica ou humilhação política, assustadas com a pressão dos grupos sociais subalternos”;
- outra característica central e coerente com os elementos recém-descritos é a construção opositiva de uma identidade nacional que se determina contra um inimigo interno ou externo à comunidade, que trama contra ela e da qual deriva a obsessão Ur-fascista pelo complô, que passa a assumir características estereotipadas, tão claras a ponto de anularem, aliás, qualquer possibilidade de avaliação objetiva da situação real, assim como do equilíbrio efetivo das forças em campo;
- contra esse inimigo, a única opção possível é uma guerra permanente, até a vitória definitiva;
- o consequente culto do heroísmo e da morte, entendida como a melhor recompensa por uma vida heroica;
- um machismo mal disfarçado e, às vezes, aberto, que muitas vezes envolve o “desprezo pelas mulheres e uma condenação intolerante dos hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade”;
- um forte espírito hierárquico e a devoção a um líder carismático com um certo desprezo pelo parlamentarismo, incapaz de interpretar e representar corretamente a suposta vontade comum de um povo que se sente “eleito” por ser moldado e condicionado pela TV e pela internet, instrumentos letais de um populismo que Eco definia como “qualitativo”, pois esse povo não existe por si só, mas é uma ideia que ganha voz e força nas ruas e nas palavras dos líderes que o representam: portanto, uma abstração ou uma “ficção teatral”.
Era o dia 25 de abril de 1995 quando Umberto Eco, falando na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, traçava esse perfil muito atual de um pensamento político que, na minha opinião, contém muitos dos motivos que empurraram e empurraram grandes setores do catolicismo tradicionalista para os partidos de direita, como a Liga ontem e o Fratelli d’Italia hoje. É isso que me interessa.
Parece-me que a pergunta mais importante é esta: o cristianismo de Cristo pode ser Ur-fascista? Aquela que muitos denominaram de “cultura cristianista” – não cristã –, se ontem viveu sua certeza de ser a societas perfecta a ser imposta a todos em todos os lugares, hoje não estaria sentindo o gosto político das guerras culturais onde prevalece – ou sucumbe – contra o modernismo e seus outros substitutos?
Esses católicos, diante do risco existencial representado pelo extremismo adverso, por sua vez, se entrincheiram e se radicalizam. É aqui que nasce uma espiral de extremismos opostos cada vez mais extremos e indispensáveis uns aos outros? É por isso que Nolte também fala do nazismo como um “bolchevismo antibolchevique”?
Certamente, nem tudo se refere à direita que vemos hoje. O Ur-fascismo nos é apresentado por Eco como sincretista, o que não parece corresponder ao dado atual, pelo menos aparentemente. O sincretismo de que Eco fala é funcional à ideia de que não pode haver avanço do pensamento: “A fonte teórica mais importante da nova direita italiana, Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sion, a alquimia com o Sacro Império Romano”: interessante, se pensarmos em certos gatilhos no Panteão Ur-fascista, do calibre de Che Guevara e do próprio Gramsci.
A esquerda marxista sempre rejeitou a referência – bastante evidente para mim – à “eterna esquerda” de matriz religiosa. Mas de onde será que veio a utopia marxista-leninista de criar o “homem novo”? E por que Moscou foi, para muitos, a capital da Terceira Internacional e a Terceira Roma do império do bem contra o império do mal ocidental? A rejeição de Deus levou o ramo da “eterna esquerda” a rejeitar um teólogo de referência, aceitando, no máximo, alguma interlocução episcopal.
A direita – convença ou não o rótulo Ur-fascista –, por sua vez, tem procurado seus teólogos ostensivamente. É uma consultoria que pesa, porque, se o coração político da centro-direita está agora na raiva dos pobres e dos derrotados da globalização do crescente mal-estar urbano, a explicação em termos de teologia tradicionalista e antimodernista torna tudo politicamente mais absoluto e agressivo.
Deduzo disso que o tradicionalismo e o antimodernismo serão as chaves culturais escolhidas pela direita para remover o conciliarismo e obviamente a sinodalidade, isto é, a essência do papado de Francisco, verdadeiro obstáculo àquele que – graças a Eco – considero um fenômeno muito evidente: o desejo de correr para o irracionalismo por parte do Ur-fascismo.
Para entender esse desejo, seria preciso falar dos erros e dos desvios próprios do racionalismo, convencido – nem todo ele, felizmente – de que, assim como existem leis físicas universalmente válidas, também existe para o ser humano uma receita universal de felicidade, obviamente conhecida pela ciência. e aplicável a todos, desde a humanidade da pequena aldeia amazônica até a de Nova York.
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Os católicos e a direita radical - Instituto Humanitas Unisinos - IHU