As mil faces da necropolítica. Destaques da semana

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Cristina Guerini | 17 Agosto 2024

Há semanas o tema da violência é destaque por aqui. No Brasil, a violência acaba com as utopias juvenis. Israel aniquila a possibilidade de um futuro na Palestina. A juventude nem-nem sequer consegue bancar suas despensas. As guerras em Gaza e na Ucrânia continuam em nosso radar, ao mesmo tempo que aguardamos como o conflito vai se desenrolar no Oriente Médio. Os povos indígenas seguem, apesar de massacrados, resistindo aos ataques e tensões. Quase torramos com o julho mais quente da história e estamos apreensivos diante o decreto de emergência de saúde internacional sobre a nova variante da varíola dos macacos. Esses e outros assuntos nos Destaques da Semana do IHU.

Confira os destaques na versão em áudio.

Dom das lágrimas

O papa Francisco, há quase uma década, fala da importância de pedirmos o “dom das lágrimas”. Em meio à incerteza, à violência e o mal que nos cercam, chorar pela dor do outro é também suplicar por um mundo melhor. Tempos de estupidez organizada.

Violência à brasileira

No Brasil, a violência segue como rastilho da pólvora: mais de 15 mil jovens foram mortos nos últimos três anos. Mas não só: uma criança ou adolescente foi vítima de estupro a cada 8 minutos no país nos últimos três anos, totalizando 164,2 mil casos. A cada dia, quase cinco mulheres foram vítimas de feminicídio, tudo isso quando a Lei Maria da Penha completa 18 anos. No campo, o assassinato de mulheres teve alta de 16% no ano passado. A violência policial também chocou essa semana com três policiais torturando um homem algemado no meio da rua [em Minas Gerais], julgando o “condenado” a céu aberto. Não tão distante dali o apelo punitivista paulistano segue a todo o vapor. A incitação à violência estava posta em porretes com mensagens de ódio à venda em um posto de combustível, em Miritituba, no sudoeste do Pará.

Violência e massacre aos indígenas

Os ataques não cessam e continuamos vigilantes ao tema. Houve uma comoção nacional diante ao desastre aéreo em Vinhedo, mas, e o massacre dos Guarani Kaiowá? Um silêncio absoluto ecoa nos grandes meios de comunicação. Em meio à fome, o medo e à miséria, os Guarani Kaiowá de Douradina continuam à espera de uma solução para TI, que está com o processo de demarcação paralisado desde 2011. Os indígenas narraram como é viver em meio aos ataques dos fazendeiros na retomada ao mesmo tempo em que o Ministério da Justiça anunciou novas medidas de proteção. 

Mãos sujas

No Agosto indígena, mês em que se celebra o Dia Internacional dos Povos Indígenas, a discussão sobre o papel das universidades no genocídio indígena voltou à tona, assim como o genocídio dos povos isolados. O cacique Raoni Metyktire e outras lideranças indígenas advertiram que se “o governo der a canetada para prosseguir [com a Ferrogrão], desobedecendo o STF, Lula chegará à COP30 de Belém com as mãos sujas de sangue e de soja”. A despedida da indígena que “adiou o fim do mundo” ao impedir a construção de Belo Monte também marcou esse semana.

Elo necropolítico

Bruno Huberman, por meio da teoria do colonialismo de povoamento, apontou similaridades nos processos vividos no Brasil e na Palestina. “Tem várias formas que une os brasileiros e palestinos, os povos colonizados no Brasil. Uma forma, óbvio, é o genocídio. Povos negros e indígenas são alvos de genocídio há séculos no Brasil e o genocídio contra os palestinos denota de como a morte sistêmica, o assassinato sistêmico necropolítico é uma característica desses processos coloniais”, pontua.

Extermínio palestino

Os horrores da guerra em Gaza estão cada vez mais insanos. Entre as muitas cenas dos últimos dias, a do pai que acabara registrar o nascimento dos seus filhos gêmeos e ao voltar descobre que eles e sua esposa estão mortos, nos coloca de joelho diante à dor do mundo. Nada tem conseguido frear o desejo de extermínio de Israel, que atacou mais uma vez duas escolas que abrigavam mulheres e crianças refugiadas. A luta pela sobrevivência é diária.

Oriente Médio sob tensão

O Irã continua prometendo uma retaliação após o ataque de Israel em Teerã. Um possível cessar-fogo parece uma miragem e os Estados Unidos já estão apostos para apoiar os israelenses. Será verdadeiro o desejo de paz? Esperançoso, Paolo Naso, sociólogo italiano, enxerga uma "luz na noite escura" e vislumbra a possibilidade de um diálogo. Riccardo Cristiano lembrou o aniversário da tentativa de assassinato de Salman Rushdie, que parece ter relação com a situação atual.

Ofensiva ucraniana

Ainda não sabemos ao certo os objetivos da invasão ucraniana à região de Kursk, na Rússia. Seriam estes sinais que o conflito pode estar perto do fim e que o propósito é “aumentar o capital disponível na mesa de negociações”? A ver, porque a Europa continua a aumentar os gastos militares e tenta expandir o conflito com o Kremlin. Raúl Zibechi tem apostado em uma nova ordem multipolar, ancorada pelos países do Sul Global.

Educação para poucos

Os dados do Ideb, que mede a qualidade da educação básica, foram publicados essa semana e mostraram que o Rio Grande do Sul mantém o atraso ao não investir em educação. O estado ocupa a 16ª posição na classificação geral e conseguiu ficar abaixo do objetivo em todas as etapas de ensino. Das metas propostas, o Brasil conseguiu atingir apenas uma meta nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Os problemas com a educação, a infância e adolescência se refletem nos anos seguintes, na juventude: 229 mil jovens vivem no Rio Grande do Sul sem estudar ou trabalhar, o que equivale a 10% das pessoas entre 15 e 29 anos. 

Juventude

Dia 12 de agosto marcou o Dia Internacional da Juventude, que parece sem muitas perspectivas diante à crise climática. Como falamos acima, o Brasil continua exterminando o futuro com o massacre da juventude, em especial negra e periférica. Nos EUA, o que incomoda os jovens da Geração Z é o custo de vida, já que eles acreditam que não recebem salários compatíveis com estilo de vida que desejam levar.

Giro latino-americano

Nosso giro pela América Latina esbarra, de novo, na Venezuela e seu labirinto eleitoral. Mas também na fome dos argentinos, que leva um milhão de crianças a dormir sem jantar, um ano após a primeira vitória de Javier Milei. Na Nicarágua a repressão de Ortega continua perseguindo a igreja católica e agora exilou mais um padre, o dominicano espanhol Rafael Aragon.

Para Muniz Sodré, “nas autocracias sul-americanas é a bizarrice enganosa, manipulada pelo marketing político. Na Argentina, o presidente aconselha-se com um cachorro morto. Na Venezuela, um protoditador diz falar com um passarinho, suposta reencarnação do predecessor”

Negacionismo à vista

O Conselho Federal de Medicina elegeu o médico Francisco Cardoso como novo conselheiro dos médicos. Seria cômico se isto não fosse o prelúdio de que assistiremos a mais uma fase do negacionismo científico. Sabatinado no Congresso durante a CPI da Covid-19, o médico defendeu o uso da cloroquina, mesmo comprovado que o medicamento não tem eficácia contra a doença. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) enviou a “Moção de Censura ao Conselho Federal de Medicina por sua postura anticientífica referente a vacinas, ao aborto e sobre o uso terapêutico da maconha e seus derivados”.

Cerco à democracia

A investida da extrema direita contra Alexandre de Moraes é mais um capítulo do ataque à democracia e às instituições. O Intercept Brasil publicou uma matéria elucidativa sobre o tema. O jornalista Luis Nassif fez uma análise do assunto e foi enfático: “o tratamento dado – tentando criminalizar uma conduta de Alexandre reconhecida por quase todos os juristas como constitucional – foi a demonstração clara da conspiração em marcha”. Tarso Genro lembrou essa semana que este mesmo jornal emprestava seus veículos para transportar os presos e torturados pela ditadura civil, empresarial e militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Santiago Alba Rico explicou como a esquerda está falhando ao permitir a ascensão neofascista: “A hipocrisia ocidental fabrica terroristas; a hipocrisia de esquerda fabrica imperialistas e populistas de direita. Ambas são em parte responsáveis pela tendência autoritária e neofascista que se impõe em nível global”.

 

Direito de morrer

Eutanásia, cuidados paliativos, suicídio assistido e o fim da vida foram assuntos que marcaram a semana. O pequeno, mas importante, aceno do Vaticano sobre as questões foi publicado pela Pontifícia Academia para a Vida. O Reino Unido vem discutindo a abertura para o direito de morrer e os médicos italianos se posicionaram sobre o sofrimento no fim da vida.

Por falar em Bioética

Nancy Jecker pontuou que a “bioética como campo deve lançar luz sobre os efeitos destrutivos da guerra na saúde humana e na infraestrutura necessária para apoiá-la”. Segundo coloca, “o conflito armado não só tira a vida de pessoas inocentes, como também deixa a miséria em seu rastro. As populações civis em zonas de guerra enfrentam taxas alarmantes de estresse pós-traumático e outros transtornos de saúde mental, muitas vezes ultrapassando gerações. Elas são mais propensas à fome e à desnutrição, doenças e deficiências, deslocamento forçado de lares e comunidades, e falta de acesso a bens básicos, como assistência médica, educação, renda e oportunidades”.

Déjà-vu pandêmico

A OMS declarou, mais uma vez, uma emergência de saúde internacional devido à varíola dos macacos. A decisão se deu por conta do aumento sem precedentes de casos da nova variante, mpox, em diferentes países africanos, em especial na República Democrática do Congo. Recém-saídos de uma pandemia, parece que vivemos um déjà-vu com a possível falta de vacinas.

Colapso climático

As engrenagens mundiais assentadas na lógica do lucro nos levaram ao colapso climático. Ardemos no julho mais quente da história: o mês teve os dois dias mais quentes em 125 mil anos. Todo esse calor matou quase 50 mil pessoas na Europa. As queimadas no Pantanal arrefeceram, mas o fogo queimou até o santuário das araras-azuis e o bioma continua seriamente danificado, podendo ser extinto. As consequências das queimadas possibilitaram que hoje, toda a América do Sul, pudesse respirar os lucros de poucos agricultores: da Colômbia ao Uruguai, uma mega bolha de fumaça, decorrente das queimadas no Pantanal e na Amazônia, se espalha causando danos. Uma fumaça que equivale a cinco anos de poluição em São Paulo. O tempo de salvarmos o planeta está se esgotando, a temperatura na Grande Barreiras de Corais é a mais alta em 400 anos e a meta de salvar a biodiversidade está cada vez mais distante.

 

Em tempo

A revista Science divulgou que metade da população mundial, ou seja, 4,4 bilhões de pessoas não tem acesso à água potável

Memória

Dia 12 de agosto marcou os quatro anos da despedida de Pedro Casaldáliga, um bispo contra todas as cercas. O teólogo espanhol José María Vigil lembrou a data.  

Artigo inédito de Hans Jonas

Publicamos esta semana um artigo inédito no português de Hans Jonas (1903-1993). A tradução foi elaborada e gentilmente cedida ao IHU pelo professor Roberto Franzini Tibaldeo e por Bruno Fonseca Ortega. O texto foi publicado pela primeira vez em língua inglesa em 1977 nos anais do Colóquio internacional sobre o gnosticismo realizado em Estocolmo em 1973. Naquela época Jonas era um pesquisador influente na área e por isso foi convidado para encerrar o congresso com esta palestra, na qual o autor analisa décadas de engajamento existencial e filosófico, examinando-as à luz de um “olhar retrospectivo” lúcido e irônico.

Uma boa semana a todos e todas!