15 Agosto 2024
A bioética como campo deve lançar luz sobre os efeitos destrutivos da guerra na saúde humana e na infraestrutura necessária para apoiá-la.
O comentário é de Nancy Jecker, professora de Bioética e Humanidades na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington; Caesar Atuire, filósofo e especialista em Ética da Saúde no Departamento de Medicina Nuffield da Universidade de Oxford; Vardit Ravitsky, presidente do The Hastings Center; Kevin Behrens, diretor do The Steve Biko Centre for Bioethics da Universidade de Witwatersrand, África do Sul; e Mohammed Ghaly, professor de Islamismo e Ética Biomédica no Centro de Pesquisa para Legislação e Ética Islâmica da Universidade Hamad Bin Khalifa, Qatar.
O artigo foi publicado em Hastings Bioethics Forum, 08-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Durante a maior parte da história humana, a guerra tem sido uma das principais causas de ferimentos e mortes em todo o mundo, causando danos muito além do campo de batalha. As guerras de hoje matam muito mais civis do que soldados – o secretário-geral das Nações Unidas estima, de forma conservadora, que as mortes de civis sejam o quádruplo do número de mortes diretas relacionadas à batalha.
O conflito armado não só tira a vida de pessoas inocentes, como também deixa a miséria em seu rastro. As populações civis em zonas de guerra enfrentam taxas alarmantes de estresse pós-traumático e outros transtornos de saúde mental, muitas vezes ultrapassando gerações. Elas são mais propensas à fome e à desnutrição, doenças e deficiências, deslocamento forçado de lares e comunidades, e falta de acesso a bens básicos, como assistência médica, educação, renda e oportunidades. Esses determinantes sociais impactam na saúde das populações mais do que o acesso a avanços biomédicos, respondendo por 30% a 55% dos índices de saúde.
A bioética deve abordar a guerra não apenas como uma tragédia individual, mas também como um desastre para a saúde pública. Os pioneiros da bioética reconheceram isso. Eles pediram uma colaboração mais próxima entre os estudiosos da bioética e da saúde pública, apesar do desafio e do choque de valores – a bioética enfatizou a autonomia do paciente e os direitos individuais, e a saúde pública destacou o bem comum.
Hoje, a saúde pública continua pressionando a bioética por muitas razões: maior conhecimento do impacto dos determinantes sociais da saúde; maior conscientização de como a injustiça estrutural impede a saúde e impulsiona a violência e os conflitos armados; e melhor apreciação da necessidade de bioeticistas cruzarem fronteiras para lidar com questões globais de bioética, como doenças infecciosas emergentes e reemergentes, mudanças climáticas, saúde de refugiados e migrantes, acesso global a medicamentos essenciais e IA generativa.
A bioética como campo está mal equipada para enfrentar esses desafios, porque suas ferramentas primárias foram projetadas com um propósito diferente. Os princípios clássicos da ética biomédica – respeito pela autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – ajudaram as sociedades a corrigir o tratamento antiético de sujeitos de pesquisa individuais e ajudaram médicos e pacientes a tomar decisões difíceis de vida ou morte.
No entanto, falar da guerra como uma crise de saúde pública requer princípios éticos direcionados à saúde pública e focados no bem comum. Nossa abordagem à guerra e à saúde pública estabelece seis princípios bioéticos que visam fazer isso: justiça em saúde, responsabilização, vidas dignas, sustentabilidade da saúde pública, não maleficência e maximização da saúde pública. Esses princípios complementam os quatro clássicos, bem como os princípios de saúde pública propostos anteriormente, reforçando a capacidade do campo de abordar a guerra como uma crise para populações civis.
Abaixo, relatamos cada princípio, mostrando sua base ética. Sugerimos como implementar os princípios na prática e esperamos que permitam escolhas mais sábias que levem a vidas humanas mais saudáveis e prósperas.
Justiça em saúde: exigência da distribuição justa de benefícios e encargos relacionados à saúde e ênfase em uma responsabilidade especial para com as populações mais vulneráveis aos danos da guerra à saúde, como mulheres e crianças. A justiça em saúde ganha apoio do direito à saúde, que a ONU reconheceu como um direito fundamental de todos os seres humanos.
Responsabilização: culpabilização das partes em conflito pelos efeitos da guerra sobre as populações civis. Ela se estende a grupos internacionais como a ONU, o Tribunal Penal Internacional e o Banco Mundial. A base da responsabilização é a dignidade e o valor das pessoas, o que torna táticas como estupro, tortura ou uso de populações civis como escudos indefensáveis.
Vidas dignas: exigência à tomada de medidas razoáveis para salvaguardar as capacidades humanas centrais das pessoas, como sua capacidade de ser saudável; ter integridade corporal; exercitar os sentidos, a imaginação e o pensamento; planejar suas vidas; afiliar-se a outros; relacionar-se com a natureza; brincar e se divertir; e regular seu ambiente imediato.
Sustentabilidade da saúde pública: envolve os requisitos éticos dos idealizadores militares para manterem serviços de saúde pública para populações de zonas de guerra. Sua justificativa está relacionada ao fato de que ser saudável impacta diretamente no acesso das pessoas a uma gama normal de oportunidades na vida, como sua capacidade de fazer e executar um plano de vida, acessar educação e ganhar a vida.
Não maleficência e maximização da saúde pública: exigência da criação do melhor equilíbrio possível entre benefícios e danos à saúde pública. Aplicar esses princípios requer comparar os benefícios e danos à saúde da guerra com suas alternativas, como sanções econômicas, embargos de armas, diplomacia, resistência não violenta, incentivos positivos ou assistência militar. Todos os seis princípios de saúde pública fazem um balanço dos efeitos de curto e longo prazo na saúde. Combinados, eles reformulam a ética da guerra, mudando os cálculos sobre se travar ou continuar uma guerra é eticamente defensável.
Colocar esses princípios em prática exige que os bioeticistas se envolvam mais diretamente com a guerra em suas pesquisas, ensino e serviço. A pesquisa em bioética deve examinar não apenas os desafios éticos associados à resposta à crise, mas também os fatores precipitantes da guerra, como pobreza, insegurança alimentar, deslocamento e falta de acesso equitativo à educação, assistência médica e empregos.
As pré-condições que tornam a guerra mais provável dificilmente são inevitáveis. Ao abordar as condições sociais e econômicas que desencadeiam a guerra, os bioeticistas podem ser uma “ponte para a paz”.
O ensino da bioética deve aumentar a conscientização sobre os efeitos da guerra na saúde pública entre os estagiários e o público em geral. Por exemplo, a educação pode assumir a forma de palestras públicas, do desenvolvimento de cursos, da compilação de casos e da produção de outros materiais de treinamento. O currículo deve incluir uma variedade de abordagens éticas, por exemplo, aquelas baseadas em direitos humanos, capacidades humanas, ética da virtude, ética comunitária, ética política confucionista e ética ubuntu, para citar algumas.
Convocar a sabedoria de muitas tradições não só se presta a uma análise ética mais rica e sofisticada, como também ajuda a equilibrar o foco pesado do campo nas liberdades civis e no respeito pela autonomia individual, o que reflete suas raízes ocidentais, especialmente americanas. Como a guerra é uma preocupação global da bioética, a análise ética deve refletir os valores e a linguagem de muitas sociedades.
O serviço da bioética pode incluir a implantação de bioeticistas como facilitadores de ética para servir como defensores das populações de zonas de guerra. Até o momento, a facilitação da ética tem sido aplicada principalmente em ambientes clínicos e de pesquisa, mas é altamente relevante fora desses ambientes onde a saúde das populações está em jogo. As principais competências para a facilitação da ética incluem “esclarecer as preocupações e questões éticas que precisam ser abordadas, reunir informações relevantes, esclarecer conceitos relevantes e questões normativas relacionadas, ajudar as partes envolvidas a identificar uma gama de opções eticamente aceitáveis e fornecer uma justificativa ética para cada opção”. Essas competências podem ajudar os planejadores de guerra e formuladores de políticas, bem como cidadãos comuns, concentrando a atenção nos efeitos da guerra na saúde humana.
Para ilustrar, consideremos o que ocorreu durante o conflito civil em El Salvador, quando tréguas de um dia foram negociadas a cada ano, de 1985 a 1991, entre o governo e as forças de guerrilha. Isso tornou possível imunizar as populações de zonas de guerra de ambos os lados contra poliomielite, difteria, coqueluche, tétano e sarampo. As tréguas só ocorreram após “um processo meticuloso que envolveu a OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde], a UNICEF, a Cruz Vermelha e a Igreja Católica”.
Os bioeticistas podem ajudar em negociações como essas, atuando como defensores da saúde de populações civis de zonas de guerra. Imitando a Associação Médica Mundial, cujos membros expressam o compromisso de dar assistência médica imparcial a todos, os bioeticistas devem se comprometer a defender a saúde de populações civis de ambos os lados de um conflito armado.
Guerras estão sendo travadas atualmente ao redor do globo, incluindo 45 conflitos armados no Oriente Médio e Norte da África, mais de 35 conflitos na África, 21 na Ásia, 7 na Europa e 6 na América Latina. A ONU documentou mais de 33.000 mortes de civis em conflitos armados em 2023, um aumento de 72% em relação ao ano anterior, marcando uma realidade “ressonantemente sombria”. A ONU pediu um foco global não apenas no direito internacional, mas nos danos que os civis sofrem durante conflitos armados. A bioética como campo deve fazer sua parte, lançando luz sobre os efeitos destrutivos da guerra na saúde humana e na infraestrutura necessária para apoiá-la.
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Bioética deve abordar a guerra como uma crise de saúde pública - Instituto Humanitas Unisinos - IHU