16 Agosto 2024
Um sentimento continua a prevalecer entre parte da população que votou em Milei: não há alternativa ao abismo reacionário neoliberal, apoiado por uma concepção de sucesso do tipo darwinista.
O artigo é de María García Yeregui, jornalista e escritora espanhola, publicado em El Salto, 14-08-2024.
Ontem completou um ano desde a primeira vitória eleitoral de Javier Milei. O que foi uma surpresa para boa parte do país, dado o calibre do absurdo histriônico que acompanhou o personagem e sua fala. Um cara que, no entanto, prosperou com apoio. Fê-lo num contexto tanto de desgaste constante do governo de coligação peronista, em contínua crise política, como de aprofundamento progressivo de uma situação de grave crise inflacionária, que assediava o país há mais de cinco anos. Uma crise inflacionária que nos últimos dois anos teve reviravoltas periódicas cada vez mais preocupantes, perturbadoras e empobrecedoras.
Naquela conjuntura, em 13 de agosto, no inverno, Milei e seu partido, La Libertad Avanza, acabaram sendo a opção mais votada nas PASO: eleições primárias abertas, simultâneas e obrigatórias que aconteceram antes das eleições presidenciais. Foi então que o impacto subestimado do bizarro Javier Gerardo mostrou a musculatura que acumulou nesses últimos dois anos, sendo o candidato mais votado com 30% dos votos.
Aquela vitória da extrema-direita neoconservadora foi para mim um medo fantasmagórico e incrédulo que se estava a tornar realidade. Um receio que está presente desde que entrou nas câmaras parlamentares com as eleições legislativas de novembro de 2021, estreando-se com 17% dos votos. Mas por que um medo fantasmagórico e incrédulo? Porque já existia há muito tempo como uma presença à espreita, sem poder avaliar sua corporeidade.
Era um medo real, mas sem dimensões apreciáveis - real há anos devido a diversas causas importantes -, vale destacar a força do antiperonismo, que se intensificou e se fortaleceu durante o exercício do poder governamental e midiático nos anos de Mauricio Macri (2015-2019), reforçado pelo antikirchnerismo que foi alimentado durante os anos de Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), atingindo sua expressão máxima com a tentativa de assassinato do ex-presidente em 2022, quando atuava como vice-presidente do governo presidido por Alberto Fernández. Foi uma coligação de antiperonismo, devido à longa crise do sistema partidário tradicional, que a coligação Frente de Todos venceu em plena crise inflacionária, que já durava vários anos, mas que sofreu um salto quantitativo e qualitativa durante os anos em que o governo de direita da coligação Macri Juntos pela Mudança assinou a maior dívida da história do Fundo Monetário Internacional, sem reduzir nem um pouco a inflação. A do final de 2019 foi uma vitória apertada que foi resolvida no primeiro turno com 48,2% para Alberto Fernández e 40,2% para Mauricio Macri.
Uma segunda base para o medo dos discursos de Milei a partir de suas atuações na televisão foi a penetração neoliberal do senso comum. Um neoliberalismo normalizado e naturalizado, até se diluir na consciência da sua presença, constituindo subjetividades. A de uma realidade progressivamente mercantilizada e individualizada, que articulava diferentes cotidianos em diversos setores e classes sociais antagônicas. Uma realidade que o estudo demográfico do instituto de pesquisas Sentimientos Públicos sintetiza no seu estudo “Rastreando valores: uma justiça neossocial?” O resultado permeia o surgimento de mudanças profundas ao longo de décadas que se cristalizaram fortemente.
E, claro, o medo influenciou a forma como a pandemia impactou e se desenvolveu em todas as nossas sociedades. Uma crise em que a direita conseguiu dar vazão às táticas e estratégias na sua nova etapa de articulação nacional e global, num cenário ironicamente imbatível. Táticas e estratégias que vinham trabalhando desde a crise financeira de 2008 para reverter o que chamaram de “a capitalização realizada pela esquerda” da crise financeira que eclodiu após as mudanças na acumulação de capital implementadas a partir dos anos 70.
Centrando-nos na Argentina, e tendo em conta o contexto material de boa parte do país, o cenário permitiu que o risco da viragem reacionária, numa versão mais neo e disruptiva, pairasse como uma sombra sobre os imaginários sociais. Especificamente, com base nos escândalos e na consequente crise de legitimidade política que ocorreram no início daquele segundo ano de 2021, gerando forte indignação. Um impacto que não foi menor porque esteve ligado aos impactos anteriores, recebidos de forma agredida, pelo que foi sofrido antes e, em particular, durante a Covid-19, num país com deficientes recursos para a contenção estatal.
Refiro-me, sobretudo, ao escândalo em que se envolveu o então presidente, Alberto Fernández, quando se descobriu que Boris Johnson teve o seu momento: ter desfrutado de festas de aniversário em plena plenitude e com total liberdade na presidência residência de Olivos enquanto seu país enfrentava uma das quarentenas mais longas do mundo. Foi o mesmo Alberto Fernández quem ergueu a bandeira do feminismo acima das suas possibilidades óbvias, com uma personalização que mesmo então gerava um desconforto e uma rejeição esmagadores em qualquer ativista feminista de base.
Independentemente, claro, do que foi alcançado pela Ministra da Mulher, Gênero e Diversidade (até outubro de 2022) e por todas as feministas da coligação política que apoiou o governo juntamente com outras forças na Câmara quando, no âmbito das políticas de género, juntamente com o movimento, conseguiu aprovar a histórica Lei do Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Hoje, a autoproclamada “maior feminista de todas” – beirando o ridículo personalista – é acusada, entre outras coisas, de violência de gênero contra a sua então esposa. Foi na última quarta-feira que veio à tona a abertura do caso, e quase paralelamente à macabra notícia da suposta intenção de um senador – entre os sete que tem La Libertad Avanza – de ordenar, por uma quantia em dinheiro, o assassinato de sua esposa. Uma notícia ofuscada pela publicação de material gráfico com golpes no corpo de Fabiola Yáñez e conversas de WhatsApp entre ela e seu então marido, quando ele ainda era o presidente Alberto Fernández.
Este é um novo escândalo que aprofunda uma das sensações generalizadas que, ao que parece, pairam sobre a explicação de como as camadas populares e médias da sociedade estão a suportar o ataque da profunda recessão induzida pelo plano anti-inflacionário do governo de coligação mileísta. Como disse o sociólogo Pablo Semán numa entrevista aqui, em El Salto: “A popularidade de Milei é mantida pelo horror causado pela oposição”.
Essa é a sensação difusa que continua a prevalecer sobre a parte da população que votou em Milei por raiva, punição, tédio ou credulidade acrítica: que não há alternativa ao abismo reacionário neoliberal, apoiado por uma concepção de sucesso do tipo darwinista, cujo centro do "giro" é uma encruzilhada que inclui, como um de seus componentes, o ódio e a raiva contra vários bodes expiatórios.
Bodes expiatórios principalmente ligados à política. Por um lado, a política que foi insultada face aos assuntos privados – o apolitismo pós-anos 80 – e que, por outro lado, foi permanentemente inflada como uma vontade do que era possível e eficaz no exercício do poder; entretanto, o trabalho militante realizado a partir de baixo – a partir da memória dos anos 60 e 70, mais a experiência de 2001 como saída comunitária e de esquerda – exerceu-se sobre uma crescente anomia social e laboral, que vem da ordem social e não da temida desordem, enfrentou uma estrutura já transformada pelo pós-fordismo num país periférico do continente americano. Uma estrutura transformada que, no entanto, reforçou a imobilidade da estrutura oligárquica da propriedade da terra e da fraude financeira: entre a financeirização e a primarização da economia do país. Mudanças estruturais que afetaram a população subalterna e impediram que organizações político-sociais e sindicais alternativas pudessem dar respostas que fossem além do apoio, essencial mas de assistência nos territórios, a setores cada vez mais afastados da legalidade, do trabalho e da comunidade – tanto geral cidadão e vínculo, família e comunidade.
Diante dessas contradições, o fáscio remasterizado e o mercado divinizado ficaram expostos, naturalizados a partir de um eu individualizado, de um inconsciente competitivo atomizado, capilar e incessante, que reproduzimos como escravos de um narcisismo frustrado passado pela rápida distorção cognitiva das redes sociais e o smartphone. Em suma, com a liderança do ‘Coringa do River Plate’ apresentou-se como uma opção para o exercício do poder. Uma opção que surgiu perversamente como a última esperança a que se agarrar, diante de um suposto “nada”. Um 'nada' que não sabemos bem como é a única coisa que permaneceu como percepção pragmática dentro de imaginários que negam a possibilidade de pensar a própria alienação, da qual se consideram livres e prontos para serem despertados pelo "leão que não veio para criar cordeiros, mas para despertar leões".
A verdade é que quando ouvi Milei pela primeira vez em um programa noturno de televisão em 2017, eu estava voltando de uma escola popular em La Boca. Tinha visto recentemente o filme paraguaio Siete Cajas. E naquela manhã ele tomou café da manhã em um café que não conhecia. Um café de bairro a poucos quarteirões da empobrecida estação Constitución. O local ficava na esquina daquele cruzamento de avenidas onde o escritor Rodolfo Walsh morreu em decorrência da tentativa de sequestro da quadrilha militar, enviada pela espionagem da ditadura baseada na tortura, um dia depois de ter escrito sua Carta às Juntas Militares, um ano após o golpe de estado de 1976.
Naquela janela de madeira, enquanto eu tomava meu café com luas crescentes e olhava para a fachada de uma escola pública onde estava escrito a exigência 'terra, teto e trabalho', uma pequena manifestação avançava pela avenida. Não fui o único que notou a marcha. Assim que os homens do café ouviram os poucos tambores que o acompanhavam, perceberam que estavam vendo "as almas negras": veio à tona aquele nome brutal e expressão insuportável que logo você conhecerá em Buenos Aires e nos seus bairros, ao mesmo tempo que você se familiariza com o contrário, aquele jeito lindo e fraterno de ser chamado de 'negro'. Diante daquela infame verbalização em voz alta, não houve tempo para reagir, a temporada estava aberta: o racismo e o classismo continuaram a emergir, com ódio e sem restrições, retroalimentando-se num ciclo ganancioso para liberar a frustração na forma de desprezo. Fê-lo aos jorros na sucessão de comentários dos proprietários que eram os idosos empregados do estabelecimento e dos clientes daquele café, até à expressão de um desejo: que deixassem de existir.
Depois de passar por aquele dia que terminou com uma Milei veemente na televisão, não pude deixar de sentir um arrepio ao ouvir o autoproclamado doutor em economia com seu absurdo, sua estridência e suas premissas discursivas nocivas. Se a crise continuasse a se aprofundar nos próximos anos, aquele cara e seu discurso estariam em grande perigo. Obviamente, apesar da agitação que surgiu, nunca se poderia imaginar que esse cara estava em tanto perigo.
Foi algo fundamentalmente impensável no país onde a direita praticamente não ganhou as eleições, a das Mães da Praça de Maio e das organizações de Direitos Humanos, da Comissão da Verdade para os detidos-desaparecidos da última ditadura civil-militar, a da o Julgamento das Juntas- quando vigoravam as Leis da Impunidade - pelo roubo de crianças no circuito de desaparecimentos, constituído pelos centros de detenção clandestinos do sistema de desaparecimentos forçados. O país dos julgamentos contra a humanidade contra repressores, a partir de 2003 e a decisão política de Néstor Kirchner de aprovar a lei que declarou a nulidade das leis da Devida Obediência e do Punto Final, posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que chegou a julgar a colaboração empresarial de Ford como parte das políticas nascidas da luta e organização pela e pela “memória, verdade e justiça”.
Sim, também no país da resposta popular à crise de 2001, do movimento piquetero que organizou os desempregados que gerou a solução neoliberal para a hiperinflação anterior, o de 1989. O enorme país que acolheu o Encontro Nacional de Mulheres e um movimento feminista organizado em sua luta pelo direito ao aborto que, após o assassinato de Lucía Pérez, massificou o movimento de mulheres no repúdio aos feminicídios a partir daquela Quarta-Feira Negra de 2016, em que exclamamos 'basta' da mão do a coordenadora 'Ni una menos' que, junto com todo o movimento feminista, convocou a primeira greve feminista no país. Alguns dias de mobilização e greve que terminariam com a coordenação internacional de greves feministas em 8M durante os três anos seguintes. Em suma, no país onde dez anos antes da PASO de 2023, pude descobrir, entre outras militâncias, a vida dos Carpa Villera no Obelisco central da Avenida 9 de Julho durante mais de sete semanas.
Porém, conhecendo muitos rostos, o medo navegou implacavelmente em torno do personagem bizarro e de sua fala. Fê-lo com zelo após a vitória de Bolsonaro no Brasil em 2018, e num crescendo como vivíamos o nosso país durante a pandemia, enquanto lá a situação continuava a piorar nos bairros e cidades, com uma situação econômico-social quebrada durante um confinamento. Sem as nascentes e as medidas de contenção que tivemos em Espanha. Um contexto de crise grave e insuportável para grandes setores da população que já tinham visto como o tráfico de drogas penetrou nos seus ambientes durante os últimos dez anos. Enquanto isso, como dissemos, a tradicional “direita gorila” – antipopular e antiperonista – estava em ascensão, semeando o que mais tarde seria colhido pelo inesperado e psicótico “escolhido” – que acredita, é claro, ter a missão de “plantar as ideias de liberdade” mesmo numa Davos socialista: “Venho plantar as ideias de liberdade num fórum socialista contaminado pela Agenda 2030”.
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Reflexões um ano após a primeira vitória eleitoral de Javier Milei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU