28 Junho 2024
“Viemos para tudo.” Uma frase curta e contundente que se repete desde a noite de 19 de novembro, quando A Liberdade Avança obteve 55,6% dos votos e se tornou Governo. Mas, o que é esse “tudo” para o qual “vieram”?
A batalha econômica, por um lado, que envolve um reordenamento da economia baseada em um ajuste brutal e para cuja análise – em termos de “vencer” essa batalha – é necessário tempo. E por outro, a batalha cultural. Não é mais possível saber do que se trata esta última batalha mileísta. Pistas: o controle (mas não a eliminação) de direitos, o messiânico como bem de troca, o libidinal e o poder do leão, a “nova autoridade” e uma reelaboração dos feminismos e o feminino.
Javier Milei mantém o apoio popular que lhe deu o empurrão para chegar à Presidência. Sua base mais sólida continua sendo os 30% que votaram nele nas PASO, no ano passado. Contudo, há também “os moderados” de Milei, ou seja, aquelas pessoas que, em última análise, confiaram o seu voto nele e que hoje estão divididas entre a esperança e as dúvidas.
Esta foi uma das conclusões de um monitoramento realizado pelos pesquisadores Esther Solano, Pablo Romá e Thais Pavez. O resultado foi publicado no início deste mês pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung.
Esther Solano, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madrid e professora da Universidade Federal de São Paulo, Brasil, estudiosa da direita, é uma das pesquisadoras que estudou os moderados. Nesta entrevista, situa os moderados no contexto da batalha cultural que o mileísmo adotou como o segundo eixo de seu plano de governo. “Que Milei fracasse do ponto de vista econômico, não significa um fracasso do ponto de vista ideológico”, alerta Solano.
A entrevista é de Victoria De Masi, publicada por El Diario, 22-06-2024. A tradução é do Cepat.
Por que você afirma que se o programa econômico de Milei não funcionar, o mileísmo permanecerá?
Não é típico apenas de (Javier) Milei. Vemos que esses movimentos, e aí reside a sua força, disputam as formas de entender a realidade. Disputam imaginários, disputam valores, disputam sentido. Se você os reduz a uma mera expressão eleitoral, está apequenando-os. Não são apenas isso, são muito mais do que isso.
Quando se juntam, buscam uma refundação. No último encontro que realizaram na Hungria, o lema foi “Salvar o Ocidente”. Esta é uma reinterpretação da realidade. Então, o que acontece? Mesmo que percam eleitoralmente, não significa que vão parar em sua disputa simbólica e do imaginário. Isto pode ser observado de forma muito clara.
Em outros países que estão mais avançados, vemos claramente dois movimentos. Não é mais o líder, é o campo. Este campo vai ganhando autonomia em relação ao líder porque já existe uma sedimentação de valores. No Brasil, já falamos de bolsonarismo sem (Jair) Bolsonaro. O líder não é mais necessário porque já há uma consolidação de valores. E o eleitor moderado é essencial. O radical é quem dinamiza o campo, mas é o moderado que o naturaliza e sedimenta.
E o segundo?
Uma vez sedimentado todo esse campo, o ecossistema se amplia e há muitos personagens que vão aderindo a esse campo. Então, por exemplo, e que acontece com (Donald) Trump ou Bolsonaro que estão operando na França? Os líderes que começaram são importantes sim, mas tem muito mais gente que já vai assumindo lideranças. Então, se preferir pensar assim, o mileísmo começou com Milei, mas não vai acabar com Milei.
Qual é o papel do componente messiânico neste movimento? Esta questão de se apresentar como “o salvador” e recorrer à epopeia bíblica de Moisés.
Várias coisas. Milei precisa oferecer alguma entrega concreta. A Lei de Bases, por exemplo, para estabilizar um pouco o cenário econômico. Se consegue isso e já conseguiu uma elaboração discursiva e simbólica, as duas coisas mantêm o vínculo, o engajamento. Isto é o mais poderoso. Por quê? Porque o ser humano precisa de duas coisas que são muito básicas para mim. Precisa ser visto, mas visto a partir do lugar do reconhecimento pessoal: “Vejo você e entendo o seu poder”. E depois o pertencimento mútuo.
E o que Milei diz para você é isso: “diante daqueles que te usavam para se reeleger, diante dos parasitas ou daqueles que te vitimizavam, eu te vejo e, além disso, te proponho um chamado coletivo. Proponho que o seu sacrifício seja um sacrifício individual, porque você pode fazê-lo, eu te empodero”. É um chamado aos “homens de bem”. Preste atenção nesse conceito, é muito forte. Reúne a dimensão individual, a coletiva e a transcendência.
Você também diz que esses movimentos são muito libidinais. Por quê?
A esquerda também teve isso em determinado momento, a ideia de rebelião. E a rebelião te chama para uma coisa libidinal. Contudo, a esquerda se transformou em burocracia e nada mais antissexual do que o burocrata. Então, essas direitas reconectam com essa libido que está muito sufocada e, ao mesmo tempo, te conecta com o poder do leão.
É transgressor, mas tem um propósito, que é a inauguração de uma nova ordem. Aparece como alguém que não é político, mas que tem a coragem de entrar na lama da política. Como alguém que inicialmente também não é um superstar, mas que acaba envolvido em toda essa parafernália, e que tem essa coragem e essa energia que te conecta com esta libido. E o leão que rompe, mas para que realmente formemos algo muito maior.
O que há de libidinal na linguagem, no tom, da autoridade?
É uma autoridade diferente. Isso é muito importante porque, sim, é uma autoridade, mas... O que mais impacta nesses outsiders é que promovem e colocam no centro do espaço público valores diferentes daqueles da política tradicional. Então, como é a autoridade tradicional? É uma autoridade distante, desconexa, muito vertical, hierárquica: a autoridade casta, digamos.
O que acontece com Milei? Ele é o mito do homem comum que chega ao poder, não porque queira o poder, mas porque é um Robin Hood. É quem tem a coragem de lutar por você. É uma autoridade por você, não do partido, não da plataforma. É uma autoridade, mas é alguém do povo. É uma autoridade sem protocolo, sem intermediários: vai e começa a cantar. É autoridade, sim, mas de um lugar diferente. Mão dura a partir de outro lugar.
E o que acontece com os direitos? Refiro-me aos direitos adquiridos nos últimos anos e às políticas públicas que estavam dispostos a eliminar. A assistência social, por exemplo, em vez de ser eliminada, aumentou com A Liberdade Avança. É aniquilação de direitos ou é ter o controle dos direitos?
Exato. Aqui, também falo um pouco de modo geral. Foi um grande equívoco no campo da esquerda insistir em que vão acabar com tudo. Porque, de fato, os moderados que votaram em Milei não veem as coisas assim. O que observamos não é uma “aniquilação de direitos”, mas uma reorganização. Quanto ao financiamento das universidades públicas, A Liberdade Avança propõe auditorias. Muito sagaz.
No fundo, o Governo está dizendo para você: “Eu compreendo que você quer o direito à educação, a ter saúde. A única coisa que quero é que os fundos sejam controlados para que ofereçam algo melhor para você”. E quem vai ser contra isso [?]! Contra a desordem econômica, organização. Não é ausência de direitos, é controle.
No entanto, o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade foi, finalmente, desmantelado.
Já faz algum tempo que estamos fazendo pesquisas só com mulheres, pois o que vemos aí? Que as mulheres constituem um eleitorado favorável a uma visão um pouco mais humanizada da política e, como dizia antes, esses grupos são muito masculinos. Então, existe uma visão de que o programa feminino pode ser uma via de entrada.
Contudo, por outro lado, e é algo global, a extrema-direita está claramente disputando o público feminino de uma forma interessantíssima. Duas coisas. Em primeiro lugar, as mulheres, não digo todas, também começam a ser seduzidas por esse discurso de empoderamento individual. O que começa a ecoar é que o Estado não vai resolver os seus problemas, que serão outras instâncias ou outras formas. Assim, a única coisa que o Estado gostaria é do “trabalho das feministas”.
Nessa narrativa, o aparente auxílio era um Estado se beneficiando. Há uma reelaboração nesse sentido. Depois, o que estamos vendo, que para mim é como uma fronteira muito forte, é que esses grupos também disputam muito os sentidos do feminismo. Então, há alguns anos, esses outsiders que se diziam antifeministas, agora, não agem mais assim. Agora, disputam o feminismo. Então, agora, você ouve mulheres que votam neles dizendo “eu sou a verdadeira feminista”.
Como seria, nesse sentido, ser “uma verdadeira feminista”?
Em sua elaboração, primeiro, ser uma trabalhadora que paga impostos, que labuta, a meritocracia, o empreendedorismo, todo esse rolo. E em segundo lugar, pensam que o feminismo tradicional é “muito radical, muito agressivo, muito arrogante”. Esta série de políticas também não cria grandes revoltas entre grupos de mulheres, pois já existe uma reelaboração do feminino e do feminismo.
Por exemplo, elas costumam dizer “sou feminista, mas não sou uma feminista militante” ou “uma feminista de esquerda” ou “não sou da batalha feminista”, mas se percebem como feministas porque querem se sentir empoderadas, ganhar o mesmo salário que os homens, querem um reconhecimento da maternidade, da sua esfera privada, do lar, da família. E que não sejam vitimizadas. Oportunidades sim, que sejam vitimizadas, não.
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“O mileísmo começou com Milei, mas não vai acabar com Milei”. Entrevista com Esther Solano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU