30 Novembro 2019
Sob a designação de “democracia incompleta”, a pesquisadora Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo, analisa a atual situação de crise política, social e institucional no Brasil. Solano, organizadora do livro Brasil em colapso - que tem artigos de outros cientistas sobre a ascensão da nova direita brasileira, o papel das redes sociais na política, a militarização do governo, o papel das igrejas evangélicas e o desmonte neoliberal, entre outros -, explica, em uma entrevista, os detalhes dessas pesquisas.
Há anos, Solano pesquisa como e por que a extrema direita está aumentando no Brasil e, para isso, entrevista principalmente pessoas das periferias urbanas. “Em tempos de fake news, anti-intelectualismo e ataques inquisitoriais ao pensamento livre, esses textos analisam o atual período da realidade brasileira, com ênfase em uma leitura científica e crítica, entendendo que a ciência e a reflexão são os únicos caminhos para sair das trevas”, escreve esta cientista política na introdução do livro.
A entrevista é de Luna Gámez, publicada por RT, 29-11-2019. A tradução é do Cepat.
Na apresentação do seu livro, menciona que a ausência de democracia fica ainda mais evidente no momento em que nem sequer o respeito à vida está garantido. Em algum momento, a democracia chegou a ser implementada no Brasil?
Falamos do termo “democracia incompleta”. Enquanto a classe média branca vive em uma democracia bastante confortável, há tempos, algumas populações indígenas estão sendo ameaçadas ou há uma grande parte da população negra que nem sequer sabe se será capaz de voltar para casa viva. Portanto, para eles não existe o amparo de uma democracia.
O que existe no Brasil é uma democracia muito restrita a uma classe privilegiada. O racismo e a desigualdade muito fortes que existem no Brasil fazem com que para mim, hoje, a palavra democracia nesse contexto não tenha sentido. A classe média alta está percebendo uma crise institucional, mas para a população mais pobre as instituições nunca funcionaram. Somente agora a classe média branca vê que o colapso político e institucional a afeta, mas esse colapso já existia anteriormente.
Então, o que entrou em colapso foi um processo democrático que não se completou?
Sim, basicamente é isso. No Brasil, há uma democracia que nunca se completou e que, além disso, é elitista. O país está tomado pela lógica política da classe média alta. Afinal, os partidos políticos de esquerda também não consideravam essa democracia incompleta porque funcionava para eles. É agora que se deram conta que ou funciona para todo mundo ou não funciona para ninguém.
Quando começou a ser gestado esse colapso que você descreve no livro?
É uma questão que vem de longe. O Brasil se constituiu em uma estrutura muito racista e desigual. A herança colonial, classista e racista fez com que a democracia sempre tenha sido muito frágil no Brasil. Esse colapso começa com a falta de estrutura histórica, mas, a curto prazo, inicia quando o golpe ou impeachment foi gestado. Eu prefiro chamá-lo de golpe.
O golpe foi uma fratura social muito grande, que gerou uma desconfiança nas instituições e na política e desembocou no fenômeno Bolsonaro (atual presidente). Não obstante, repito que nada disso teria sido possível, se a estrutura social brasileira não tivesse tanta violência social e desigualdade.
Por que escolheu o termo colapso para definir essa situação?
Foi uma escolha conjunta com a editora. O objetivo é mostrar que estamos em um momento muito crítico para a democracia, mas não é apenas institucional, também abarca o país como um todo, por isso o título Brasil em colapso.
A agressividade de (Jair) Bolsonaro também está provocando um colapso de nossas formas de sociabilidade, politicamente é muito incomum ver uma figura pública tão agressiva. Muitas famílias, na época das eleições, se sentiram divididas, diziam que não podiam conversar em casa, e pessoas LGBTI tinham medo de sair na rua. Bolsonaro, portanto, trouxe consigo um drama institucional e uma ameaça à civilização ou à sociabilidade que pensávamos que já estava garantida. Quando o próprio Presidente pode dizer que prefere que um filho morto que homossexual, o padrão civilizacional parece estar desaparecendo em favor do colapso.
No trabalho de pesquisa incorporado neste livro, a comunicação através das redes sociais é colocada como uma das razões para a ascensão de Bolsonaro. Como esse efeito de comunicação em massa, às vezes manipulado, se materializa?
Os movimentos nas redes surgem de maneira muito organizada, inclusive com estruturas que são de uma certa elite comunicacional, jurídica, política e econômica, que se aproveitam de uma sociabilidade muito propensa à disseminação de insatisfação política.
Após muitos anos de governo, é natural que o Partido dos Trabalhadores (que esteve no governo durante 13 anos) entre em uma onda de desgaste, e a corrupção em momentos de crise econômica sempre promove fenômenos mais populistas. Esses elementos se combinam com uma ampliação muito recente do acesso às redes, entre 2011 e 2013. O Brasil é um país jovem no uso da Internet e possui um analfabetismo muito grande. Portanto, quando chega uma ferramenta poderosíssima com alcance massivo, nem todas as pessoas sabem utilizá-la bem.
Uma parte da população tem acesso às redes sociais, mas não aos meios de comunicação convencionais. Isto significa uma nova maneira de transmissão da informação política?
Em nossa pesquisa, isso apareceu de forma muito clara. Há uma grande parte da população que não acredita na grande imprensa e há pouquíssimas pessoas que acessam os jornais continuamente. Ao contrário, muitas pessoas percebem a internet como um lugar de maior horizontalidade e liberdade. A Internet supõe a porta de acesso a uma grande quantidade de informação, mas sem um trabalho profissional de informação e verificação, o que se traduz em situações perigosas.
Como o fenômeno Bolsonaro afetou a desconfiança nos grandes meios de comunicação?
Essa desconfiança já existia antes, mas no período das eleições de 2018 se intensificou. Bolsonaro chegou com uma proposta antissistêmica, semelhante à de Trump, e designou os meios de comunicação como seus grandes inimigos. Portanto, ele potencializa uma desconfiança que já existia, mas com muita violência e, ao mesmo tempo, fazendo uso de uma estratégia afetiva e emocional. Não apresenta nenhum tipo de argumento sobre esse descrédito à imprensa, mas para a pessoa que já tinha receios, a simples palavra de Bolsonaro já é suficiente.
Com a chegada dessa extrema direita, o discurso nostálgico de um suposto passado melhor ganha força até chegar a níveis de defender a ditadura. Como o protagonismo de certos valores conservadores é reincorporado?
Os bolsonaristas repetem muito a palavra ordem. Eles dizem que o que estamos vivendo agora seria uma desordem e um caos não apenas político e econômico, mas também ético, moral e religioso. Por isso, defendem o resgate de valores sociais como a família e a religião, com um misticismo de um passado romântico, onde existia muito mais segurança emocional e estrutural.
A segurança emocional cambaleou por causa da crise econômica?
Sim, é um elemento que percebemos de forma muito clara em nosso trabalho com pessoas desempregadas ou em situação vulnerável. Muitos votaram em Bolsonaro porque diziam que se sentiam humilhados, inúteis, como se suas vidas não fizessem muito sentido, porque trabalham em condições muito precárias e a qualquer momento podem ir para o desemprego. De acordo com o que eles próprios nos relatavam, isso produzia um sentimento de raiva e frustração, de ressentimento contra os privilegiados. E o que aconteceu é que Bolsonaro chegou e soube canalizar essa raiva.
Considera que a atual política brasileira é influenciada por forças externas?
É uma questão muito quente. Não temos muitos dados, mas algumas informações nos apontam que a interferência de certas forças econômicas externas não é um fenômeno presente apenas no Brasil, mas algo transnacional. Temos dados, por exemplo, de que o Movimento Brasil Livre (MBL), que foi muito importante para promover o impeachment (da ex-presidente Dilma Rousseff) - e sem o impeachment não existiria Bolsonaro - pertence a uma associação internacional que é a Atlas Network, que promove e financia muitas outras organizações de corte neoliberal que atuam em toda a América Latina.
Outros dados apontam que Ricardo Salles [ministro do Meio Ambiente] faz parte de redes de negacionismo climático com origens estadunidenses. Nas igrejas evangélicas também vemos a reprodução de um modelo muito claro que vem dos Estados Unidos para o Brasil. Além do governo Trump, que teve interferência direta e também indireta, porque Bolsonaro se esforçou para replicar seu modelo.
Como você avalia que a chegada de tendências religiosas dos Estados Unidos influencia o colapso atual que descreve?
Em princípio, negativamente, porque é uma religião muito promíscua e próxima da política. E também são propostas religiosas com uma visão muito neoliberal. É uma forma religiosa muito meritocrática e individualista. Estão chegando com muita força, muito dinheiro e uma estrutura sólida. Pela esquerda, é difícil lutar contra isso porque são estruturas muito grandes.
Afirmou em ocasiões anteriores que o setor progressista não está preparado para falar sobre a importância da religião. Por quê?
No Brasil, o Partido dos Trabalhadores surge ancorado nas comunidades católicas de base, com a igreja da Teologia da Libertação. No entanto, afasta-se porque acaba se nutrindo posteriormente com princípios como a laicidade e os direitos humanos. Isso é um pouco paradoxal, porque o Brasil é um país com uma espiritualidade muito forte, onde as religiões estão muito presentes e onde as classes populares não podem se entender, se não respeitam essas religiosidades. Portanto, se a esquerda se afasta da religião, também se afasta da classe popular a quem, em teoria, representa.
No entanto, o que a esquerda vê agora é que está lidando com um fenômeno religioso muito diferente que é a igreja evangélica, sobretudo pentecostais e neopentecostais, que são empresas muito organizadas e que cresceram vertiginosamente. Continuam crescendo e politicamente são um desafio muito forte, porque se organizam em grupos ultraconservadores.
Em uma situação política e social polarizada como a do Brasil, como são criadas as pontes de comunicação?
A sociedade brasileira está menos polarizada do que parece. Muitas pessoas estão cansadas da agressividade política e de brigar com a família. Portanto, parece-me que se começa a criar um consenso social de que esses extremos são negativos. Ainda que no período eleitoral parecia que valia tudo, passadas as eleições, o que as pessoas querem é recuperar a normalidade e viver em uma certa paz social.
Uma coisa que aprendi com meu trabalho é ouvir o que o cidadão anônimo tem a dizer. Deixamo-nos levar pelo sensacionalismo político e o que precisamos é dar mais voz ao cotidiano. Precisamos de honestidade intelectual na apresentação da informação, já que sinto que a polarização política também foi muito construída por analistas e jornalistas. As pessoas não querem viver de forma tão extrema, se vamos até a base social. As pessoas continuam vivendo, apesar das diferenças.
Existem caminhos para sair do colapso?
Sempre há esperanças. Uma coisa que me parece muito forte é que, em menos de um ano de governo, Bolsonaro perdeu vertiginosamente boa parte de sua popularidade. As pessoas votaram nele, mas há muitos que estão percebendo que seu modo de governar não funciona. Isso mostra que alguns votaram nele movidos pela fúria e a raiva. Foi como uma tempestade, mas há muitas pessoas que também não se sentem confortáveis com essa forma de governo.
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‘Brasil em colapso’ ou como restringir a democracia à classe privilegiada. Entrevista com Esther Solano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU