As críticas que a filósofa francesa Simone Weil endereçou aos partidos políticos de esquerda e de direita no século XX, apesar de terem sido elaboradas num contexto muito diferente do brasileiro, “nos ajudam a compreender a chamada crise da esquerda e, particularmente, o percurso do Partido dos Trabalhadores”, diz Alexandre Andrade Martins, professor de ética social na Marquette University, nos EUA, à IHU On-Line. Ele lembra que “Simone Weil fez duras críticas à experiência política com base em partidos, seja ela na forma comunista do partido único ou na forma da democracia liberal com a existência de vários partidos. Partidos que não estivessem comprometidos com os interesses dos oprimidos, especialmente dos trabalhadores, principal classe oprimida na Europa do seu tempo (primeira metade do século XX), não deveriam existir”.
À luz da obra de Weil, Martins analisa a trajetória do PT na política nacional nos últimos anos e enfatiza que a “esquerda acabou se voltando praticamente para pautas que almejam resolver problemas imediatos, abandonando a luta para mudar as estruturas”. Nos governos petistas, afirma, “isso ficou bem claro por meio de políticas que possibilitaram o acesso aos bens de consumo pelos mais pobres, mas não tocaram no sistema que mantém a classe operária como uma classe que produz pela força de trabalho, mas não pensa de forma autônoma”. Além disso, critica, “paulatinamente o PT foi se distanciando do seu compromisso com os interesses da classe oprimida, a classe trabalhadora. Isso aconteceu em um longo processo, de um PT que, por causa desse compromisso, se recusou a aceitar o apoio do PMDB de Ulysses Guimarães que poderia ter levado a ganhar as eleições de 1989, ao PT da ‘Carta ao Povo Brasileiro’ que aceitou pautas fora dos interesses do grupo com que se comprometia e possibilitou a vitória nas eleições de 2002. Dentro de uma análise weiliana, a partir daí a trajetória do PT foi sempre de declínio”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Martins adverte que a “luta da esquerda” não pode se restringir à busca por melhores salários para os trabalhadores. Recuperando a antropologia de Simone Weil, que busca compreender o ser humano a partir da própria condição humana de fragilidade, Martins defende que “a sociedade política precisa ser uma organização que permite o enraizamento e a busca pelo sobrenatural. A sociedade não pode suprimir o enraizamento, pois isso cria uma forma de opressão por meio da força contra a própria natureza do ser humano, tornando-a prisioneira da sua própria falta de raízes. Isso fará com que a pessoa desenraizada desenraize a outra”.
Alexandre Martins (Foto: Arquivo pessoal)
Alexandre Andrade Martins é graduado em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo e pela Pontificia Studiorum Universitas Salesiana de Roma, mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, onde estudou o pensamento filosófico e a mística de Simone Weil, e doutor em Bioética e Ética Teológica pela Marquette University - EUA.
IHU On-Line - Quais são os principais traços que marcam a antropologia desenvolvida por Simone Weil?
Alexandre Martins - A antropologia de Simone Weil é marcada pela condição humana de um ser finito e contingente, portanto, que sofre, mas um ser que busca a verdade, do ponto de vista existencial. Essa busca o abre para a graça, ou melhor, para a experiência de transcendência, que Weil chama de sobrenatural. Nesse sentido, sua antropologia é de caráter profundamente filosófico e teológico, pois é uma antropologia da condição humana, um ser frágil por natureza, que está aberto para a experiência do sobrenatural, isto é, da graça, numa linguagem mais religiosa. A sua antropologia é uma proposta de compreensão do ser humano a partir da própria condição humana de fragilidade, mas que faz um movimento intelectual de autoconhecimento. Para ela, esse movimento é a busca da verdade, a qual testemunha por meio da sua própria experiência de sofrimento que a levou ao encontro de Jesus crucificado. O sofrimento é um meio privilegiado para se desfazer de tudo aquilo que impede de encontrar a si próprio e a verdade na condição de fragilidade.
Simone Weil é muito particular nesse aspecto, porque ela não está simplesmente falando de sofrimento no sentido mais comum da palavra, mas sim de malheur, palavra francesa que escolheu para definir a profundidade do sofrimento a que se refere. Malheur vai além do sofrimento físico ou emocional, mas os incorpora, assim como o sofrimento devido à opressão social. Malheur, comumente traduzida como “desgraça” no Brasil por alguns estudiosos de Weil, é uma experiência de abandono que engloba toda a existência humana. Para ela, foi a experiência de Jesus na cruz, quando gritou “Pai, por que me abandonastes?” Nesse sentido é uma experiência de desgraça, isto é, de ausência da graça, descriando a própria pessoa humana. Malheur impõe um sofrimento que somente a graça pode resgatar, mas a marca do malheur nunca sairá. Na sua antropologia filosófico-teológica, malheur revela a condição do ser humano, como é, e o descria para poder abrir a pessoa à experiência da graça. Aqui, Weil segue a tradição cristã, dizendo que isso é um movimento de devolver para Deus a única coisa que realmente nos pertence: o “eu” (a descriação) que nos abre à graça, mas não há garantia que a receberemos, pois a graça depende única e exclusivamente da misericórdia de Deus.
IHU On-Line - Por que Weil não se compromete com uma antropologia meramente materialista? Que limites ela vê nessa noção de antropologia?
Alexandre Martins - Simone Weil se via como uma filósofa no sentido clássico e platônico do termo: filosofia como um movimento de contemplação em busca da verdade, compreendida como um estilo de vida. Dessa forma, sua antropologia é fortemente marcada pela capacidade intelectual do ser humano de contemplar a verdade e buscar compreendê-la em relação com a realidade do mundo e da própria existência. Concepções meramente materialistas ignoram esse movimento de contemplação, especialmente a possibilidade de uma consciência sobrenatural, algo importante no pensamento de Weil. Uma antropologia filosófica que se restringe meramente ao materialismo é uma antropologia limitada que apenas descreve realidades do mundo material e para por aí. Isso para ela não deve ser considerado nem mesmo um ato filosófico. Uma antropologia materialista não vê ou não permite que o espírito humano (entendido aqui como a ação intelectual do pensar na busca da compreensão das coisas) se arrisque num movimento de transcendência (entendido como o Pe. Vaz sugere: trans – acendere, isto é, ascender além de... ir além do...), que é o movimento que oferece o encontro com aquilo que dá sentido à existência, incluindo o sentido da realidade material e das organizações sociais desenvolvidas pelos seres humanos.
IHU On-Line - Como a antropologia de Weil, que transcende o materialismo, pode ser uma fonte para pensarmos a política ou questões políticas e sociais nos dias de hoje?
Alexandre Martins - Primeiramente é importante ressaltar que a antropologia filosófico-teológica de Simone Weil inicia no real, que inclui a realidade material, mas vai além dela para poder significá-la. O real também inclui a realidade transcendente, muitas vezes ignorada e/ou desprezada, mas que é tão real quanto a material. No real está o verdadeiro sentido da existência humana e da sua organização em sociedades que são estruturadas em torno de questões políticas e sociais. Se o real é limitado à realidade, isto é, à materialidade do ser humano e das sociedades, não é real de fato porque o transcendente é negado ou ignorado. (Apenas quero recordar que estou utilizando o conceito transcendente de forma muito livre, pois Weil não usa essa linguagem com frequência, o termo que prefere é realidade sobrenatural. Assim, ela diferencia essa realidade da material, que chama de natural). O transcender é um movimento que revela ao ser humano a sua própria condição, o sentido da sua organização social e a experiência cultural. Isso permite que a pessoa tenha um caminho para se enraizar na sua própria realidade, isto é, onde vive com sua história, cultura e valores.
IHU On-Line - Que importância Weil dá à liberdade de opinião e à liberdade de associação para fazer política?
Alexandre Martins - Para Simone Weil, a liberdade de opinião (de ideias) é essencial para todas as pessoas. É essencial porque é uma necessidade da alma. Precisa ser uma liberdade total e ilimitada pois é uma necessidade absoluta da inteligência, o que a faz ser uma necessidade da alma. O diálogo entre as pessoas e o debate de ideias devem ser sempre respeitados. Weil vê com suspeita tudo que suprime isso. Dessa forma, ela tem uma restrição muito grande com associação de pessoas, especialmente quando um grupo ganha caráter institucional.
O medo dela sempre foi que a instituição se tornasse muito maior que os indivíduos, usando da força institucional para suprimir a liberdade de pensar das pessoas, chegando até a expulsar da instituição os que pensam diferente. Em grande parte, foi baseado nisso que Weil, apesar de se converter à fé em Jesus dentro da experiência católica, não aceitou fazer parte da igreja de forma institucional por meio do batismo. No contexto político, ela foi veemente contra qualquer partido que não permitisse pensar diferente, ferindo a liberdade de opinião e viu algo errôneo apresentar a liberdade de associação juntamente com a de opinião.
A liberdade de associação não é uma necessidade da alma. A única coisa que a justifica é o agrupamento natural de pessoas devido a uma necessidade prática. Weil escreveu no contexto europeu, especialmente o francês, de grandes agremiações partidárias, muito diferente do contexto brasileiro atual de grande multiplicidade de partidos políticos. No seu contexto, Weil chegou até a levantar a questão se os partidos eram necessários, pois ela viu que as duas experiências existentes, a soviética do partido único e a de países europeus com vários partidos competindo entre si, não estavam sendo bem-sucedidas. De um lado, a burocracia soviética oprimiu o indivíduo e, do outro, a fragmentação permitiu o avanço do nazismo.
Weil chegou à conclusão de que a associação de pessoas é aceitável quando há um expediente da vida prática, como formar um partido político resultante de um agrupamento de interesses. Ela diferencia essa forma de agrupamento do agrupamento de ideias, pois nessa segunda forma a ideia do partido se torna maior que as pessoas, consequentemente não há espaço à liberdade de opinião com real circulação de ideias. No agrupamento de interesses, o compromisso é com um grupo, que é organizado por uma disciplina e um objetivo comum. Todos os debates e ideais devem ser voltados para promover o objetivo comum.
Aqui Weil é radical, porque um grupo o qual se torna uma associação de pessoas em um partido não pode ser qualquer grupo, mas o grupo dos oprimidos, no contexto dela, esses são os operários. Para ela, partidos de direita nunca deveriam existir porque eles não se comprometem com os oprimidos e seus interesses. Portanto, a política deve ser sempre comprometida com a liberdade de opinião das pessoas e com os interesses dos oprimidos.
IHU On-Line - Quais são, especificamente, as críticas de Weil aos partidos políticos?
Alexandre Martins - Como falei antes, Simone Weil fez duras críticas à experiência política com base em partidos, seja ela na forma comunista do partido único ou na forma da democracia liberal com a existência de vários partidos. Partidos que não estivessem comprometidos com os interesses dos oprimidos, especialmente dos trabalhadores, principal classe oprimida na Europa do seu tempo (primeira metade do século XX), não deveriam existir. Ela chegou a sugerir uma atuação do Estado para impedir que esses partidos não comprometidos com os oprimidos existissem. A sua crítica vem de quem concebe a filosofia como estilo de vida, na qual a busca pelo conhecimento e pela verdade rege a existência pessoal e a organização social. Essa busca não acontece do nada, mas está conectada com a vida das pessoas dentro de um país com sua cultura e história. Ademais, seu contato com a opressão e o sofrimento mostrou que essa busca é negada para a maioria das pessoas por meio da separação entre conhecimento e prática. O operário é aquele que apenas trabalha manualmente e não tem o direito de pensar, de ser conscientizado da sua própria condição, para usar um temo atual. Assim, o partido, comprometido com os interesses dos oprimidos, deve trabalhar para que conhecimento e prática sejam unificados. Os partidos, mesmo os criados nos meios operários, não entenderam isso, muitas vezes reduzindo a luta operária apenas a ter um salário maior, isto é, resolver uma necessidade imediata, mas sem tocar na estrutura que cria opressão.
IHU On-Line - Como a antropologia de Weil auxilia na compreensão da crise dos partidos de esquerda, a exemplo do PT?
Alexandre Martins - Embora Weil escreveu considerando um contexto muito diferente do brasileiro, sua antropologia e análise dos partidos políticos nos ajudam a compreender a chamada crise da esquerda e, particularmente, o percurso do Partido dos Trabalhadores. Primeiramente, penso que os partidos de esquerda ainda não entenderam a fonte da opressão por meio da separação entre conhecimento e prática manual, na qual à classe trabalhadora é negado o conhecimento ou a contemplação, termo usado por Weil. Segundo, a esquerda acabou se voltando praticamente para pautas que almejam resolver problemas imediatos, abandonando a luta para mudar as estruturas. Nos governos petistas, isso ficou bem claro por meio de políticas que possibilitaram o acesso aos bens de consumo pelos mais pobres, mas não tocaram no sistema que mantém a classe operária como uma classe que produz pela força de trabalho, mas não pensa de forma autônoma. Terceiro, paulatinamente o PT foi se distanciando do seu compromisso com os interesses da classe oprimida, a classe trabalhadora. Isso aconteceu em um longo processo, de um PT que, por causa desse compromisso, se recusou aceitar o apoio do PMDB de Ulysses Guimarães que poderia ter levado a ganhar as eleições de 1989, ao PT da “Carta ao Povo Brasileiro” que aceitou pautas fora dos interesses do grupo com que se comprometia e possibilitou a vitória nas eleições de 2002. Dentro de uma análise weiliana, a partir daí a trajetória do PT foi sempre de declínio.
Os governos petistas promoveram muitos avanços para a sociedade brasileira, possibilitando que a vida dos pobres melhorasse. Isso não pode ser negado. Mas o fato de o partido se distanciar da perspectiva de um agrupamento de interesses fez com que as administrações petistas não avançassem para políticas que tocassem a raiz da opressão. Uso o termo raiz aqui de propósito, pois é um termo muito caro a Weil. O fato de o PT não ter trabalhado para a junção entre conhecimento e prática manual (algo que chegou a ser promovido pelo partido quando lideranças e militantes atuavam no trabalho de base na conscientização, depois deixada de lado durante os governos de Lula e Dilma) abriu espaço para a própria insatisfação da população com seu governo, permitindo acontecer um processo que Weil chama de desenraizamento. A negação da história, como a realizada por grupos defendendo o que foi a ditadura brasileira, é um sintoma desse desenraizamento. O desenraizamento permitiu que a população, por meio da democracia, rejeitasse o PT para eleger um presidente que representasse a própria falta de raízes, com total descompromisso com a classe trabalhadora e oprimida da sociedade brasileira.
IHU On-Line - Como à luz de Weil é possível compreender, de outro lado, a expectativa que parte da sociedade brasileira depositou no partido e, consequentemente, sua frustração depois de 13 anos de governos petistas?
Alexandre Martins - A expectativa era que o PT realizasse uma gestão ética e comprometida com os interesses do grupo que representava, isto é, os trabalhadores. Contudo, não estou convencido de que essa expectativa teve de fato razão de ser se consideramos que o PT, para vencer as eleições, precisou se comprometer com os interesses de outros grupos. Do ponto de vista ético, isso já é questionável, pois a mesma ética que manteve o PT fiel ao seu grupo em eleições anteriores não se aplicou às eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014. A sociedade brasileira nunca foi intelectualmente e politicamente madura para entender isso. Como Weil disse que a luta da esquerda não poderia ser restrita a melhores salários aos operários, a sociedade não percebeu que os governos petistas se tornaram administrações para facilitar que os pobres tivessem acesso aos bens de consumo e conforto, sem mexer na estrutura econômica, social e de acesso ao conhecimento que permitisse a união entre saber (contemplação) e prática manual. A sociedade continuou intelectualmente e politicamente imatura, sendo seu único desejo ter mais e mais acesso aos bens de consumo, por parte de todas as classes, diferenciando apenas no tamanho ou no valor do próximo bem que gostariam de comprar. Com os escândalos de corrupção, a questão da ética petista começou a ser questionada, gerando uma reação da população (reação desproporcional devido a toda a narrativa criada pela mídia, pela elite conservadora e pelos partidos de direita).
IHU On-Line - Como avalia a crise dos partidos progressistas na América Latina à luz de Weil?
Alexandre Martins - Essa pergunta não é fácil de ser respondida, se é que de fato há uma resposta adequada. Há muitos fatores que levaram à crise dos partidos progressistas. Dessa forma, essa questão pode ser abordada de diferentes vertentes. Contudo, à luz do pensamento de Weil, a causa primeira da origem da crise dos partidos progressistas está na diminuição do compromisso com os grupos oprimidos, às vezes chegando até o total descompromisso. Na medida em que o partido vai se afastando dos interesses dos oprimidos, se aproxima mais do poder, sendo dominado pelo que Weil chama de força. Assim, o projeto do partido se transforma em um plano para se manter no poder. Dominado pela força, que torna dependente do poder, usará da própria força para controlar a população. Aqui não entenda força como o uso da violência, esse recurso seria o último a ser utilizado, mas força que cria o desenraizamento tanto do partido como do povo. Um povo desenraizado é um povo frágil e manipulável. Partidos progressistas que não estão atentos a isso, se afastam do povo e precisam usar do poder que têm, pela força, para se manter. Mas isso pode gerar uma reação contrária, contra o partido, fazendo o povo se revoltar contra a sua liderança. Então, o partido terá que romper com instituições democráticas e/ou usar a violência para se manter; ou aceita a revolta do povo desenraizado que escolherá outro líder, sendo que um povo desenraizado escolhe um líder também sem raízes e não comprometido com os oprimidos. Dentro de uma perspectiva weiliana, esse segundo cenário parece ter sido o que ocorreu no Brasil.
IHU On-Line - Em artigo recente publicado na revista Síntese, o senhor menciona que a antropologia filosófico-teológica de Weil pode conduzir a uma sociedade política capaz de empoderar os infelizes e aberta a uma experiência de transcendência que enraíza o ser humano. Pode nos explicar essa ideia?
Alexandre Martins - A antropologia filosófica-teológica de Weil é caracterizada pelo enraizamento da pessoa humana a partir do real, que inclui as realidades natural e sobrenatural. O estudioso do pensamento de Weil Emmanuel Gabellieri chama essa visão de “ontologia radical” do espírito humano enraizado na realidade. Soma-se a isso a questão do sofrimento, na sua versão mais aguda que Weil chamou de malheur, que cria uma situação reveladora da própria condição humana. Os malheureux, isto é, os desventurados ou infelizes como chamou, para Weil têm a experiência privilegiada de crucificação, o que os identifica com Jesus crucificado e sua experiência de abandono diante do silêncio de Deus. Nessa experiência, que é algo como uma descriação do próprio “eu”, apenas a graça pode resgatar. A sociedade política precisa ser uma organização que permite o enraizamento e a busca pelo sobrenatural, ou transcendente, como está chamando. A sociedade não pode suprimir o enraizamento, pois isso cria uma forma de opressão por meio da força contra a própria natureza do ser humano, tornando-a prisioneira da sua própria falta de raízes. Isso fará com que a pessoa desenraizada desenraize a outra. Weil chegou a dizer que um povo desenraizado desenraiza o outro. Para ela, foi isso que aconteceu com a colonização europeia da América Latina e da África. Dentro dessa antropologia do enraizamento, as ações humanas não iniciam com direitos, mas com obrigações em relação ao outro, especialmente aos malheureux. Essas obrigações devem satisfazer as necessidades do outro, especialmente as necessidades da alma, para que a sociedade seja estruturada de maneira que as pessoas possam se enraizar.
IHU On-Line - Como a obra “L'Enracinement” (O Enraizamento) de Simone Weil apresenta possibilidades para tratarmos de problemas atuais, como crise migratória, questões ambientais, terrorismo, guerra global?
Alexandre Martins - “O Enraizamento” é uma proposta de sociedade apresentada por Weil. Foi um texto encomendado por líderes da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, mas nunca utilizado por eles na reconstrução da França. Críticos de Weil afirmam que seu projeto não é viável e que em muitas partes ela não é clara o suficiente sobre o significado do que diz; por exemplo, quando fala da espiritualidade do trabalho e do trabalhador, os críticos se perguntam, mas o que ela quis dizer com isso? Como um Estado e um governo podem proporcionar isso? De fato, muitas críticas são válidas e não acredito que a sociedade desejada por Weil em “O Enraizamento” seja possível de forma literal, até porque não é muito claro como seria essa sociedade nos dias atuais e Weil não criou um sistema. Contudo, seu pensamento nos ajuda a lidar com muitos problemas contemporâneos espinhosos, como os mencionados por você.
Primeiramente, a questão do enraizamento e das obrigações em relação aos outros, especialmente aos desventurados e oprimidos, nos apontam caminhos para enfrentar as questões da crise migratória, do terrorismo e das guerras. O enraizamento é para um povo que na sua relação com o outro permite seu enraizamento. Isso abre o caminho para políticas de respeito das identidades e das diferenças dos outros (dos povos), cria alternativas de diálogo e promoção da liberdade do outro dentro das suas raízes próprias. Mostra que a guerra é justamente um atentado contra o enraizamento, consequência da própria perda das raízes que leva a ver o outro como um grupo a ser dominado. Quando isso acontece, há reações e uma delas é o terrorismo. Somando-se a isso, a perspectiva weiliana de obrigações aponta para a justiça com os pobres e oprimidos. As relações humanas começam com a questão sobre qual é a obrigação que tenho para promover a vida e permitir o enraizamento do outro, sobretudo dos pobres e oprimidos. Ademais, isso deveria ser refletido na governança dos países na qual o princípio a reger os governantes seja sempre o que faz cumprir a obrigação para com o outro, para com as pessoas do corpo social, especialmente para com os pobres e oprimidos. Isso é o caminho para a justiça natural, a justiça que se vive na Terra, entre as pessoas em sociedade. Mas para isso de fato acontecer, Weil acreditava que era necessária uma espiritualidade capaz de permitir que as pessoas avançassem até o transcendente para encontrar a justiça sobrenatural. Talvez, aqui seja o ponto que os críticos de Weil mais discordam, dizendo que não é possível esperar por esse movimento de transcendência. Mas para Weil, esse movimento não era apenas possível, mas necessário. Para concluir, vejo nessa perspectiva algo que também ilumina no lidar com a crise ecológica que vivemos, pois o meio ambiente deve ser visto como esse outro com o qual temos obrigações para a sua promoção, pois a relação harmoniosa com a natureza, de modo diferente para os povos, é também necessária para enraizarmos e vivermos como pessoas enraizadas no real.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Alexandre Martins - Apenas que o pensamento de Simone Weil é coerente com as escolhas existenciais da sua vida e sua vivência cotidiana. Ela foi fiel à busca da verdade e ao amor aos oprimidos. Trabalhou para unificar contemplação (conhecimento) e prática manual, comprometida com os oprimidos até o fim da sua vida. Ela sofreu e encontrou o sobrenatural na cruz de Jesus, que lhe trouxe a luz da verdade, luz que incluía a obrigação de trabalhar para a libertação dos oprimidos. Talvez essa coerência ética e a fidelidade ao seu compromisso com os oprimidos sejam um dos seus maiores legados para política hoje.