Por: João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto | 03 Novembro 2018
A chamada crise de imigração que temos vivido é analisada por diversas óticas, mas, quase que unanimemente, especialistas têm apontado que as interferências de países ocidentais sobre nações mais a Oriente acabam se revertendo em tensões e conflitos que levam à imigração. Para o frade dominicano Claudio Monge, uma das facetas dessas interferências é a do capital. “As atuais migrações são um processo de adaptação estrutural em nível internacional, à imagem do capital, das mercadorias e dos serviços que se movem pelo mundo com grande liberdade”, pontua. E acrescenta: “é paradoxal pensar que as pessoas são as únicas que permanecem lá onde residem quando, entre outras coisas, os danos ambientais da globalização também se fazem sentir em todas as latitudes”. Ou seja, se não há barreiras para a lógica do consumo e produção capitalistas, por que a surpresa agora na movimentação das pessoas? “No Ocidente, a percepção deliberadamente distorcida do fenômeno leva a pressões políticas e à identificação de soluções inadequadas, precisamente por se basearem em premissas infundadas”, destaca.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o teólogo Monge aponta que países ricos são os agentes que tanto impõem suas lógicas que acabam forçando a saída de pessoas de suas terras como também são aqueles que não recebem e acolhem essas pessoas. “É lógico que os pobres vão para os países ricos se a riqueza não vai até eles”, infere. “A grande maioria dos emigrantes provenientes das regiões do Sul encontra acolhida em países em desenvolvimento, eles mesmos muito pobres. Diante de tais números, a migração Sul-Norte para os países industrializados do Ocidente parece ainda bem pequena”, analisa. Para ele, essas lógicas econômicas são geradoras das desigualdades que empobrecem povos, deixando-os carentes de recursos financeiros e até de liberdade. “A pobreza, portanto, é uma escassez de liberdade efetiva, porque a falta daquelas que ele chama de capabilities (capacidades de fazer e de ser) muitas vezes se torna um obstáculo insuperável para levar a vida que gostaríamos de ter”, resume.
Monge também acredita que os políticos sabem dessa realidade, mas sucumbem para acomodar apenas seus interesses nessas lógicas. “Sendo reféns dos grupos econômicos dominantes, em vez de procurar soluções, contentam-se com meios fáceis e grosseiros para restabelecer o controle e a disciplina social. É preciso desviar a atenção da opinião pública das verdadeiras razões do mal-estar. Então, busca-se direcioná-la para uma suposta ameaça vinda de fora”, dispara. A crise, na sua opinião, também é uma oportunidade para repensar valores e subverter lógicas que impõem as desigualdades. “O fenômeno das migrações é um sinal dos tempos, mas ainda mais, a meu ver, um locus theologicus, isto é, um lugar onde Deus se revela, um lugar de chamado que convida a refletir e a compreender de modo novo aspectos centrais da fé e do testemunho cristão. É um evento que impulsiona a busca de uma espiritualidade que coloque a acolhida e a hospitalidade como experiências-chave”, sugere.
Claudio Monge | Foto: Cristina Guerini Link/ IHU
Claudio Monge é teólogo italiano. Frade da Ordem dos Pregadores - OP, desde 1997 vive sua experiência teológica e pastoral em Istambul, Turquia, como Superior da comunidade e responsável pelo Centro Dominicano para o Diálogo Inter-religioso e Cultural - DOST-I no diálogo-encontro com a tradição muçulmana. Entre seus livros publicados, destacamos Taizé. L’espérance indivise (Paris: Les Éditions du Cerf, 2015), Stranierità, nomadismo dell’anima (Milano: Sacra Doctrina, 2015), Stranieri con Dio. L’ospitalità nelle tradizioni dei tre monoteismi abramitici (Milano: Terra Santa, 2013) e Dieu hôte. Recherche historique et théologique sur les rituels de l'hospitalité (Bucharest: Zetabooks, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor tem acompanhado a chamada crise migratória de nosso tempo?
Claudio Monge – Eu olho com muita preocupação não tanto para o fenômeno como tal (em grande parte superestimado ao norte do Mediterrâneo, mas realmente dramático na Turquia, onde eu vivo), mas para o desvio cultural gerado pela tendência generalizada, também em nível institucional, de construir lugares-comuns sobre os migrantes e sobre aqueles que trabalham para acolhê-los e protegê-los. No Ocidente, a percepção deliberadamente distorcida do fenômeno (onde domina o medo alimentado e sustentado pelas mentiras criadas pela máquina das chamadas “fake news de Estado”) leva a pressões políticas e à identificação de soluções inadequadas, precisamente por se basearem em premissas infundadas.
IHU On-Line – Quais as questões de fundo, que perpassam guerras, perseguições políticas e religiosas, e crises econômicas e ambientais, que têm forçado um número tão grande de pessoas a migrarem?
Claudio Monge – Uma primeira constatação a ser feita é que, desde que o ser humano vive nesta terra, sempre houve movimentos migratórios de grupos ou tribos para outras regiões, na esperança de lá encontrar novas e melhores condições de vida. Certamente, em tempos mais recentes, esses fenômenos migratórios, às vezes, se tornaram fenômenos de massa, e a migração global alcançou proporções inéditas, se é verdade que cerca de 175 milhões de pessoas vivem longe da sua pátria. Destes, apenas 19,2 milhões são considerados “refugiados” e “refugiados de guerra” (que são a maioria dos “deslocados internos” aos países em crise ou apenas para além das suas fronteiras).
Quando analisamos a percepção desses fenômenos, constatamos que, nas inúmeras análises feitas, quase sempre falta o aprofundamento das causas que os determinam: operação arriscada demais, porque envolveria o dever de esclarecer as responsabilidades, muitas vezes justamente daquele Ocidente que se declara “vítima da invasão” migratória. Depois, uma intervenção real sobre as causas estruturais dos fenômenos migratórios envolveria políticas de longo prazo, uma “prevenção” que é um trabalho duro, a ser feito subterraneamente e, portanto, muito menos vendável eleitoralmente no imediato, em comparação com uma operação militar ou de polícia devidamente midiatizadas, embora largamente ineficazes.
Há ainda um dado estatístico que merece ser lembrado: a forma de migração que afeta o maior número de pessoas é a do Sul-Sul; em outras palavras, a grande maioria dos emigrantes provenientes das regiões do Sul encontra acolhida em países em desenvolvimento, eles mesmos muito pobres (apenas na África ao sul do Saara, há 39 milhões de refugiados e emigrantes por motivos de trabalho). Diante de tais números, a migração Sul-Norte para os países industrializados do Ocidente parece ainda bem pequena.
IHU On-Line – No mundo de hoje, tão globalizado e conectado, faz sentido ainda falar em “refugiados”? Por quê? E como compreender esse conceito na sua complexidade?
Claudio Monge – Por definição, com o termo “refugiados”, faz-se referência àqueles que buscam um refúgio contra as perseguições por causa da sua raça, religião, etnia ou das suas opiniões políticas. Na realidade, a mistura de causas e motivações políticas, econômicas, religiosas torna cada vez mais difícil distinguir os refugiados econômicos dos refugiados políticos (a própria vontade de fazer uma distinção disso é abusiva e não apenas ridícula). As atuais migrações são um processo de adaptação estrutural em nível internacional, à imagem do capital, das mercadorias e dos serviços que se movem pelo mundo com grande liberdade. É paradoxal pensar que as pessoas são as únicas que permanecem lá onde residem quando, entre outras coisas, os danos ambientais da globalização também se fazem sentir em todas as latitudes!
A globalização envolveu uma difusão planetária dos “valores ocidentais” que reduzem a distância cultural entre as regiões do mundo: o caráter “exemplar” assumido pelo modelo econômico e de vida ocidental, que, através dos meios de comunicação de massa, da publicidade e das exportações, é constantemente transmitido em todo o mundo, desperta a expectativa de um “desenvolvimento de resgate” (impossível, aliás, por motivos ecológicos, em primeiro lugar, já que a terra não poderia sobreviver se todos vivessem como o Norte privilegiado). Mas o resultado é apenas o de uma crescente lacuna de desenvolvimento crescente e já bem conhecida (como muitas vezes dizia dom Helder Câmara, os pobres sempre existiram, mas agora estão conscientes de que o são em relação a uma ínfima minoria de super-ricos), que estende a distância estrutural entre ricos e pobres.
Essa tensão quase inevitavelmente produz um alto potencial de migração em nível planetário, porque é lógico que os pobres vão para os países ricos se a riqueza não vai até eles. Ora, é pueril a tentativa do Ocidente de concentrar as suas políticas nas questões de segurança. Nunca serão as barreiras físicas ou jurídicas erguidas pelos regimes que interromperão os fluxos daqueles que buscam uma fuga e um mínimo bem-estar: poderão refreá-los, mas nunca interrompê-los.
IHU On-Line – Como observa o papel da Turquia na questão migratória em seu acordo com a União Europeia de “segurar o fluxo de migrantes”? Qual tem sido a postura do governo de Erdogan?
Claudio Monge – A União Europeia assinou, há pouco tempo, dois acordos com países terceiros, a Turquia e o Afeganistão, pela readmissão de migrantes “irregulares” presentes no território europeu. O Joint Way Forward on Migration Issues estipulado com o Afeganistão é um verdadeiro insulto aos princípios de tutela dos direitos humanos e dos migrantes, que insere, além disso, o elemento assustador do repatriamento forçado dos menores desacompanhados.
Esse documento assinado pela União Europeia foi contestado por muitas organizações da sociedade civil pelos seus conteúdos e pelo fato de falsificar a realidade de um país ainda em guerra, que, por razões de oportunismo político, a União Europeia decidiu que deve ser considerado seguro, merecendo, portanto, ser compatível com os repatriamentos. Um discurso muito semelhante pode ser feito sobre o acordo com a Turquia. A União Europeia, que há anos continua mantendo a Turquia em uma lista de espera no processo de integração, em primeiro lugar, contestando ao governo de Ancara problemas relativos ao respeito pelos direitos humanos e pela liberdade de imprensa, destina seis bilhões de dólares para que os turcos impeçam o trânsito de desesperados que fogem das bombas e dos terroristas do ISIS, mantendo-os ao sul do Mediterrâneo.
Não podemos saber que acertos a União Europeia fez sobre as condições dos refugiados na Turquia ou nas ilhas gregas das quais não podem fugir, para constatar se efetivamente o acordo com Erdoğan respeita aqueles direitos humanos considerados latentes na Turquia. Dito isso, certamente a Turquia fez um esforço inicial de acolhida adequada para fluxos que, há cinco anos, se esperava que fossem limitados em termos de número e de tempo. Os números atuais, porém, já falam de mais de 3,15 milhões apenas de refugiados sírios. É uma presença que fez explodir os acampamentos de acolhimento previstos para algumas centenas de milhares de pessoas, ultrapassando as possibilidades de absorção e colocando milhares de pessoas em condições de precariedade absoluta e em risco de criminalidade, além de em perigo de vida devido às privações. Trata-se de uma verdadeira “bomba demográfica” sabiamente usada pelo poder turco como instrumento de chantagem política para aqueles que a ofereceram a ele.
IHU On-Line – Como podemos relacionar o conceito de “hospitalidade” trabalhado pelo senhor com a chamada crise migratória, que desencadeia a crise de refugiados, pelas quais estamos passando?
Claudio Monge – O fenômeno das migrações é um sinal dos tempos, mas ainda mais, a meu ver, um locus theologicus, isto é, um lugar onde Deus se revela, um lugar de chamado que convida a refletir e a compreender de modo novo aspectos centrais da fé e do testemunho cristão. É um evento que impulsiona a busca de uma espiritualidade que coloque a acolhida e a hospitalidade como experiências-chave para se abrir ao encontro com Deus hoje. Nas crises destes tempos, o paradoxo está precisamente no fato de que, enquanto as nações do bem-estar são tentadas a se fechar cada vez mais em si mesmas, são as nações mais pobres da Terra que demonstraram mais espírito de acolhida.
Isso deveria nos fazer entender que o desafio da acolhida não é apenas econômico ou apenas político, mas também cultural e espiritual, e a verdadeira bússola continua sendo a do reconhecimento da dignidade e do valor intangíveis da pessoa, de cada vida humana e dos seus direitos fundamentais que não são concessão de nenhuma autoridade ou lei humana, mas estão escritos no próprio ser do homem e da mulher, de cada pessoa na sua concretude histórica. Na carta universal, faz-se referência aos direitos humanos e não aos dos cidadãos de um Estado soberano específico. Essa dignidade humana a se reconhecer é a expressão mais radical da alteridade a se acolher: é o estrangeiro que me permite ser eu mesmo, fazendo de mim um estrangeiro.
O que é a globalização em curso, na base dos fenômenos migratórios, senão o espaço, mental antes que geográfico, onde cada um se descobre estrangeiro para o outro? E uma condição de fragilidade que, se superarmos a tentação ao encurvamento, pode se tornar a base para uma relação nova e gratuita com Deus, os outros e a criação, porque o fato de descobrirmos a nós mesmos como estrangeiros é experiência de diversidade que nos permite celebrar a nossa unicidade reconciliada. Além disso, quem lê a Bíblia não pode deixar de fazer uma descoberta desconcertante: o Deus que se revela é o Deus que se revela a estrangeiros ou, melhor, é o Deus que se fez estrangeiro. Um Deus que acolhe, mas que também se deixa acolher pelo ser humano, elevando à altura da gratuidade divina aquele que assume o risco da hospitalidade sem eliminar a diversidade, como, de fato, pretenderiam certos discursos nacionalistas totalitários, que opõem identidades pseudocoletivas ao “diferente” como tal.
IHU On-Line – Adela Cortina construiu o conceito de aporofobia, através do qual defende que o refugiado não sofre somente porque é estrangeiro, mas sim por ser um estrangeiro pobre. Que outras relações o senhor faz entre a pobreza e a imigração forçada, a partir dessa perspectiva de Cortina?
Claudio Monge – Os migrantes e refugiados são frequentemente o bode expiatório de um sentimento de insegurança mais geral devido à crise econômica e/ou à perda de sentido do sistema. Não se pode reduzir e combater a xenofobia se não forem reduzidas as desigualdades “entre os cidadãos” e se não forem aumentadas as garantias sociais para todos. O fracasso das estratégias econômicas e das políticas neoliberais está diante dos olhos de todos. A crise e a recessão prolongada são os sintomas mais evidentes. A forte e crescente concentração técnico-produtiva e financeira acabou freando e, tendencialmente, parando o alargamento das bases produtivas que constitui uma dinâmica vital para o desenvolvimento capitalista.
Em termos sociais, os custos foram enormes. As desigualdades cresceram a tal ponto que determinaram uma espécie de plano inclinado na estratificação social, na qual continuam deslizando não só as classes trabalhadoras, mas também as classes médias. Isso significa que, para a maioria da população dos países do capitalismo histórico, desapareceu a esperança de melhorar as próprias condições e as de seus filhos. Isso causa um profundo mal-estar e desconforto na maioria da população, e o migrante evidencia ainda mais essa pobreza que nos dá medo.
Não por acaso, o prêmio Nobel de Economia Amartya Sen nos lembra que a pobreza é a impossibilidade que uma pessoa tem de poder levar a vida que gostaria de viver. A pobreza, portanto, é uma escassez de liberdade efetiva, porque a falta daquelas que ele chama de capabilities (capacidades de fazer e de ser) muitas vezes se torna um obstáculo insuperável para levar a vida que gostaríamos de ter. Os políticos sabem disso, mas, sendo reféns dos grupos econômicos dominantes, em vez de procurar soluções, contentam-se com meios fáceis e grosseiros para restabelecer o controle e a disciplina social. É preciso desviar a atenção da opinião pública das verdadeiras razões do mal-estar. Então, busca-se direcioná-la para uma suposta ameaça vinda de fora. A figura do imigrante, isto é, daquele que é estranho e diferente, se presta muito bem para tal deslocamento. Mais uma vez, está claro que o “que fazer?” não diz respeito apenas a uma resposta positiva ao fenômeno migratório, mas sim a uma reforma profunda do funcionamento do sistema econômico, social e político dominante.
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Crise migratória é efeito da tensão do capital sobre os mais pobres. Entrevista especial com Claudio Monge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU