20 Fevereiro 2024
Claudio Katz é economista, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), professor da Universidade de Buenos Aires, membro de Economistas de Esquerda e ativista de direitos humanos. Publica em meios de comunicação da Argentina, México e Brasil, e é autor de inúmeros textos que interpretam o capitalismo atual e a crise econômica global.
Nesta entrevista, analisa o momento particular da Argentina com o governo do ultradireitista Javier Milei.
A entrevista é de Cecilia Valdez, publicada por El Salto, 19-02-2024. A tradução é do Cepat.
Qual é a estratégia por trás do plano de governo de Javier Milei? Há quem aponte que se trata da doutrina do choque, ou seja, abordar tudo ao mesmo tempo, atordoar e ver o que resta...
Sim, é exatamente a aplicação extrema da doutrina do choque. Buscam criar uma presidência firme e sólida e um governo de tipo autoritário, que inflija mudanças a longo prazo, mas nota-se que isto não está funcionando. A ideia de Milei, de entrar como uma força avassaladora, e uma motosserra, já enfrentou um fracasso fulminante com a queda da Lei Ônibus, na Câmara dos Deputados. Um dos dois instrumentos que pretende utilizar para avançar em sua estratégia, e mudar a estrutura econômica e social das últimas décadas, foi triturado. É um governo que busca tudo, mas com bem pouca capacidade de êxito.
Como vê a reação das ruas diante de tudo que vem acontecendo?
Vejo isso muito vinculado ao resultado deste fracasso de Milei com a Lei Ônibus, que para mim teve dois determinantes: o Parlamento e as ruas. O Parlamento, porque não conseguiu chegar a um acordo com os governadores sobre como distribuir o ajuste, porque queria esvaziar as províncias, deixá-las sem dinheiro e marginalizá-las de todos os negócios das privatizações. E o outro grande condicionante foi o resultado da paralisação e da mobilização de 24 de janeiro. Acredito que o que aconteceu no Congresso foi determinado pelo resultado da mobilização, que foi multitudinária e teve grande repercussão política.
Inclusive, eu diria que com poucos precedentes, pois foi um protesto depois dos primeiros 45 dias de governo, em plenas férias de verão, com muito calor e, mesmo assim, foi enorme. Além das organizações sindicais, houve uma grande participação juvenil, dos bairros, cultural, e novamente se notou que o movimento operário organizado tem um poder tremendo e que quando intervém demonstra porque foi o protagonista das grandes lutas populares.
Por outro lado, o protocolo antipiquete da [Ministra da Segurança] Bullrich foi mais de uma vez superado. Enquanto a Lei Ônibus era debatida no Congresso, ela fez uma verdadeira caçada às pessoas que protestavam na praça, mas não atingiu o seu objetivo, que é impedir as mobilizações. As mobilizações são muito pujantes e há uma consciência bastante generalizada de que a luta só começou e que vai longe.
Como você vê o papel da CGT em todo esse quadro?
A CGT mudou um pouco de atitude, fez essa grande paralisação e essa grande mobilização, mas quando é preciso gerar um plano de luta, congelam a ação. A questão não é apenas a Lei Ônibus não avançar, mas colocar fim a este plano de guerra que está esfacelando os salários e as aposentadorias. Aí a CGT retorna à política tradicional de conciliação, mas também é verdade que houve certa mudança de atitude com a presença inédita das Mães da Praça de Maio, e como oradoras, no 24 de Janeiro, nas plenárias regionais etc.
Então, a mobilização não só suplanta esse princípio absurdo [presente nas leis repressivas de Bullrich] de que não é permitido marchar pelas ruas, ou essa ideia boba de que se há três pessoas reunidas é uma assembleia, como também há juízes como Sebastián Casanello que começam a intervir com medidas cautelares, destacando o caráter abertamente anticonstitucional do protocolo Bullrich.
Muitos sustentam que a vitória de Milei não é tanto um voto a favor de uma ultradireita autoritária, mas, sim, um voto de punição àqueles que não souberam fazer bem as coisas quando puderam governar.
Concordo plenamente. Pesam dois ou três fenômenos convergentes no voto em Milei. O primeiro, é um voto de punição à decepção gerada por governos autodenominados progressistas, que convalidam o status quo e não mudam as condições de vida da população.
No caso de Alberto Fernández, foi um governo incapaz, impotente e paralisado, que desde o início ficou com os braços presos pela direita. Foi segurado desde o momento em que recebeu a imposição de condições para não expropriar Vicentín [conglomerado industrial de produtos primários de exportação] e foi induzido a legitimar o acordo com o FMI.
De fato, impuseram-lhe um ajuste que consolidou um cenário argentino de inflação alta e de um trabalhador formal pobre. Isto levou a um desencanto que foi canalizado por outra direita. Contudo, o desencanto nos explica o voto de punição, mas não para quem vai esse voto.
E o que explica esse voto?
O voto de punição dado à ultradireita é uma tendência mundial. No caso específico de Milei, desenvolveu dois ou três lemas muito singulares que captaram a adesão do setor popular mais informal. Um é a ideia de que a casta é a culpada por todas as desgraças nacionais e, então, trata-se de concentrar a rejeição popular em uma pequena minoria imaginária de políticos que são culpados de tudo, sendo que ele faz parte disso e o gasto dessa minoria é insignificante em relação à massa de lucro das grandes corporações. O outro mito é que com a dolarização as pessoas iriam ganhar em dólares e passaríamos a ser um país de primeiro mundo. Esses são os principais determinantes que explicam a vitória de Milei.
Qual é a saída para tudo isto?
Tudo depende do que acontecer com o Governo Milei. Em vez de fazer prognósticos a longo prazo, a primeira coisa que temos de ver é o que acontece no futuro imediato. Milei tem a alternativa de renegociar a Lei [Ônibus], retorná-la ao Congresso, e iniciar uma recomposição das relações com os governadores e com a “oposição amigável”. Assim, através disso, estabelecer um acordo para consolidar o ajuste, que é o desejo das classes dominantes e grupos de poder. Esse é o primeiro caminho, e é o idealizado pelos setores com poder, mas, como já fracassou, é improvável que volte a percorrer o mesmo caminho.
O outro é que seja realizado um plebiscito e que volte a fazer uma campanha contra a casta, que diga que a casta não o deixa governar e que o Congresso é o culpado pelo que acontece, e já com o voto inclinando, com um voto majoritário a seu favor, lance-se novamente a recuperar a autoridade e recomece o seu governo com o apoio popular.
Vê como viável que recupere o apoio popular, em um contexto de ajuste como este?
Quem parece não ver a questão como viável é Milei, pois não ousa nessa direção. Tudo indica que não ousa por razões mais do que óbvias: teria que conseguir mais de 50% em condições em que a sua base está sendo corroída pelo ajuste que está realizando, com um plebiscito que não é vinculante e que levaria a Argentina, durante dois meses, a um cenário eleitoral em plena crise econômica.
Em suma, penso que tentará governar através de decretos, mas é muito difícil fazer um ajuste dessa forma. Privatizar, reduzir o déficit, realizar a reforma trabalhista ou qualquer uma de suas reformas antipopulares não pode se dar por decreto, pois o FMI, os fundos de investimento e os grandes bancos querem garantias legais.
Como se explica que ainda há pessoas nos setores populares que o justifiquem?
Porque se passaram 60 dias de governo. É muito raro que após 60 dias de governo a imagem dele esteja completamente esfacelada, isso nunca aconteceu. O que se percebe é que a casta, a verdadeira, está em festa porque está enchendo os bolsos. Os grandes grupos econômicos, com os aumentos de preços, recuperaram a rentabilidade de anos em dois meses.
Ao contrário, a casta a que Milei se referia, a maioria popular, é a que está sofrendo os custos do ajuste. Então, a distorção que existe em torno do termo casta já começa a ficar esclarecida, mas isso leva tempo e dependerá da forma e da consistência da resistência popular.
Identifica semelhanças entre Milei e Netanyahu?
Penso que é a passagem da direita no discurso para a direita na ação, porque o que temos visto nas últimas décadas é a consolidação de uma ideologia ultradireitista que se consolidou em toda a sociedade. Contudo, no momento de governar, se olharmos para o primeiro Trump, Bolsonaro, Meloni e Orbán, foram governos de direita convencionais. Não houve qualquer elemento, exceto a retórica, que os diferencie de um típico governo de direita.
Por outro lado, com Netanyahu e Milei há uma guinada, porque é a passagem para os fatos. Netanyahu está implementando um massacre sem precedentes para repetir outra Nakba, expropriar terras dos palestinos e ampliar a fronteira de Israel. Netanyahu está em um plano geopolítico associado a Trump para remodelar o Oriente Médio, inclinando a Arábia Saudita para o eixo ocidental e colocando um freio a toda a expansão da Rota da Seda da China, na região, e isto passa por um forte golpe militar, direto ou indireto, contra o Irã.
Ou seja, Netanyahu está costurando um projeto de ultradireita muito decidido e Milei é a correspondência disso na América Latina. É um trumpismo neoliberal extremo na América Latina para alinhar toda a região com os Estados Unidos e gerar uma restauração conservadora contra os governos progressistas, mas com um alinhamento cego aos Estados Unidos. Um alinhamento que, inclusive, contraria os próprios interesses das classes dominantes locais da Argentina, porque Milei está agindo a serviço da ofensiva dos Estados Unidos contra a China.
Milei está tensionando as relações com a China, através do flerte com Taiwan, a crítica ao regime político chinês e o cancelamento dos investimentos chineses no país. Contudo, a China já respondeu que se ele continuar nesse caminho, comprará carne, soja e cereais da Austrália, Uruguai e Brasil. Em 2018, quando venceu as eleições, Bolsonaro fez o mesmo, tentou esfriar as relações com a China para se submeter aos Estados Unidos, mas o agronegócio brasileiro lhe disse não e, então, deu uma guinada, retomou as relações com a China e recompôs todas as relações no Parlamento com a direita convencional.
Em relação à China e Brasil, Milei se viu forçado a recuar.
O pano de fundo do problema é que existe um conflito de interesses entre o que Milei representa e o grosso da classe dominante argentina. A classe dominante argentina apoia Milei por uma única razão: ele promete fazer o ajuste contra o povo, os movimentos sociais e contra os salários, as aposentadorias etc., algo que nenhum governo pôde finalmente fazer, por isso o apoiam e perdoam tudo. É isso que têm em comum, mas fora disso as tensões são enormes, pois há um choque de interesses.
Milei representa dois setores: por um lado, é um homem do Departamento de Estado dos Estados Unidos, que representa os interesses diretos da geopolítica dos Estados Unidos. E por outro, é um nome do capital financeiro. Estas duas variáveis se chocam com muitos interesses imediatos do agronegócio e dos setores industriais da Argentina. Então, toda vez que esse isto entra em curto-circuito, Milei precisa avançar ou recuar.
Você faz uma diferenciação entre o que foi o Governo Bolsonaro e o que é o Governo Milei.
Basicamente, é uma diferença na sustentação. Bolsonaro contava com o Exército, o agronegócio e os evangélicos. Milei chegou apenas com os votos. É um outsider que conseguiu captar o mau humor popular e, então, tem que construir a base que Trump tem no Partido Republicano e que Bolsonaro e Le Pen possuem, mas ele não.
Você também diz que Milei age como um liberal fora do tempo. Poderia desenvolver um pouco melhor esta ideia?
Há uma guinada bastante evidente em toda a economia mundial em direção ao Estado regulador, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Com o abandono das normas da globalização neoliberal e com a forte concorrência entre os Estados Unidos e a China, reaparecem as tendências de intervenção do Estado, com princípios reguladores, ou seja, a ação keynesiana ou neokeynesiana do Estado é a única forma que os Estados Unidos têm para tentar frear o avanço da China.
O discurso de Milei é dos anos 1990, uma espécie de extremo do que dizia o ex-presidente Carlos Menem, mas Menem dizia o que na época dizia Thatcher, ou na de Tony Blair, agora estamos na época de Trump, é outro cenário. Então, ele diz isso porque esse discurso neoliberal é o discurso funcional para o capital financeiro da Argentina, mas essa não é de modo algum a norma imperante, hoje, no capitalismo global.
Quais são os cenários a médio e longo prazo?
É difícil determinar de quanto tempo estamos falando. É provável que daqui a mais dois meses, no máximo, Milei tenha que decidir se desvaloriza ou não. Claramente, o plano de uma desvalorização brusca, para que todas as variáveis se ajustem depois, não está funcionando, pois a taxa de inflação continua descontrolada e não está vindo qualquer tipo de investimento, nem créditos, do exterior. Em algum momento, Milei terá que enfrentar o dilema de desvalorizar ou dolarizar, ou de optar por alguma opção extrema para estabilizar a economia.
Se Milei obtiver sucesso em algum de seus rumos, viveremos um cenário semelhante ao de Menem nos dois anos que antecederam a conversibilidade. Menem teve dois anos muito traumáticos de inflação e crise, e depois alcançou a convertibilidade. Esse é o projeto de Milei e por isso [o ex-ministro da Economia] Domingo Cavallo o guia nessa direção. Acontece que Milei não tem o Partido Justicialista, nem a burguesia sindical, nem os governadores, nem nada disso. Menem era um neoliberal no tempo certo e Milei é um neoliberal fora do tempo.
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“Milei é a aplicação extrema da doutrina do choque”. Entrevista com Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU