27 Novembro 2019
Ao lado da onda de sublevações que varre a América Latina, a Argentina passou de forma cordial pelo processo eleitoral que elegeu Alberto Fernandez presidente e recolocou o peronismo no poder. Talvez pela consciência de que o espaço para contornar a crise socioeconômica seja pequeno demais para maiores confrontações. É sobre esta e outras questões que conversamos com a socióloga argentina Maristella Svampa, autora do livro As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências.
Maristella Svampa. Foto e Fonte: Correio da Cidadania.
“A Argentina é um país superendividado em relação ao FMI, tem a terceira taxa mundial de inflação, viveu uma fabulosa destruição do emprego e das pequenas e medias indústrias. Reconstruir tudo isso dará um trabalho enorme e é muito provável que o governo escolha alguns espaços e âmbitos para fazer investimentos de tipo progressistas, mas ao mesmo tempo acompanhado por orientações programáticas conservadoras”, analisou.
Diante disso, Svampa traça um perfil dos movimentos e articulações sociais que podem guiar o país – e o continente – a um novo processo de lutas, superador da chamada onda progressista, esgotada tanto em sua fórmula política como em projetos de desenvolvimento. A seu ver, o máximo que se pode esperar do futuro presidente é um “progressismo seletivo”, isto é, distante de contemplar as facetas mais contestadoras ao capital.
“Há diferentes linhas de acúmulo de lutas, campos diferentes de organização, do centro à periferia. Sem dúvida não se pode pensar que os movimentos urbanos, populares e feministas não estão no centro da agenda, assim como os movimentos territoriais rurais, socioambientais e indígenas e que tudo não esteja interligado ao legado do movimento de direitos humanos, que tem uma grande importância na Argentina”.
Ainda dentro de tal debate, comenta as diversas revoltas que acometem o continente em curto espaço de tempo à luz de um contexto político de desgaste das esquerdas que governaram em consonância com os interesses do capital transnacional e uma direita mais radicalizada que no começo do século.
“Está claro que não será construída uma esquerda emancipatória na América Latina sem a crítica e autocrítica dos progressismos realmente existentes. E também se estas esquerdas não incorporarem as dimensões socioambientais e feministas como elementos centrais de sua narrativa e configuração. As esquerdas latino-americanas, caso consigam se reinventar, serão feministas e ecologistas. Ou não serão”.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 26-11-2019.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, o que é a Argentina antes e depois dos quatro anos de Mauricio Macri? Quais seriam as grandes diferenças entre a gestão do Cambiemos e os anos kirchneristas?
Efetivamente, existem muitas diferenças entre os governos kirchneristas e o de Macri. O primeiro foi um populismo de alta intensidade, de caráter mais integrador para setores populares, com política econômica heterodoxa. Teve grandes problemas e déficits de diferentes aspectos, mas, convenhamos, era portador da ideia de incorporar setores mais amplos da sociedade ao desenvolvimento econômico. De outro lado, Macri fez a aposta ‘aberturista’ orientada ao investimento estrangeiro, com política econômica ortodoxa que teve repercussão muito negativa na sociedade.
De fato, no final do governo de Cristina a taxa de pobreza já tinha aumentado para 35% e a inflação também era alta. Mas o governo Macri claramente piorou todos os índices em relação ao emprego, inflação, aumentou tarifas públicas, piorou os serviços públicos, destruiu as pequenas empresas... Sem dúvida, piorou tudo, a pobreza e a desigualdade aumentaram.
Em termos societais, ficou claro que o macrismo concebia uma sociedade diferente do kirchnerismo, na qual a economia não integra a sociedade e deixa muita gente de fora. Ficou muito claro para a sociedade que se tratava de um projeto excludente, conforme já disse aqui.
Nesta linha, ainda houve uma inflexão muito clara em termos de agenda de segurança cidadã: abandonou-se uma política até errática, porém mais ligada ao garantismo, em favor da política de segurança mano dura.
Outro aspecto é que houve continuidade e aprofundamento do neoextrativismo, com ampliação das fronteiras extrativistas, sobretudo em relação à expansão das concessões de campos de lítio, forte aposta no campo gás de xisto de Vaca Muerta e na megamineração.
O que espera da futura presidência de Alberto Fernandez? Quais deverão ser seus eixos programáticos e qual sua expectativa a este respeito?
Primeiramente, a Argentina é o único país com essa dupla alternância. Depois de 12 anos de progressismo, com seus erros e acertos, alternou-se para um governo aberturista de tipo neoliberal e, depois de quatro anos, voltou, supostamente, um governo de caráter progressista.
No entanto, não sabemos de fato o quão progressista será este governo. Destacamos que o governo de Alberto Fernandez irá se assentar em termos regionais e geopolíticos num cenário bem diferente.
Regionalmente, já não existe o boom de commodities que caracterizou o ciclo progressista. O cenário geopolítico é diferente, com grandes tensões internacionais, em especial as tensões entre EUA e China. Por fim, há a ascensão das direitas mais tradicionais, de caráter autoritário no mundo todo, particularmente no Brasil no caso latino e, talvez, a Bolívia em breve.
A meu ver, o ciclo progressista claramente acabou em 2015. Se há algo possível de reeditar será com elementos diferentes do ciclo anterior, porque efetivamente, de um lado, tais fórmulas estão esgotadas e desacreditadas. A articulação virtuosa entre lideranças progressistas e movimentos antineoliberais é coisa do passado. Hoje, o cenário é outro e acima de tudo não temos o boom das commodities, além de uma direita local e internacional muito empoderada que vai além da direita neoliberal anterior.
Portanto, o que se pode dar em termos de mudança será operado neste contexto, diante de uma grande crise socioeconômica. A Argentina é um país superendividado em relação ao FMI, tem a terceira taxa mundial de inflação, viveu uma fabulosa destruição do emprego e das pequenas e medias indústrias. Reconstruir tudo isso dará um trabalho enorme e é muito provável que o governo escolha alguns espaços e âmbitos para fazer investimentos de tipo progressistas, mas ao mesmo tempo acompanhado por orientações programáticas conservadoras.
Nota-se uma cordialidade considerável na relação entre os dois lados mais votados nas eleições. Há por trás disso uma consciência consolidada em Alberto Fernandez de que o espaço para aplicação de políticas de redução da pobreza é menor do que o encontrado por Nestor Kirchner?
Reforçando: o contexto no qual se insere Alberto Fernandez é bem diferente ao de Nestor. É um governo que se encontrou com uma grave crise econômica, social e política. Mas o contexto internacional era outro. Nestor assumiu no momento em que começava o boom das commodities, com aumento do preço da soja e dos preços dos minerais como petróleo e gás.
Em especial no compasso do boom da soja, a Argentina encontrou um dinamismo em termos de crescimento econômico que tornou possível uma recomposição bastante rápida de sua economia. Em compensação, Alberto Fernandez encontra um horizonte muito mais escuro, com muito menos ferramentas à mão para tirar o país da grave emergência social e econômica em que se encontra.
Neste sentido, é bem provável que apele a um pacto social que envolva diferentes atores do arco econômico, político e corporativo, a fim de avançar em certas medidas que tenham consistência ao longo do tempo, capazes de resistir à inflação e ao peso da dívida externa.
Diante disso, quais políticas você considera adequadas para o mandato de Fernandez?
Sinceramente, é muito difícil de responder sem uma bola de cristal ou varinha mágica. A Argentina é um país que atravessa enorme crise social, econômica, financeira. Enfim, são diversos os âmbitos onde é necessário repensar as bases para a sociedade.
Deve-se pensar numa agenda de segurança cidadã, que garanta segurança sem violentar as liberdades individuais, com uma convivência mais harmônica e respeitosa dos direitos humanos. Deve-se garantir uma economia mais heterodoxa, capaz de integrar a sociedade, e não dissociada dela. Deve-se, por exemplo, pensar numa agenda de transição socioecológica e energética. Não vivemos apenas uma crise climática global; vivemos também expressões locais desta crise, muito ligadas aos consolidados modelos de desenvolvimento.
Há uma série de âmbitos que devem ser repensados. A política de comunicação deve ser repensada. Não só em termos de legislar e afirmar a pluralidade dos meios de comunicação, mas também se atenuar a enorme polarização do país, que se expressa cabalmente através dos meios de comunicação.
É um dos grandes problemas: como pensar um país no qual o espaço da política aparece simplificado através da oposição entre dois polos enfrentados que obstruem a possibilidade de pensarmos em terceiras alternativas, que apontem a um horizonte comum e diferente do atual. É um grande desafio, a meu ver, para os movimentos sociais.
Quais devem ser as grandes lutas sociais do povo argentino e seus movimentos sociais nos próximos anos? E o que está em marcha para além do peronismo?
É difícil responder de forma unívoca porque na Argentina há um campo multidimensional atravessado por diferentes linhas de acumulação de lutas. Há movimentos sindicais de grande tradição marcadamente antineoliberais, mas ao mesmo tempo carentes de uma narrativa emancipatória, que hoje lutam pelo salário e a defesa de certos direitos sociais básicos.
Há o campo dos movimentos territoriais urbanos, que conseguiram colocar na agenda o tema da pobreza, da fome, da importância da economia social. Menciono a CTEP (Confederação de Trabalhadores da Economia Popular) como destaque.
Tem uma terceira linha de acumulação de lutas, ligada aos movimentos camponeses e territoriais rurais, que avançaram na agenda da soberania alimentar e no desenvolvimento da agroecologia, que nos últimos cinco anos teve uma grande expansão no país.
Existe ainda a luta dos povos originários, que na Argentina sempre foram invisibilizados, mas com o aumento da fronteira mineira e energética adquiriram mais visibilidade em suas demandas. Existem as lutas socioambientais que confrontam e questionam a megamineração, o fracking e colocam na agenda problemáticas como a defesa da terra, do território, dos bens comuns.
E, claro, o movimento feminista, muito potente e sem dúvida o mais inovador da última década. Não só colocou na agenda a denúncia do feminicídio e a necessidade de o Estado assumir um papel ativo na proteção das mulheres como também um claro discurso antipatriarcal. Assim, mulheres muito jovens, quase meninas, tiveram um papel renovador através da chamada Maré Verde, que conseguiu emplacar uma lei de legalização do aborto.
Portanto, há diferentes linhas de acúmulo de lutas, campos diferentes de organização, do centro à periferia. Sem dúvida não se pode pensar que os movimentos urbanos, populares e feministas não estão no centro da agenda, assim como os movimentos territoriais rurais, socioambientais e indígenas e que tudo não esteja interligado ao legado do movimento de direitos humanos, que tem uma grande importância na Argentina.
Nesta linha, sem dúvida é um grande desafio pensar numa articulação de todas essas expressões, principalmente na hora de construir relações de equivalência entre todos. A meu ver, é muito importante que os movimentos socioambientais consigam colocar na agenda a problemática do modelo de desenvolvimento, de modo a mostrar sua conexão com o agravamento da crise socioeconômica.
Assim, acredito, por exemplo, que o papel que os jovens podem chegar a ter na discussão sobre o clima, no calor do efeito Greta Thunberg, com expansão bem presente na Argentina, lhes coloque o desafio de incluir tal problemática no centro da política, pois, sem dúvida, tocam no núcleo duro dos grandes interesses corporativos e econômicos, tanto do país como do mundo.
Do meu ponto de vista, um dos grandes desafios é colocar no centro da agenda essas problemáticas, ligadas ao papel dos povos originários e movimentos socioambientais, de modo a passar da periferia ao centro da agenda pública. E que não sejam subalternizados pelo calor da emergência socioeconômica que se busca instalar no governo.
Nesta linha, o grande desafio é romper com o progressismo seletivo do governo, que provavelmente será parecido ao progressismo seletivo do kirchnerismo. Falo de um progressismo que promove uma agenda de direitos sociais, segurança cidadã, direito ao aborto, mas na hora de falar da expansão da fronteira extrativa claramente se associa aos capitais transnacionais.
É necessário que os movimentos sociais construam uma agenda integral, que incorpore também a problemática socioambiental, que está no coração da grande crise civilizatória que atravessamos.
O que comenta dos acontecimentos na Bolívia?
Podemos comentar muitas coisas. O país vive enorme crise e podemos dizer estar às portas da guerra civil. Efetivamente, houve um golpe de Estado, uma interrupção de governo constitucional e do próprio estado de direito. Não há discussão sobre isso. No início, a saída insurrecional pela direita articulou setores sociais muito heterogêneos. Setores médios que apoiaram Carlos Mesa, indigenistas de esquerda... Mas no final quem se apoderou do protesto foi a extrema-direita. E ela se apropriou do discurso de defesa da democracia. O mais paradoxal de tudo é isso: a ultradireita se apropriar do discurso de defesa da democracia e assim dar um golpe de Estado.
Por trás de tudo aparece um ponto cego do governo de Evo Morales: a busca de se perpetuar no poder. Não esqueçamos que seu governo criou grandes expectativas, mas também foi se derivando em um modelo de dominação mais tradicional. Uma dominação ligada ao processo de concentração de poder na sua pessoa, que em 2016 apelou a um referendo popular para modificar a Constituição e se apresentar novamente como candidato. Sabemos que o resultado foi negativo e Evo foi à justiça, conseguindo uma maneira de se candidatar.
No calor destas eleições, com irregularidades e tentativas de manipulação detectadas por várias auditorias, um conjunto de atores atualizou o que aconteceu em 2016, isto é, a rejeição à sua reeleição, o que gerou fortes mobilizações.
As duas questões devem ser levadas em conta, porque de alguma maneira se deu uma conjunção explosiva entre um populismo democratizador, porém cego, que buscou a todo custo se perpetuar no poder, contra um revanchismo social e étnico protagonizado por uma extrema-direita que se apropriou do discurso da democracia.
O que representa no plano continental?
As placas tectônicas da América Latina estão se mexendo muito. Uma enorme revolta popular no Equador obrigou o governo a retroceder em medidas abertamente neoliberais, o que voltou a empoderar as organizações que compõem a CONAIE e as mulheres, que tiveram forte protagonismo nas ruas. Depois veio o Chile, também inesperadamente, pois ninguém supunha que uma sociedade tão enrijecida pela cultura neoliberal abriria um novo horizonte para questionar radicalmente as desigualdades.
Não sabemos onde todos os processos vão derivar, ainda que na Bolívia o destino pareça negativo, com a consolidação de uma contrarrevolução neoliberal e de claro corte racista. Ainda assim, esperamos que as forças sociais democráticas que existem na Bolívia reabram o cenário.
Mas o cenário regional é este: placas tectônicas se mexendo, sem indicar com claridade para onde vamos. É bem diferente de 15, 20 anos atrás, de abertura do ciclo progressista. Insisto nisso porque, primeiro, as esquerdas partidárias ditas progressistas estão bem desacreditadas. E por outro lado há um avanço das direitas autoritárias. Um cenário bem diferente do ciclo anterior.
O cientista político uruguaio Raul Zibechi diz que a onda conservadora irá passar, o problema é saber o que colocar no lugar, dada a ausência de um projeto de esquerda consistente e sustentável. Em sua visão, que projeto seria esse?
Sem dúvida, é um momento de crise das narrativas e linguagens das esquerdas. O fim do ciclo progressista impactou não só as esquerdas estatais, nacionais, mas o conjunto. Todas foram desacreditas ou afetadas. Não se deve esquecer o peso do fracasso que a experiência venezuelana tem sobre o conjunto das esquerdas e o grande divisor de águas que ainda permanece no pensamento crítico latino-americano sobre avaliação dos progressismos realmente existentes e os acontecimentos da Venezuela.
É preciso fazer uma avaliação real sobre as esquerdas realmente existentes na América Latina, a fim de avançar para esquerdas mais consistentes em espaços de articulação, no calor das ações de movimentos sociais criativos e inovadores que existem no continente. Mas isso não vai acontecer sem a necessária autocrítica e reconhecimento de limites e erros do último ciclo.
A meu ver, está claro que não será construída uma esquerda emancipatória na América Latina sem a crítica e autocrítica dos progressismos realmente existentes. E também se estas esquerdas não incorporarem as dimensões socioambientais e feministas como elementos centrais de sua narrativa e configuração. As esquerdas latino-americanas, caso consigam se reinventar, serão feministas e ecologistas. Ou não serão.
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Argentina: “o grande desafio é romper com o progressismo seletivo do governo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU