12 Agosto 2024
"Nas autocracias sul-americanas é a bizarrice enganosa, manipulada pelo marketing político. Na Argentina, o presidente aconselha-se com um cachorro morto. Na Venezuela, um protoditador diz falar com um passarinho, suposta reencarnação do predecessor. Maduro, claro, autor do prodígio de vencer eleições antes do total apurado, bizarramente referendado por uma gaiola ideológica brasileira", escreve Muniz Sodré, em texto publicado por Folha de S.Paulo e reproduzido por André Vallias em sua página no Facebook, 11-08-2024.
Muniz Sodré é professor, pesquisador, sociólogo, jornalista e tradutor. Professor emérito da Escola de Comunicação – ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e membro da Academia de Letras da Bahia, atualmente é colunista do jornal Folha de S.Paulo e considerado um dos maiores intelectuais brasileiros no campo da comunicação. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 2009 a 2011 e fundador do PPG em Comunicação da ECO. É autor de diversas obras, entre elas Pensar Nagô (Vozes, 2023) e O fascismo da cor (Vozes, 2023).
Tempo biográfico de infância, interior nordestino. Bastava Seo Zezinho, o barbeiro local, estender a mão para que um passarinho, qualquer um, na rua ou no quintal, nela pousasse. Coisa bizarra, mas ninguém falava em poderes, nem o confundia com São Francisco. Era só a natureza de Seo Zezinho.
Mas existe segunda natureza. Nas autocracias sul-americanas é a bizarrice enganosa, manipulada pelo marketing político. Na Argentina, o presidente aconselha-se com um cachorro morto. Na Venezuela, um protoditador diz falar com um passarinho, suposta reencarnação do predecessor. Maduro, claro, autor do prodígio de vencer eleições antes do total apurado, bizarramente referendado por uma gaiola ideológica brasileira. Ideologia de asas curtas.
Lula tem conselheiro político de excelso saber, consta. Mas a força maior do vexame os deixa inermes. Por mais que se pretenda racional qualquer avaliação do momento sul-americano, é impossível separar o convencional do extravagante. O realismo mágico que imanta de forma encantatória a narrativa de um Gabriel Garcia Marques ganha vida real como folhetim de segunda classe, não em busca de leitores, mas de eleitores. O rito de calendário democrático, objeto tentativo da literatura especializada, é praticado como bufonaria autocrática.
À esquerda e à direita, finge-se que não vê. A primeira é geopolítica, ciosa da unidade subcontinental, nostálgica do tempo em que a Venezuela se aproximou de Cuba. Foi quando trocou a antiga classe dirigente pela "burguesia bolivariana", um empresariado mais disperso e mais includente de generais, sob o engana-olho de "revolução bolivariana", na verdade um slogan de golpismos anteriores. O líder era Chávez, hoje aquela pessoinha que come alpiste mediúnico na mão de Maduro.
A direita sempre assestou canhões contra Chávez, "suspeito" de socialismo. Leia-se um popularismo antenado ao estado psíquico dos marginalizados que respaldou o autoritarismo do regime, de brutal repressão a opositores e à independência dos Poderes. A democracia dos anos 70 degringolou junto com uma corrupta economia de cleptocratas, o desemprego virou onda imigratória, e o chavismo tornou-se espiritismo popular. Uma extrema direita, carnavalizada como esquerda.
Agora, como antiamericanismo de gogó não mata fome nem inspira respeito, os EUA logo proclamaram a vitória da oposição. Mas internamente cabe a generais, e não a votos, dar a última palavra. De qualquer forma, com mortos na plateia e milhares de prisões, o teatro burlesco da política fechou a cortina, palmas deram lugar a pedradas. Não são novidade, mas aumentaram de tamanho. Podem ter feito Chávez alçar voo: afinal, passarinho que come pedra sabe o rabicho que tem.
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A gaiola de Maduro. Artigo de Muniz Sodré - Instituto Humanitas Unisinos - IHU