01 Agosto 2024
Há anos, fala-se da era da incerteza. Algumas vozes nos lembram que esta é uma constante histórica e não uma nota exclusiva do nosso tempo, mas, de qualquer modo, sentimos que o mundo está revirado: a guerra na Ucrânia, o conflito no Oriente Médio, os inimigos pujantes da sociedade aberta, a crise climática, a revolução da inteligência artificial...
Poucas vozes têm a capacidade analítica para nos ajudar a entender os desafios que enfrentamos. Uma delas é o analista venezuelano Moisés Naím, ex-ministro da Indústria e Comércio e ex-diretor executivo do Banco Mundial, que acaba de publicar Lo que nos está pasando (Debate, 2024), uma seleção dos artigos que publica semanalmente em jornais internacionais. Conversamos com ele sobre as eleições na Venezuela e nos Estados Unidos, o tabuleiro geopolítico e a criação de uma nova ordem mundial.
A entrevista é de Mariana Toro Nader, publicada por Ethic, 29-07-2024. A tradução é do Cepat.
Comecemos falando dos três Ps: polarização, populismo e pós-verdade. São os culpados da “recessão democrática”? Ou a que se deve a crise global da democracia?
Há muitos fatores em jogo, mas o que está acontecendo, que poucas vezes se menciona, é a crise de governo e de governança que existe no mundo. O desempenho está muito baixo entre os líderes de todo o mundo e, como sabem disso e precisam de apoio, recorrem aos três Ps. Começam a usar todas as retóricas e esses três Ps juntos para compensar a perda de governabilidade que sofrem.
Afirma que o populismo não é de esquerda, nem de direita, que pode ser verde ou negacionista das mudanças climáticas. E parece haver uma ascensão populista no mundo. Agora, passaremos a falar de Donald Trump, mas também se observa a chegada de Javier Milei, na Argentina, e ascensão da ultradireita na Europa, onde se supunha que a democracia liberal estava bem enraizada.
É uma análise muito boa. É o que está acontecendo. A única coisa que se deve acrescentar – e é o termômetro que utilizo – é se são populismos que miram para a democracia ou que tendem claramente à autocracia e à permanência da mesma equipe e o mesmo líder no poder. Porque o populismo, a polarização e a pós-verdade podem ser de todas as cores, mas o que mais me interessa é que não façam artimanhas, travessuras e farsas que são utilizadas para a perpetuação no poder.
Muitas vezes, agem às escondidas, apresentam-se como democratas, mas na verdade são autocratas. Essa é a grande batalha, certo? Desmascarar os autocratas e impedir que continuem. Escrevi em uma das minhas colunas que muito mais perigoso do que o populismo é o continuísmo. Ou seja, aqueles que sobem ao poder e nunca mais são tirados: [Nicolás] Maduro, [Viktor] Orbán etc. É isso que me parece importante destacar: a propensão autoritária ou democrática do governo ou do regime do qual estejamos falando.
Disse que o continuísmo é uma ameaça ainda maior do que o populismo. Como você vê o regime chavista?
O regime está muito pressionado e está cometendo barbaridades. É muito importante, toda vez que se fale do regime de Maduro, reconhecer e lembrar dos torturados. Neste momento, enquanto você e eu conversamos, a tortura está sendo utilizada como instrumento de Estado na Venezuela. E os casos são enormes, foram registrados por organizações internacionais de direitos humanos. A Venezuela é hoje um lugar onde o terrorismo é um dos principais instrumentos utilizados pelo Governo.
A oposição venezuelana denunciou fraude eleitoral nas eleições presidenciais do último dia 28 de julho. Houve fraude na Venezuela?
Sim, a fraude está clara e a veremos nos próximos dias.
No livro, fala justamente de caquistocracia, o poder dos maus. Em um ano em que metade do globo irá às urnas, uma das eleições que deixa o mundo apreensivo é a estadunidense. Até a OTAN pensou na criação de um fundo de recursos “à prova de Trump”. Enfrentaremos mais quatro anos de “política assimétrica”?
As eleições são daqui a alguns meses e tudo pode acontecer. Trump ser novamente presidente dos Estados Unidos traz grandes ramificações mundiais. Sempre traz, as eleições nos Estados Unidos são sempre importantes para o resto do mundo, mas, neste caso, não é apenas mais uma eleição, não é apenas mais um candidato, não é apenas mais um partido político, é outra coisa que o sistema não está projetado para lidar. Então, os maus se aproveitam. Ou seja, os bons seguem as regras e os maus não têm regras, impõem as suas e utilizam todas as armadilhas possíveis. É esta assimetria que está provocando ansiedade em relação a um governo de Trump.
Que consequências teria o retorno do trumpismo ao poder?
A estratégia geral é diminuir as fiscalizações, o controle do poder e enxergar a Casa Branca como um lugar onde podem fazer o que quiserem. Isto é muito perigoso, sobretudo a fragilização dos pesos e contrapesos que caracterizam uma democracia. Evitar a perpetuação no poder é muito importante, mas não se deve esquecer que democracia não é só o que acontece no dia das eleições. A democracia também é o que acontece entre uma eleição e outra. E é aí que que minam de modo pouco visível as medidas que tinham sido traçadas para evitar a concentração de poder em uma só pessoa, grupo ou partido.
É particularmente preocupante que, neste momento, o mundo esteja vivendo conflitos simultâneos: a invasão da Ucrânia pela Rússia; a intensificação do conflito palestino-israelense e a crise humanitária em Gaza; o fim da “guerra na sombra” entre Israel e o Irã. Claramente, o que acontecer na Casa Branca repercutirá sobre estas tensões.
É exatamente isso. Acontece que nunca as vimos tão fortes, algumas delas sem precedentes, nunca tinham acontecido antes. Pense nas mudanças climáticas e nas consequências que trazem, por exemplo, ou nas consequências que virão da inteligência artificial. Muitas dessas coisas são inéditas ou existiam, mas estavam silenciadas. E de repente surge uma guerra no centro da Europa, com tanques e bombas. Para qualquer pessoa que tivesse sido dito que esse era o prognóstico para a Europa, negaria. É claramente um momento em que há definições importantes e há duas guerras em curso muito importantes, talvez três com o que está acontecendo no Sudão.
Diz-se que uma nova ordem mundial está sendo gestada. Como enxerga o desenvolvimento desses conflitos nos próximos meses e o papel da China no tabuleiro internacional?
Essa é a relação bilateral mais importante do mundo, provavelmente da história: a China e os Estados Unidos estão envolvidos em uma rivalidade na qual ainda falta muito para que a China possa ter as capacidades que os Estados Unidos têm, mas ela caminha nessa direção e, em algum momento, chegará à paridade em termos de recursos e capacidades bélicas. A questão é o que farão com isso. Existem áreas em que estão condenados a competir, mas também estão condenados a colaborar.
As mudanças climáticas, por exemplo, não podem ser resolvidas sem a presença desses dois. Ninguém agindo sozinho pode resolver o problema. Pode ser mitigado, reduzido... Contudo, é apenas um da longa lista de desafios que existem hoje na humanidade e que não podem ser resolvidos por um país agindo sozinho.
É necessário concertação, coordenação, sincronização de vários países, talvez não dos 190 países como os que existem na ONU, mas os principais países, sim, precisam entrar em acordo para que algo aconteça. E até agora isso não está acontecendo. No entanto, há esperança de que, diante do que está por vir, que é tão ameaçador, surjam essas capacidades de coordenação e multilateralismo que, neste exato momento, estão enterradas.
Falando em mudanças climáticas, voltemos ao nosso continente. A América Latina não só tem o pulmão do mundo, mas também uma grande diversidade de recursos naturais. Na geopolítica do clima, como vê o papel dos países latino-americanos diante desta crise global?
São líderes pequenos diante de problemas gigantescos. A lista está correta: temos o pulmão do mundo na Amazônia; e no que diz respeito à IA e a necessidade do lítio, seria um player muito importante no mundo. A América Latina tem capacidades, tem recursos, mas também péssimos governos. Uma das perguntas que se faz é por qual razão os governantes são tão ruins, tão incompetentes e alguns tão corruptos. Então, sim, muitos recursos, muitas possibilidades e bem poucos líderes que merecem respeito.
Em matéria de migração, a população venezuelana está tão assediada, há tantos anos, que o fluxo migratório tem sido enorme.
Entre sete e oito milhões de pessoas. Estamos falando de uma das maiores migrações que que existem atualmente no planeta.
Os Estados Unidos e a União Europeia estão traçando novas medidas para lidar com a crise migratória, que também tem a ver com os direitos humanos e, como você disse, cada vez mais terá relação com a degradação climática.
Nos tempos atuais, a migração é um problema espinhoso que não tem solução. O que há são pequenos alívios. Se os Estados Unidos abrirem todas as suas portas aos imigrantes, terão vários milhões de pessoas de todo o mundo caminhando, nadando e voando em sua direção. E se fechá-las completamente também não funcionará. Este é um daqueles problemas que não podem ser solucionados por qualquer país agindo sozinho. Os Estados Unidos têm de entrar em acordo com a União Europeia, mas também com os países centro-americanos etc.
Não existem soluções mágicas, mas paliativas. Seria possível pensar em um grande plano de apoio à América Central, onde comecem a surgir empregos, possibilidades de progresso, em que a violência não seja um fator determinante na vida das pessoas. Este plano não é a solução final e é falho, mas é o que existe e o que pode ser feito. No entanto, deve-se entender que é necessária uma coordenação internacional e disto existe muito pouco.
Na Argentina, os eleitores decidiram que um governo de Milei é melhor do que continuar no mesmo caminho, que as medidas extremas podem ser melhores do que continuar como estavam...
Sempre e quando existirem certas proteções básicas para a democracia. O único indicador que me importa é se ficam ou vão. Eu quero que os políticos cheguem, governem por quatro ou cinco anos no máximo, que não possam indicar a família ou os amigos na presidência e pronto. Quatro anos e casa. E sem reeleição, nem alguém de sua família em primeiro grau.
Tudo tem defeitos, nada é preto ou branco, mas eu prefiro um presidente que cumpra o seu período, que não deve ser mais do que cinco anos, e depois é a vez de outro ou outra. Isso é algo que temos que lutar fortemente para que aconteça, porque, caso contrário, agarram-se e nunca mais os tiramos.
Juntos, Maduro e Chávez estão há mais de duas décadas fazendo o que querem, sem prestar qualquer tipo de conta. Têm uma economia catastrófica, têm um país onde oito milhões de pessoas decidiram partir para se afastar da tragédia. Como isso pode acontecer? Bem, porque através da repressão e de armadilhas eleitorais o Governo conseguiu permanecer impune frente aos atos criminosos e de corrupção.
No prólogo, você também fala da ansiedade generalizada. Em 2050, metade do mundo poderá ter algum tipo de transtorno mental. Isto também deve ser resolvido em coordenação entre vários países?
Absolutamente. Um dos melhores exemplos que temos nos últimos tempos é o contraste entre os cientistas e os políticos sobre a vacina contra a covid-19. Normalmente, o processo de descoberta e criação de uma vacina demora muito tempo, no entanto, os cientistas, os laboratórios e as universidades de diferentes países começaram a trabalhar juntos e as desenvolveram em tempo recorde. E estamos falando sobre dar uma vacina para milhares de milhões de seres humanos. Não tínhamos visto isto antes e é um produto da coordenação. Enquanto isso acontecia, os políticos estavam negociando, fazendo política: quem tem mais respiradores, quem cobra mais pelas vacinas, quem coloca obstáculos ao livre comércio para que não cheguem. Políticos ferozes e cientistas velozes.
Para encerrar, você diz que, em 2008, a OTAN emitiu um comunicado no qual, no parágrafo vinte e três, abria a possibilidade de negociações com a Ucrânia, “o detalhe que acabaria levando a Europa a sua pior guerra, em oito décadas”. Qual pode ser esse parágrafo vinte e três que marcará o mundo nos próximos anos?
Eu acredito que as negociações entre a China e os Estados Unidos nos trarão surpresas muito boas e surpresas muito ruins. As duas maiores superpotências nucleares do mundo: se elas espirram, todos ficamos resfriados. Isto fará parte da surpresa que antecipamos. A outra, que é incrivelmente importante e também pouco entendida até agora, é tudo o que tem a ver com a IA.
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“A grande batalha é desmascarar os autocratas”. Entrevista com Moisés Naím - Instituto Humanitas Unisinos - IHU