19 Março 2024
"Uma diferença com 2018 é que o governo aposta no discurso da paz e da produção. Maduro retomou os comícios na rua. Mas o chavismo está inquieto. E essa inquietação não vem apenas, ou talvez principalmente, da oposição, mas da própria paciência da população", escreve Ricardo Sucre Heredia, especialista em ciência política, professor na Universidade Central da Venezuela (UCV), diretor-gerente da consultoria Smart Thinkers. O artigo é publicado por Nueva Sociedad, em março de 2024.
O Conselho Nacional Eleitoral convocou eleições presidenciais para o próximo 28 de julho. Com bases menos mobilizadas do que no passado, escolheu-se como data o aniversário de Hugo Chávez. Essas eleições serão realizadas com María Corina Machado, vencedora das primárias da oposição e líder da oposição, impedida de competir, e um campo de jogo profundamente inclinado a favor do governo, que pretende que na Venezuela hoje tudo está "muito normal".
A Venezuela irá às eleições presidenciais em 28 de julho. Contra o que muitos opositores acreditavam, a tese de que o governo recorreria a "distúrbios internos" para suspendê-las, usando como desculpa o referendo sobre o Esequibo de dezembro de 2023, não prosperou.
O atual momento pré-eleitoral na Venezuela é, para usar uma expressão popular, uma situação que acontece por dentro. À superfície, tudo parece tranquilo. É uma paz autoritária que mal é questionada. Todos os setores parecem desfrutá-la. Venezuela quer viver, respirar, depois de anos de intenso conflito político existencial entre o governo e a oposição. No entanto, o embate continua; mesmo sendo de baixa intensidade, não é menos áspero. Já faz parte da estrutura da vida venezuelana.
Apesar do sistema autoritário, uma eleição presidencial sempre gera incerteza, especialmente em um povo como o venezuelano, que costuma surpreender nas votações. Esta conjuntura, que ocorre a cada seis anos, apresenta desafios tanto para o governo quanto para a oposição. Para o executivo, o risco está relacionado à possibilidade de que, no final, a mistura de repressão e clientelismo não consiga controlar a vontade dos eleitores. Para a oposição, o risco é não ser capaz/saber aproveitar, mais uma vez, uma nova oportunidade para destituir o governo de forma pacífica e legítima, como um processo eleitoral (a oposição venceu as parlamentares de 2015, mas anulou sua vitória em parte ao seguir uma estratégia insurrecional para tirar Maduro do poder).
A incerteza acende os alarmes dentro de cada grupo político e gera a tensão do ambiente pré-eleitoral que se respira, apesar da tranquilidade nas ruas.
Analisar a conjuntura pré-eleitoral na Venezuela passa, necessariamente, por examinar os dilemas e desafios de cada ator em jogo, que são três dentro do país: a sociedade como um todo; o governo – incluindo o chavismo como movimento, e a oposição, dividida em múltiplas facções.
Não parece haver dúvidas de que o desejo dos eleitores é por uma mudança política, após 25 anos de chavismo. Embora a alternância tenha sido apagada pela concepção de poder hegemônico da Revolução Bolivariana, a demanda por mudança não se enfraqueceu. No entanto, o governo insiste em mostrar uma Venezuela "normal": hoje há produtos de sobra nos supermercados, mas apenas para uma parte da população, e apesar do descontentamento, não há protestos em massa nas ruas, além de vários conflitos por aumentos de salários.
O tamanho da economia venezuelana diminuiu 80% entre 2013 e 2020. Ou seja, caiu de 100 para 20. Hoje, o país cresce, sim, 5%, mas a partir de 20. Em termos absolutos, o PIB da economia venezuelana se aproxima de US$ 100 bilhões, quando chegou a ultrapassar US$ 400 bilhões em seus melhores momentos.
A vida é desigual social e geograficamente. Há uma Venezuela com dinheiro e desfruta de níveis de consumo europeus, e outra que vive o dia a dia, "matando tigres", em meio a uma dolarização de facto da economia. O dólar – primeiro uma maldição e depois uma bênção, de acordo com o próprio Maduro – tem sido e é o verdadeiro fator de estabilidade política. Sem a dolarização, a Venezuela estaria passando por um intenso conflito civil.
A necessidade de mudança atravessa até mesmo o chavismo. Longe de ilusões como as de 2017, quando a Assembleia Constituinte mobilizou suas bases, o governo parece estar ciente do crescente cansaço e esgotamento em suas próprias fileiras. Por isso, Maduro precisa mostrar que consulta as bases. A discussão das "7 Transformações" (7T) foi uma tentativa de manter viva essa miragem de retroalimentação das bases, de abertura da discussão, de um líder que escuta.
O governo de Maduro atravessa várias linhas de tensão política. Seu problema central é como garantir uma eleição presidencial reconhecida pelos principais países na qual não participe o que ele chama de oposição insurrecional ou "os sobrenomes", principalmente após a desqualificação de María Corina Machado, que venceu as primárias da oposição e alcançou uma forte penetração territorial em todo o país.
Este problema foi formulado pela vice-presidente Delcy Rodríguez em 24 de fevereiro passado, ao afirmar que "nunca mais os fatores extremistas que pediram invasões, que promoveram o assassinato do presidente Nicolás Maduro e de altas autoridades, que pediram sanções causando o sofrimento do povo venezuelano, nunca mais tenham a possibilidade de espaços políticos neste país". O problema é que os "fatores extremistas" constituem a oposição reconhecida interna e internacionalmente, a que participa das negociações de Barbados e a que tem apoio eleitoral.
As oposições "alternativas" – como aquela que negociou com o governo em 2019, competiu nas parlamentares de 2020 e assinou o acordo sobre eleições de 28 de fevereiro – não são vistas como uma verdadeira oposição, mas como parte dos esforços do governo para ter uma oposição à sua medida, que legitime suas vitórias eleitorais.
Diante dessa situação, o governo apela a uma solução contraditória, que busca combinar a repressão estatal com a consulta à sociedade. Como parte da repressão, renovou-se a desqualificação de Machado de 2015, já vencida, que foi estendida até além de 2030 para excluí-la da competição eleitoral. Do lado da "escuta", está a constatação de que o governo precisa se abrir mais para a sociedade, o que se materializou em uma aproximação surpreendente ao setor privado desde 2020, que se beneficiou notavelmente da "nova normalidade". Paralelamente, Maduro busca mostrar uma face amigável, como quando serve café aos seus convidados durante seu programa semanal ou durante suas aparições humorísticas no TikTok.
O governo está focado em manter a estabilidade política como condição para o crescimento econômico. E convencer os eleitores da vantagem dessa "normalidade". Uma escolha entre a mudança e a paz. Mas ao mesmo tempo, o regime está preso em sua própria inércia. Não é capaz de inovar, de mudar, de oferecer algo diferente. A apresentação dos resultados das "7T" foi um evento delirante, "joelho no chão contra o imperialismo", enquanto os cortes de luz não são resolvidos.
Aí estão as grandes limitações para o executivo. Preso em sua dinâmica, tentando reviver um passado que não voltará, como visto na "Marcha Anti-imperialista" de 29 de fevereiro ou na escolha do dia de aniversário de Chávez para as próximas eleições. A Marcha Anti-imperialista pareceu estar fora da realidade, com Maduro tentando infrutiferamente reviver o Chávez de 2004. Nenhuma proposta nova, além de criticar os Estados Unidos ou pregar "mais poder ao poder popular", uma expressão vazia que significa esvaziar as instituições da constituição de 1999 para transferir esse poder para o executivo, sob a cobertura do poder de baixo para cima. O único que Maduro pode oferecer hoje é um modelo de vida ideologizado e medíocre.
O desafio para a oposição é como ser viável até 2024 sem María Corina Machado como candidata. Ela concorre com outra opção? Busca inscrever Machado? Se abstém como em 2018? Deixa a liberdade de consciência à sua base para votar ou não? Surpreenderá com algo novo?
As primárias de outubro de 2022 resolveram a questão da candidatura e da liderança dentro da plataforma unitária: Machado ganhou ambas. O problema está em que vencer uma primária não é suficiente para construir uma política, muito menos em um sistema autoritário. Machado confundiu sua vitória esmagadora com uma coroação, mas trata-se de um mandato para liderar uma aliança política para tentar ganhar as eleições com um terreno de jogo profundamente inclinado a favor do oficialismo.
Depois das primárias, Machado optou pela prudência e pelo perfil baixo, mas o trabalho de articulação com outras forças políticas mal se notou. A candidata da aliança opositora tem claro que precisa contar com uma máquina ou estrutura eleitoral frente ao chavismo, para o qual lançou a rede 600K e os "comanditos", iniciativas que servirão para sustentar sua candidatura ou a de um potencial candidato alternativo. O tempo está correndo. A data limite para registrar candidatos é segunda-feira, 25 de março.
Desde 2013, a oposição ensaiou estratégias para alcançar uma "ruptura" do regime - a política de "pressão máxima" que Donald Trump comprou dos estrategistas do interino Juan Guaidó - que fracassou por dez anos. Hoje, está no momento de ver se repete ou muda. Se mantém a carroça na frente dos cavalos - o que faz há uma década - ou coloca os cavalos na frente da carroça, o que, à luz do fracasso das estratégias insurrecionais ou abstencionistas, consistiria em competir com as regras do sistema autoritário e tentar ganhar. No entanto, a oposição não parece inclinada a esta ideia, mas espera que "algo aconteça" e cause uma crise dentro do governo, de modo que este concorde em habilitar María Corina Machado. Mas isso parece esperar um milagre.
No fim, o problema político da Venezuela permanece: enquanto o governo e a oposição da Plataforma Unitária se desconhecerem mutuamente, o conflito continuará. Hoje, esse reconhecimento está distante. A convocação eleitoral passou ao lado das negociações de Barbados. Uma diferença com 2018 é que o governo aposta no discurso da "paz" e da produção. Maduro retomou os comícios na rua. Mas o chavismo está inquieto. E essa inquietação não vem apenas, ou talvez principalmente, da oposição, mas da própria paciência da população.
Um notável ensaísta venezuelano, Mariano Picón Salas, escreveu em 1946 que o povo venezuelano sempre surpreende. Hoje, Maduro se sente forte no poder e projeta seu mandato até 2030. Veremos se o povo venezuelano dá alguma surpresa desta vez.
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Eleições na Venezuela: o processo acontece por dentro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU