06 Agosto 2024
"Permitam-me dar um conselho a todos os democratas do mundo: o que tentam fazer na Venezuela, se tiverem sucesso, é o que farão em todos os países do continente".
O artigo é de Juan Carlos Monedero, cientista político e professor universitário, em artigo publicado por Publico, 04-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
1. Você se lembra de quando lhe contaram sobre as armas de destruição em massa no Iraque? E quando lhe disseram que Kadafi massacraria um povo inteiro, como justificativa para um possível bombardeio da OTAN? Lembra-se de quando lhe disseram que Lula era um ladrão e o colocaram na cadeia por isso? Lembra das dezenas de acusações contra o Podemos na Espanha? Lembra-se de quando Aznar disse que os atentados a bomba em Atocha eram obra do ETA? Hoje você sabe que tudo isso era mentira. E não poderia ser que agora estivessem mentindo a respeito da Venezuela?
2. Os EUA e a Europa estão perdendo a batalha geopolítica e econômica com o crescimento e a articulação do BRICS, essa organização cada vez mais poderosa composta por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita e outros (a Argentina foi convidada mas recusou, a Venezuela aceitou). A resposta do império decadente, como uma fera ferida, é violenta: e aí temos a ascensão da extrema-direita, as perseguições e as sanções contra países desobedientes, ou diretamente a guerra. Esses não são bons tempos para a democracia. A direita renuncia ao liberalismo. É suficiente ver o lawfare transformado em uma situação cotidiana. Daí a ascensão do fascismo na Europa, a guerra na Ucrânia (que poderia ter sido interrompida dois anos atrás), o genocídio em Gaza, as guerras esquecidas na África, Milei, Bolsonaro, Bukele e, é claro, o ataque à Venezuela pela chamada comunidade internacional.
3. Por que em tantos países a Venezuela é uma questão de política interna e não de política externa?
A esquerda se deixou encurralar com a Venezuela. O papel militar na revolução chavista, o status caribenho e a base eminentemente popular e plebeia incomodam uma esquerda que nem sempre se livra do racismo e do classismo. Mas, além disso, há o fato de a Venezuela ter sido construída como o objeto amaldiçoado a ser execrado. Toda vez que as esquerdas defendem a saúde pública, a educação pública, as empresas estatais, os remédios a baixo custo, o pagamento de impostos pelos ricos ou a soberania nacional em seus países, eles gritam "bolivariano"! E ficam com medo. Até mesmo Trump acusou Biden de ser bolivariano. A direita global deve colocar a Venezuela de joelhos para enviar um aviso à esquerda global: se vocês não obedecerem, nós quebraremos vocês. Assim como a Igreja, que construiu o mito do diabo para que as pessoas a obedecessem, hoje o mito da Venezuela foi construído para que a esquerda assuma o padrão do filho de Vargas Llosa, que diferenciava entre a esquerda vegetariana e a esquerda carnívora. A vegetariana, ou seja, aquela gentil, liberada; a carnívora, leva chumbo. A propósito, conheço muitos vegetarianos que, sozinhos/as, lutam como um exército inteiro.
4. A questão das atas na Venezuela é um roteiro para construir uma mentira. Esse sim, bem construído. Em primeiro lugar, sabotaram o sistema informático do Conselho Eleitoral Nacional com uma invasão cibernética para garantir que não houvesse um resultado oficial. A oposição pôde assim apresentar suas "atas" e alegar que esse era o resultado oficial. É claro que essas atas poderiam ser falsas - hoje já foi provado que muitas daquelas apresentadas pela oposição são falsificações grosseiras - e as que não eram, vieram de áreas onde a oposição realmente venceu. Muito grosseiro. Com os dados de La Moraleja ou do Barrio Salamanca, não é possível prever o resultado da direita na Espanha. Em um negócio, não se faz acertos com aqueles que pagam pouco. E não é justamente a própria oposição que nomeou Guaidó como presidente sem nem sequer ter uma ata? Não pediram votos a Guaidó e foi suficiente se autonomear em uma praça.
5. Não é verdade que María Corina Machado tinha, como disse no início, 40% das atas (embora cada porta-voz tenha dado um valor). Sempre tiveram 100%, porque todas as testemunhas das seções eleitorais receberam uma cópia em cada uma das 30.026 seções eleitorais. Alguns esclarecimentos precisam ser feitos primeiro. O que chamamos de "atas"? É preciso entender o sistema eleitoral venezuelano, que funciona há mais de 20 anos e foi utilizado em 32 eleições. Em muitos países dispomos de urnas físicas nas quais o voto é depositado. No final do dia, as cédulas são contadas e é elaborado um relatório, uma ata, que é assinado pelos membros da seção eleitoral. Na Venezuela, não é assim, porque na Quarta República as fraudes eram constantes. Há um ditado na Venezuela que diz "Acta Mata Voto" (a ata mata o voto), ou seja, a ata que os dois principais partidos forjavam matava o verdadeiro voto que a esquerda tinha (o que também sempre foi a norma no México do PRI e do PAN). Por isso criaram um sistema eletrônico impenetrável, em que o acesso ao sistema só pode ser obtido com chaves eletrônicas das quais todos os partidos têm uma parte. Como na ativação de uma bomba nuclear, ou todas as chaves são usadas ou não vai ser acionada. As urnas de nossos países são as urnas eletrônicas deles: nelas está a verdade do resultado. Na Venezuela, a "ata" é o que sai das urnas eletrônicas e é garantido pelo CNE, e não o que dizem alguns documentos que alguém poderia ter feito com o photoshop. Onde nós temos as atas redigidas no final do dia da eleição, após a contagem das cédulas, elas têm o resultado ditado pela máquina. Um equipamento que foi verificado antes, durante e depois da eleição e que todos os partidos validaram. Preste-se atenção: nenhum partido disse antes das eleições que as urnas eletrônicas não eram adequadas. Porque sabem que são absolutamente confiáveis.
Na Venezuela, de fato, há muitos governadores e prefeitos da oposição eleitos com esse sistema e nomeados pelo Conselho Eleitoral Nacional. No caso da votação eletrônica, a máquina emite um recibo com as informações da seção eleitoral e a opção feita pelo eleitor. Esse recibo é retirado pelo eleitor e depositado diante da seção eleitoral em uma urna. No final do dia, a máquina compila a ata, que é o que conta, o que todas as partes aceitaram e o que foi verificado por todas as partes (caso contrário, não participariam). Essa ata que sai da máquina é assinada por todos os membros da seção eleitoral e pelas testemunhas. É como um longo bilhete com todos os resultados, informações da seção eleitoral e as marcações eletrônicas que não podem ser inventadas de antemão. Todos os membros da seção eleitoral e as testemunhas recebem sua cópia e assinam a que será enviada em um envelope para o CNE. Como se isso não bastasse, as urnas de 55% das seções eleitorais são abertas aleatoriamente, as cédulas são contadas (que não são os votos, lembre-se de que os votos considerados válidos no país são aqueles ditados pela urna eletrônica), outra ata é feita, que, mais uma vez, é assinada por todos os membros da seção eleitoral e colocada no mesmo envelope. Nela, uma terceira ata é adicionado com os eventuais problemas que possam ter ocorrido na votação.
O que tudo isso significa? Que, portanto, todos os partidos não têm 40% das atas, como mentiu María Corina Machado: têm 100%, tanto dos votos da urna quanto dos 55% da contagem dos recibos. A oposição também trapaceou porque mostrou atas que, se não foram falsificadas, provêm apenas de lugares onde venceram. E os locais onde não ganharam? Seria o sonho de todos os partidos: que apenas os votos vencedores fossem contados. Mas isso não seria uma democracia.
6. Acho que o PSUV e os partidos do Grande Polo Patriótico fizeram bem em não se apressar em publicar suas atas. Por quê? Porque então uma guerra de atas teria começado entre os partidos. E, se a oposição falsificou as suas - e lembremos que agora sabemos que esse é o caso -, estouraria uma briga que esconderia o fato de que o único elemento que verifica a verdade das eleições são as atas - o resultado das 30.000 urnas eletrônicas - produzidas pelo CNE. Porque a tentativa de sabotar o sistema eleitoral do CNE tinha o objetivo de garantir que não houvesse dados oficiais e que a oposição dissesse: nós sim, nós temos os dados. Aqui estão as atas. E teriam proclamado Edmundo González como proclamaram Juan Guaidó. O chavismo salvaguardou a institucionalidade, enquanto a oposição, mais uma vez, tentou destruí-la.
7. O artigo 155 da Lei sobre os Processos Eleitorais concede ao CNE um prazo máximo de 30 dias para tornar públicos os resultados de todas as seções eleitorais. Eles sempre fizeram isso e, embora tenham sido atrasados pela invasão de hackers, o farão (é exigido por lei). Espera-se que o façam em breve. Assim, teremos, por exemplo, que na seção X em Petare existem os resultados publicados pelo CNE e as atas que María Corina Machado tem, aquelas que o PSUV e o Polo Patriótico têm, aquelas de todos os outros partidos de oposição, além das que os membros da seção têm.
E todas essas atas devem dizer a mesma coisa, ter a mesma assinatura eletrônica, o mesmo número de eleitores na seção eleitoral, as assinaturas dos membros devem ser idênticas. Então, será possível ver sem dúvida que o que a CNE disse é verdade. Na sexta-feira, a pedido do TSJ, Edmundo González teve a oportunidade de apresentar as assinaturas em sua posse. Ele não o fez. Verifiquei pessoalmente que, em uma das seções eleitorais, a página de Machado, cujas atas eles dizem ter, fez votar uma pessoa morta, irmã de um conhecido. Na sexta-feira, o chefe da campanha, Jorge Rodríguez, demonstrou as inúmeras irregularidades presentes nas atas apresentadas pela oposição.
8. Faz sentido o comunicado de López Obrador, Lula e Petro, ou seja, do México, do Brasil e da Colômbia: que os procedimentos legais sejam seguidos, como em todos os países, e que a institucionalidade seja respeitada (o que é uma forte crítica à oposição), que todos os resultados sejam publicados o mais rápido possível - evitando sabotagem -, seção por seção e voto por voto, e que se tente um diálogo com o candidato Edmundo González e não com a inelegível María Corina Machado. A exigência de publicação dos resultados seção por seção, que intuitivamente é o que muitas pessoas estão pedindo - muitos nunca pediram, nem mesmo em seus países suspeitos de fraude - é o que o CNE sempre fez e fará. Assim como, de acordo com o cronograma, as auditorias municipais serão realizadas esta semana, nas quais o mais importante será verificar com os técnicos do partido se tudo está em ordem nas urnas eletrônicas. Na última fase, 51% das urnas são abertas para verificar se os recibos contidos nas urnas correspondem ao que dizem as máquinas sobre a votação. E o que a oposição golpista faz?
Não vai à apuração quando perde para dizer que houve fraude.
9. Por fim, como Edmundo González - que, insisto, não representa toda a oposição, embora seja a mais importante - ignorou o resultado, o presidente Nicolás Maduro apresentou um requerimento administrativo perante a autoridade competente, o Supremo Tribunal de Justiça, cujo colégio eleitoral impôs algo muito simples: solicitar as atas em poder da oposição, pedir as atas em poder do governo, solicitar o resultado do CNE e fazer uma comparação, bem como informar sobre o suposto ataque hacker sofrido pelo CNE. Hoje sabemos que Edmundo González não compareceu e não entregou as atas que diziam ter (o que, suponho, também seja um crime). Se eles as apresentassem e o que dissessem fosse verdade, ou seja, que suas "atas" correspondem aos dados das urnas eletrônicas, ou seja, que existe uma correspondência com o que os venezuelanos votaram, Edmundo González deveria ser proclamado presidente da Venezuela. Mas se as apresentassem e fossem falsas, estariam cometendo um crime eleitoral, além de ter pago pessoas na tentativa de garantir que na noite das eleições houvesse 100 ou 200 mortes na Venezuela. Porque essa era a segunda parte do plano: que o CNE não pudesse apresentar dados, apresentar os dados da oposição como oficiais e gerar uma situação de caos com muitas mortes.
A inteligência de Maduro foi dizer ao exército, à polícia e ao chavismo para proteger os bens e as pessoas, mas não para reprimir: mesmo que estivessem espancando e matando pessoas, queimando escolas, hospitais, ônibus, não deviam responder com violência. Porque o que a oposição precisava não era apenas que o CNE não funcionasse, mas também que houvesse mortes nas ruas. Fracassou em ambos os casos.
10. À oposição restam as mídias internacionais, as dívidas geopolíticas de muitos países e a ingenuidade de alguns que acreditam nelas. Também a maldade daqueles que querem ignorar o resultado. Foi a OEA que validou o golpe de Estado na Bolívia contra Evo Morales e o Centro Carter, sem Jimmy Carter, perdeu toda sua credibilidade (seria bom observar as eleições nos EUA). Os principais países da UE fizeram, de surpresa, um comunicado muito curto pedindo a publicação dos resultados e o respeito às liberdades civis.
11. A conclusão é que a direita global quer confusão e, para ela, tanto faz um banho de sangue, a anulação da democracia ou a invasão de um país. E digo isso como europeu que, depois de 30 anos, voltou a ter uma guerra na Europa, que está vendo os juízes se comportarem como os juízes do fascismo e que está vendo uma violência crescente incentivada por políticos de extrema direita.
12. A direita venezuelana deve mandar para a lata de lixo da história aqueles que tentam sempre vencer com truques e violência. María Corina Machado está inelegível e sua oportunidade só pode surgir de uma guerra civil. Que é o que ela sempre busca. A oposição tem 5.326.104 votos (contra 6.408.444 de Nicolás Maduro). Chegou a hora de buscar outros canais. Tem votos. A Venezuela carece de uma nova geração de políticos de direita.
13. O Brasil, a Colômbia e o México ficarão do lado dos BRICS e reconhecerão o resultado que o CNE determinará. E poderão fazer isso confortavelmente, pois os resultados serão publicados seção por seção e todas as verificações correspondentes serão realizadas, além do fato de que o Supremo Tribunal emitirá a sua decisão. Os EUA, mesmo com as eleições se realizarão em novembro, terão dificuldade em apoiar Edmundo González como presidente sem provas e contra uma enorme parte da comunidade internacional. Que ninguém se deixe enganar: os EUA estão ficando sozinhos, como nas Nações Unidas na defesa de Israel. Se não conseguiram com Guaidó, muito menos com González.
A União Europeia seguirá a linha dos EUA, perdendo importância internacional? Na Espanha, se formos inteligentes, ficaremos ao lado do México, Colômbia, Brasil e outros, e tentaremos corrigir os enormes erros do reconhecimento de Guaidó e da imposição de sanções injustas à Venezuela (as mesmas que os EUA não permitiram que fossem impostas ao genocida Israel). A declaração conjunta deste sábado da Espanha com a Alemanha, França, Itália, Portugal, Holanda e Polônia poderia seguir em uma nova boa direção.
14. E permitam-me dar um conselho a todos os democratas do mundo: o que tentam fazer na Venezuela, se tiverem sucesso, é o que farão em todos os países do continente (essa é a lição de Aimé Cesaire sobre o que os alemães fizeram na Namíbia e acabaram fazendo em solo alemão e com os alemães). É por isso que a extrema direita apoia Netanyahu e María Corina Machado: querem fazer o mesmo nos nossos países. Portanto, por interesse pessoal, não acreditem nas mentiras desses mentirosos profissionais que só tentam nos confundir. A nossa condição de democratas é medida nos momentos de desafio. E hoje estamos vivendo um desses momentos. Não nos deixemos derrotar.
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14 pontos sobre o que está acontecendo na Venezuela. Artigo de Juan Carlos Monedero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU