28 Junho 2024
O livro Bolsonarismo y extrema derecha global (Tinta Limón) do doutor em filosofia e professor da Universidade de Essex, Rodrigo Nunes, é uma contribuição ao debate atual acerca das novas direitas radicais que merece ser celebrada. Fazendo uma clara distinção entre Jair Bolsonaro e o bolsonarismo como movimento social que extrapola o ex-presidente do Brasil, Nunes faz um tour pelos diferentes elementos que constituem esta gramática da desintegração, assentada na polarização política, no conservadorismo reacionário e no negacionismo científico.
O autor brasileiro, em visita à Argentina para apresentar o seu livro, conversou com a revista Ñ a respeito das semelhanças e diferenças entre o bolsonarismo e o mileísmo, as condições sociais que deram origem à extrema-direita no Brasil e o papel do “batalhas culturais” no cenário político atual.
A entrevista é de Luis Diego Fernández, publicada por Clarín-Revista Ñ, 26-06-2024. A tradução é do Cepat.
Considero interessante a distinção que você faz entre Bolsonaro como político e o bolsonarismo como fenômeno social que extrapola o próprio Bolsonaro. Qual é o processo que dá origem ao bolsonarismo?
A primeira coisa que é necessário distinguir, a partir da campanha presidencial de 2018, é o voto em Bolsonaro da adesão profunda, mais enraizada no tipo de política que ele propunha. Havia um tipo de voto simplesmente de protesto ou por uma mudança que se apresentava como algo novo na política brasileira. Além da crise econômica, lembremos que tínhamos um escândalo de corrupção que envolvia todos os partidos, da esquerda à direita, e a candidatura de Bolsonaro se apresentava como razoável e lógica naquele momento.
No entanto, em 2013, já iniciava um movimento social de fortalecimento e crescimento de uma nova direita diferente da tradicional, que reunia um conjunto de matrizes discursivas disseminadas na sociedade, cujos elementos convergem na campanha presidencial de 2018. É quando adquirem uma identidade e uma liderança política sob a candidatura de Bolsonaro, em condições de representar esta formação social. Penso que aqui, na Argentina, também é possível diferenciar entre um “mileísmo” e o voto em Milei.
Nesta configuração do bolsonarismo, o meu interesse é diferenciá-lo do mileísmo, ao qual você faz menção, por exemplo, no tocante à influência das igrejas evangélicas que aqui, na Argentina, não é tão evidente. Tenho a impressão de que as novas direitas estão unificadas pelo antiprogressismo, mas cada uma tem as suas particularidades. Milei é ultraliberal, mas Trump é mais protecionista. Como você diferenciaria o bolsonarismo de outras extremas-direitas globais?
Milei é mais claramente um ideólogo. Penso que de todos os líderes da nova direita, Milei está mais próximo de Thatcher em termos de fervor ideológico. Bolsonaro é muito mais um oportunista político, por muito tempo foi um protecionista e estadocêntrico, que se tornou ultraliberal porque este é um dos elementos que desempenha um papel importante na construção desta nova identidade coletiva, quando se apresenta como candidato.
Além disso, tenho a impressão de que o elemento ultraliberal é mais forte na identificação com Milei do que com Bolsonaro, ao passo que o conservadorismo social era mais influente no bolsonarismo do que no mileísmo. E nisto, sim, as igrejas evangélicas e também os católicos tiveram um papel muito importante no Brasil.
O conceito de “neoliberalismo desde baixo”, de Verónica Gago, me fez pensar nisto porque ela não se refere ao peso da religião que no Brasil, sim, é central na relação com a teologia da prosperidade de muitas igrejas pentecostais. Aqui, este elemento é menos forte do que no Brasil.
O apelo ao popular está muito presente nessas novas direitas. Em sua avaliação, por que houve uma mutação da direita clássica aristocrática, elitista, que desprezava o povo, para esta direita que, ao contrário, fala ao trabalhador?
Um tema com o qual se lida é a longa duração do neoliberalismo em termos de mudança subjetiva, ponto em que o neoliberalismo consegue uma reprogramação da subjetividade muito além do que talvez imaginássemos no período de hegemonia progressista.
Quando se falava em “empreendedorismo popular”, parecia haver um sentido mais progressista, mas quando as condições econômicas do boom das commodities desapareceram, restou o empreendedorismo sem o popular, sem a ideia de favorecer o crescimento de um mercado interno.
No Brasil, os trabalhadores precários chamam o conjunto de atividades que consiste em um movimento constante entre trabalho formal e informal, entre legal e ilegal de viração, é muito mais um empreendedorismo de sobrevivência.
O modelo arquétipo do eleitor de Milei foi o entregador de aplicativos, o trabalhador “uberizado”. Não sei se no Brasil aconteceu o mesmo com Bolsonaro. A esquerda está incomodada com este novo trabalhador que, inclusive, é crítico aos sindicatos. Qual seria o lugar do progressismo nesse novo contexto, depois do que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” da terceira via até Obama e o presente?
Em 2008, temos uma crise no final deste período de neoliberalismo progressista e é uma pergunta que curiosamente não me fazem no Brasil. Estou dizendo que o governo Lula foi um “neoliberalismo progressista”? Minha resposta é sim. A diferença é que um neoliberalismo progressista teria que ser mais radical nos países periféricos.
A crise do modelo neoliberal surge justamente no momento de hegemonia desta vertente do neoliberalismo progressista e a guinada que a extrema-direita consegue dar, de forma muito hábil, é apresentar esta tendência como a culpada por um processo que vem desde o final dos anos 1970.
Às novas gerações que entraram no mercado de trabalho sem nenhuma perspectiva de trabalho formal é dito que não possuem direitos porque foram concedidos novos direitos às minorias (negros, mulheres, indígenas, gays etc.) e a extrema-direita sabe jogar muito bem com essa confusão entre direitos e privilégios.
Os direitos concedidos a outros são privilégios, são um tratamento especial, ao passo que os direitos que nós perdemos não se deve às mudanças estruturais, mas porque foram transferidos para as minorias, o que supõe uma lógica que envolve disputar as migalhas que serão cada vez menos. É uma ideia que supõe uma guerra de todos contra todos, em uma economia que tem menos probabilidades de oferecer a perspectiva de uma vida boa para a maioria.
O que você descreve supõe um estado de guerra, algo que Milei ressalta o tempo todo em seu discurso, que chama de “batalha cultural”. Como a “batalha cultural” funcionava no bolsonarismo?
Embora fosse um político marginal, Bolsonaro começa a ganhar projeção com uma postura parecida com a de Milei, como um clown. É o tipo que tem a coragem de dizer o que ninguém mais diz, que é convidado para programas de televisão, polêmico e controvertido. A partir daí, Bolsonaro começa um processo de feedback em que descobre o seu nicho político. Uma parte importante disto está no tema LGBT, no pânico moral sobre a educação sexual.
O primeiro grande momento em que é possível ver o início da reorganização da direita (religiosa, evangélica e católica) foi em 2010 com a polêmica do chamado “kit gay”. Foi a primeira vez que Bolsonaro ocupou uma posição de líder no Congresso, montando uma campanha de desinformação sobre o programa de educação sexual que era proposto pelo governo, que ainda não entendia a força política da direita, nem a capilaridade que essas campanhas de fake news atinge através das igrejas. O governo decide recuar e não brigar com a direita, permite a sua vitória neste assunto.
Hoje, qual é o futuro do bolsonarismo, com Lula no poder? É possível que prossiga com outra liderança que não seja o próprio Bolsonaro?
O governo de Lula é de normalização, o que é bem-vindo porque desde 2013 o Brasil vive sob turbulência econômica. Lula é hoje uma das poucas figuras com influência suficiente para normalizar o establishment político e institucional, mas um governo de normalização não me parece suficiente. Lula tem um grande triunfo que é a reforma tributária, mas não sei se é um legado importante para convencer as pessoas de que houve mudanças suficientes que justificam a continuação de Lula e o PT.
Ainda não há um líder evidente que o substitua. Resumo as últimas eleições no Brasil dizendo que o melhor presidente da história do Brasil concorreu contra o pior e venceu por uma margem muito pequena e possivelmente ninguém mais teria vencido. Lula é um líder único, mas não está claro se sairá fortalecido deste governo. Em relação a Bolsonaro, parece-me que não poderá concorrer e, inevitavelmente, acabará na prisão de uma forma ou de outra.
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“Milei é um ideólogo, Bolsonaro é muito mais um oportunista político”. Entrevista com Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU