Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 07 Fevereiro 2024
“Como agir estrategicamente de maneira a potencializar os ganhos de estratégias que, embora diversas, não são necessariamente incompatíveis?” Responder a esta questão a partir de uma concepção de organização política decorrente dos conceitos de Spinoza é uma das propostas de Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política (Ubu, 2023), de Rodrigo Nunes. “O que defendo é que há organização a partir do momento em que indivíduos passam a dedicar uma parte de seu tempo e energia a agir conjuntamente, por mais transitórios e menos conscientes que sejam os padrões de organização que essa ação conjunta assume”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador discorre sobre a organização social no Brasil à luz de Junho de 2013, suas transformações e implicações na cena política ao longo da última década e seus desafios na atual conjuntura política, em que a esquerda está novamente no poder Executivo. “A lição que Junho de 2013 pode nos dar não é que os movimentos não devem pressionar governos, ou que protestos só são bons quando enquadrados por limites muito claros, ou que não deve ter explosões sociais diversas, plurais”, pontua. Ele também critica a tese de que não deve haver pressão social porque a esquerda está no governo. “Isso me parece desastroso para a conjuntura em que estamos porque se, de um lado, o fato de o governo Bolsonaro ter sido tão ruim facilita um pouco a vida do governo Lula, sob outros diversos aspectos a margem de manobra é muito menor do que há vinte anos”.
Para ele, “a mobilização e a organização social seguem sendo importantíssimas, mesmo (ou especialmente) quando é a esquerda que está no poder; que, por uma série de condições objetivas e subjetivas dadas hoje, grandes explosões sociais como Junho são mais e não menos prováveis no futuro; e que precisamos, portanto, estar melhor preparados para elas”.
Rodrigo Nunes (Foto: Arquivo pessoal)
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pela Goldsmiths, University of London. É professor de teoria política na University of Essex, no Reino Unido, e professor associado do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, onde leciona desde 2013. Entre suas publicações, destacam-se: The Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks (Mute/PML Books, 2014) e Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição (Ubu, 2022).
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 27-10-2023.
IHU – Em seu livro “Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política”, você defende que a organização política deve ser entendida no interior de uma ecologia diversa. Eu gostaria que você recuperasse esta tese e analisasse como esta ecologia diversa se manifesta hoje.
Rodrigo Nunes – Há três caminhos pelos quais chego a essa ideia da organização como ecologia. O primeiro deles é um caminho teórico. Uma das coisas que estou combatendo no livro é a ideia, que durante muito tempo acompanhou o debate sobre a organização, de que a questão da organização seria uma tentativa de responder à pergunta: “qual é a forma ideal de organização?”
Combato essa ideia em dois níveis. Em primeiro lugar, não existe forma ideal de organização em abstrato; existem diferentes formas que são mais ou menos adequadas a diferentes fins. Há diferentes propósitos pelos quais as pessoas se organizam, em diferentes contextos e em torno de diferentes formas de ação política, e todas as formas organizacionais são potencialmente boas se servem aos fins que as pessoas estão perseguindo nas circunstâncias em que se encontram e segundo os meios e os recursos que elas têm à disposição. Fins, meios, recursos, circunstâncias e modos de ação variam, e a organização pode e deve variar junto com eles.
Mas há outra coisa implícita na ideia de que a questão da organização buscaria uma forma ideal, que é a suposição do nível em que se coloca o problema da organização, isto é, o das organizações individuais: qual tipo de organização devemos todos ter ou, no limite, a qual tipo de organização deveríamos todos pertencer? Acontece que sabemos, empiricamente, que não só existe sempre mais de uma organização, como também que há várias coisas que podem ser descritas como organização política, que nem sequer se definiriam como sendo organizações. Uma teoria precisa dar conta dessa pluralidade e equivocidade da organização política, o fato de que ela se apresenta em diferentes formas e graus de estabilização.
O segundo caminho para chegar à ideia de organização como ecologia é prático, e parte da observação de que essa pluralidade sempre existiu. Mesmo quando analisamos momentos que são tidos como grande sucesso de uma forma vertical e unificada de organização, como a Revolução Russa, percebemos que, na verdade, nunca foi exatamente assim que as coisas aconteceram. Durante muito tempo o partido bolchevique não tinha nenhum controle sobre o que acontecia no campo, por exemplo, e a Rússia era um país essencialmente rural. A ideia de que aquele tenha sido um movimento monolítico e organizado a partir de cima é uma projeção retrospectiva produzida pela posterior unificação do aparato estatal e militar sob o controle do partido.
O que este exemplo indica é que grandes transformações históricas sempre envolvem uma pluralidade de formas e graus de organização, isto é, uma ecologia – embora essa ecologia possa se apresentar em determinados casos e momentos como mais ou menos centralizada em torno de um partido, sindicato ou alguma outra estrutura hegemônica.
(Foto: Reprodução)
Em resumo, nunca existe algo totalmente centralizado ou descentralizado, mas sempre uma pluralidade de atores e núcleos organizativos que podem se apresentar de maneira mais ou menos centralizada, isto é, mais ou menos submetidos a um ou alguns poucos polos hegemônicos. No Brasil, há uma hegemonia, que é a do PT, mas na maioria dos países hoje não há partidos, sindicatos ou movimentos sociais que cumpram essa função hegemônica. Em geral, no nosso tempo apresenta cenários que tendem mais à descentralização e à fragmentação.
O que sobra, então, em um cenário assim? Sobra a possibilidade de se fazer outro tipo de pergunta que não “qual é a forma organizacional ideal?” ou “qual é a única estratégia correta?” Perguntas como: de que maneira funções que no passado eram esperadas de uma única estrutura organizacional (normalmente o partido) podem ser distribuídas entre diferentes estruturas no interior das ecologias efetivamente existentes? De que modo integrar melhor as ecologias efetivamente existentes para que suas diferentes partes sejam capazes de juntas exercerem diferentes funções em prol não de uma estratégia ou organização específica, mas daquilo que é consenso suficiente entre todo mundo? Como agir estrategicamente de maneira a potencializar os ganhos de estratégias que, embora diversas, não são necessariamente incompatíveis? Esse é o tipo de questão que proponho no livro.
O terceiro caminho pelo qual chego à ideia de organização como ecologia é simples: já existe uma quantidade crescente de pessoas pensando nesses termos. Desde a década passada, “ecologia” vem se tornando uma espécie de conceito nativo de vários movimentos ao redor do mundo, por exemplo na Espanha, nos EUA e no Reino Unido – mas também no Brasil, onde ouvimos falar bastante do “ecossistema comunicacional” da esquerda durante o governo Bolsonaro.
Apontar isso equivale a dizer que as condições de pensabilidade deste livro coincidem com suas condições de receptibilidade: se muita gente pode lê-lo e identificar-se com o seu conteúdo, como tem acontecido desde que ele saiu em inglês há dois anos e como espero que continue acontecendo no Brasil, é porque ele está, em larga medida, tentando apresentar as conclusões de um processo de aprendizado pelo qual vários movimentos antissistêmicos passaram nas duas últimas décadas. Ao fazer um balanço desse período, muito do que estou tentando fazer é sistematizar algo que vem sendo aprendido e pensado por muitas pessoas mundo afora, dando apenas uma forma teórica mais sistemática e organizada para isso.
IHU – A partir do que você tem posto aqui, o início deste pensamento não se conecta com a ideia de que tudo é política, mesmo ainda antes da formulação clara da ideia de política? Não poderíamos pensar em organização no sentido mais amplo, não somente sindicatos e partidos políticos, mas também associações de bairros, condomínios, profissionais domésticos ou que não têm uma organização sindical constituída, movimentos estudantis etc.?
Rodrigo Nunes – Sim, totalmente. Com efeito, outra suposição usualmente aceita que contesto no livro é a ideia de que a organização política seria, de alguma maneira, rara, que ela só ocorreria a partir do momento em que as pessoas, deliberadamente, escolhem adotar uma determinada forma organizacional ou, na sua versão extrema, que ela só existe de fato quando há o partido. O que defendo é que há organização a partir do momento em que indivíduos passam a dedicar uma parte de seu tempo e energia a agir conjuntamente, por mais transitórios e menos conscientes que sejam os padrões de organização que essa ação conjunta assume. Duas conclusões seguem-se daí. Primeiro, que a espontaneidade não é o contrário da organização, mas o ponto de emergência desta. Segundo, que a organização é algo que se apresenta num espectro que vai dos padrões mais transitórios e informais até as formas mais permanentes e deliberadamente estruturadas.
Dito isso, tenho apenas um problema com a ideia de que “tudo é político”, que é o fato de ela frequentemente ser usada de um jeito que acaba por obscurecer a importância da escala para a política. Afinal, se todo ato é político, qualquer ação de qualquer indivíduo a partir de qualquer posição seria tão política e, portanto, tão transformadora quanto qualquer outra. O problema é que, embora muitas vezes sejamos capazes de modificar a maneira como as relações de poder se expressam nesta ou naquela interação em que estamos envolvidos, modificar o padrão geral de organização dessas relações exige ação numa escala superior àquela do indivíduo. Dito de outro modo, que cada indivíduo possa experimentar a opressão de raça, de gênero, de classe etc. nas suas interações, e a partir daí politizar as relações em que está inserido, não se segue que cada indivíduo, agindo isoladamente, seja capaz de modificar essas relações.
IHU – É preciso uma associação política, seja ela qual for, agindo não como sujeito, mas como corpos coletivos?
Rodrigo Nunes – O modo como defino a organização política parte da ideia, que encontramos em Spinoza, de que cada ente é dotado de uma potência de agir, mas que a potência de agir de cada ente é infinitamente superada pela potência do mundo ao nosso redor. Diversas coisas a nossa volta podem muito mais do que nós e, evidentemente, a natureza como um todo, nos termos de Spinoza, pode infinitamente mais do que nós.
Se existe uma série de coisas que excedem nossa capacidade de agir, como respondemos a isso? Juntando nossa potência de agir à potência de agir de outros indivíduos, constituindo uma potência coletiva de agir. Isso é necessário justamente para operar passagens de escala. Por exemplo, se sou uma pessoa negra que sofre racismo por parte de um colega de trabalho, posso fazer com que este indivíduo aprenda a me respeitar. Mas, sozinho, não vou conseguir com que o mercado de trabalho pare de discriminar pessoas negras; vou precisar me associar a outros indivíduos para isso. Isto não significa que não haja um papel político a ser exercido pelas mudanças de sensibilidade e comportamento individual; com efeito, só pode haver ação coletiva se essas mudanças já estão ocorrendo. Mas, em geral, as transformações no comportamento individual agregado sempre dependerão, mais cedo ou mais tarde, da ação coletiva para vencer obstáculos e se propagar.
IHU – Quais são suas referências teóricas nesta elaboração da ideia de organização política enquanto ecologia diversa? Como concebe a ideia de ecologia?
Rodrigo Nunes – No livro, faço um percurso de 1960 para cá para mostrar como a ideia de ecologia já está suposta em discussões que começam a ocorrer desde aquele momento, que é justamente quando muita gente passa a enxergar os limites daquilo que o modelo organizativo associado ao socialismo real havia sido capaz de constituir. Basicamente, a constatação é que a centralização de cima para baixo fora eficaz no sentido de erigir um outro sistema, mas este sistema cada vez mais divergia daquele que se pretendera criar, e essa divergência era, em grande medida, consequência precisamente de seu alto grau de centralização.
Em Maio de 1968, entre a chamada New Left dos anos 60, mas também em alguns movimentos na América Latina – como o especifismo uruguaio, que é um misto de anarquismo e leninismo –, vê-se a retomada de algo que Pierre Clastres identificara entre as sociedades indígenas: uma espécie de compreensão intuitiva de que o grau de centralização de uma sociedade, ecologia ou rede deve ser mantido sob controle. Há um limiar de centralização que, uma vez cruzado, torna esse controle a partir de baixo praticamente impossível.
A ideia de uma organização em rede ou de uma ecologia, em que diferentes partes cooperam de maneira direta e indireta para produzir um fim comum, começa a aparecer em diversos autores e movimentos ao longo da década de 1970. Em Foucault e Deleuze, esta ideia aparece de maneira explícita. No movimento da Autonomia Operária, na Itália do fim da década de 1970, esta discussão acontece em torno do conceito de “área”: a “área do movimento” é diversa, uma pluralidade de partes mais ou menos organizadas, com alguns núcleos organizativos mais fortes, porém as pessoas podem participar da área sem necessariamente pertencerem a qualquer organização, e não existe nenhum nó central.
É algo muito semelhante àquilo que se entende como “ecologia” hoje. Esta ideia reaparece de maneira muito forte na virada do século em torno do movimento altermundialista, aquilo que então se chamava de “movimento de movimentos”. Ali está posto, mesmo que de maneira pouco clara e tateante, o desafio de pensar a organização como uma ecologia, isto é, algo que não é nem um organismo nem uma organização.
O que tento fazer no livro é tirar uma série de consequências desta ideia a partir de referências muito diversas, que vão de Spinoza à cibernética, passando por um bolchevique que foi pioneiro da Teoria dos Sistemas, Aleksandr Bogdanov. Mas acredito que ainda há bastante trabalho a ser feito para pensar a relação entre esse uso do termo na política e o conceito propriamente biológico, ou ecológico, de ecologia. Trata-se unicamente de uma analogia ou podemos identificar mecanismos e dinâmicas comuns? Se é só uma analogia, quais seus limites?
IHU – O que diferencia os conceitos de “auto-organização” e “autogestão”, trabalhados no livro? Por que é importante ter clareza nestes conceitos para analisar, por exemplo, movimentos como o de Junho de 2013 no Brasil?
Rodrigo Nunes – Esta distinção é chave para uma das críticas que o livro faz ao horizontalismo. Em primeiro lugar, distingo horizontalismo de horizontalidade. Esta última corresponde àquilo de que falávamos há pouco: é a constatação de que não se podem deixar os diferenciais de poder no interior de uma ecologia variarem ao ponto de ultrapassar um limiar a partir do qual as relações se tornam demasiadamente não recíprocas e, portanto, tendencialmente autoritárias. Trata-se de uma demanda inteiramente legítima e necessária pelo máximo de reciprocidade possível das relações políticas numa situação concreta, pela manutenção da não reciprocidade sob controle.
Horizontalismo, por sua vez, seria a ideia de que não só seria possível chegar a uma reciprocidade absoluta, como seria possível fazê-lo desde já, e que atingir este estado seria o fim mais elevado da ação política. Essa crença, me parece, leva fatalmente a uma necessidade de sistematicamente mistificar a própria prática e, por fim, a uma paralisia. Se me dou como objetivo um ideal inalcançável, preciso disfarçar todos os modos como aquilo que efetivamente faço não corresponde a ele; mas se a realidade acaba ficando sempre aquém do ideal, é a própria ação que vai se tornando suspeita, e tomar qualquer decisão se torna cada vez mais difícil.
Minha crítica aqui consiste essencialmente em dizer: o problema não está na realidade, mas no ideal. Dizer que a organização não é “nem vertical nem horizontal” significa dizer, entre outras coisas, que horizontalismo puro ou verticalismo puro nunca existem na prática, e a demanda por pureza é não só irreal como um obstáculo. As coisas funcionam porque são impuras, portanto, é um erro querer purificá-las – o que não quer dizer que todas as impurezas se equivalham. Daí justamente que o livro proponha: horizontalidade sem horizontalismo.
Mas há uma outra crítica ao horizontalismo que tem a ver com a distinção entre autogestão e auto-organização. Dito sucintamente: a autogestão existe no interior de ordens deliberadamente constituídas, em que há mecanismos definidos de tomada de decisão; a auto-organização se refere a ordens espontâneas, em que estes mecanismos inexistem. Tomemos o exemplo do chamado “movimento das praças” da década passada, do qual se dizia que era horizontal, sem líderes e organizado através de assembleias. Há uma assembleia aqui, outra ali, outra acolá; cada uma delas é uma ordem constituída, que um grupo de pessoas decidiu criar segundo certos critérios. Mas que relação existe entre as diferentes assembleias? Essa organização não é ela mesma uma ordem constituída, porque não há a assembleia de todas as assembleias ou um organograma do movimento. Trata-se de uma ordem espontânea, e ela funciona de uma maneira que é qualitativamente distinta de uma ordem constituída.
Entender essa diferença é fundamental para entender que não se pode generalizar o modo como funciona a autogestão no interior de uma ordem constituída para a ordem espontânea que a engloba. Se tentarmos pensar a auto-organização por analogia com a autogestão, estaremos não só falsificando seu real funcionamento como também produzindo uma série de paradoxos intratáveis. Por exemplo, a legitimidade funciona de maneira diferente em cada tipo de ordem. Numa ordem constituída, em que há fronteiras e procedimentos mais ou menos definidos, a legitimidade está na origem: uma decisão é legítima se ouve quem deve ser ouvido e segue os mecanismos adequados. Mas numa ordem espontânea estas condições inexistem, então das duas uma: ou aceitamos que a legitimidade só ocorre no fim (no fato de que uma decisão tomada sem mandato prévio seja ou não seguida) ou chegaremos a conclusões paradoxais do tipo: se uma assembleia é a única fonte legítima de decisões, a decisão de criar uma assembleia é ela mesma ilegítima.
IHU – Como podemos compreender Junho de 2013 a partir desta perspectiva? Podemos pensá-lo como uma grande onda de auto-organização que não chegou a se constituir como autogestão?
Rodrigo Nunes – Seria uma maneira de dizê-lo. Uma consequência importante de pensar a organização como ecologia é que isso acaba com qualquer oposição simples entre o uno e o múltiplo, unidade e dispersão. O que aprendemos pensando estas questões a partir da física e da biologia é que um sistema nunca é totalmente unificado nem totalmente disperso: tudo é distribuído, mas o distribuído se apresenta sempre em graus de maior ou menor centralização e descentralização.
O estado ideal para uma ecologia é uma situação em que ela não esteja nem tão centralizada, que um nó unilateralmente domine todos os outros, nem tão descentralizada, que nada de maior monta possa acontecer porque a comunicação entre os diferentes nós é muito baixa. Mas isto não designa um único ponto ótimo, e sim todo um espectro de combinações possíveis. Entre o tão descentralizado que nada acontece e o tão centralizado que não pode haver reciprocidade existe uma gama muito grande de possibilidades; a questão é explorá-las. Resumindo: não se trata de não ter nenhum centro, mas de saber ser policêntrico e, mesmo assim, funcionar.
Junho de 2013 é uma explosão cujo rastilho foi aceso por alguns nós relativamente pequenos e isolados: o Movimento Passe Livre em São Paulo, o Bloco de Luta pelo Transporte Público em Porto Alegre, os Comitês Populares da Copa em algumas cidades Brasil afora. O que a explosão faz é constituir uma ecologia: ela atrai muito mais gente, conecta estes diferentes núcleos organizativos já existentes, faz com que outros núcleos comecem a se formar. Num primeiro momento, esta ecologia é policêntrica, mas ela não é excessivamente descentralizada: estes núcleos organizativos ainda são capazes de apontar direções, de estruturar a ação coletiva, de enervar aquela onda de mobilização que vai se levantando.
Se compararmos o caso brasileiro com o espanhol, veremos que, neste último, o que ocorre após a explosão é um processo de formação de novos núcleos organizativos que, em seu tamanho e em sua proliferação, acompanham o crescimento da ecologia. Por um lado, surgem espaços autogestionados que congregam uma grande quantidade de pessoas: as praças ocupadas, as assembleias, por outro, campanhas para defender as pessoas ameaçadas por despejos, para responsabilizar bancos e políticos responsáveis pela crise financeira etc. Já no Brasil, é importante lembrar sempre que algo de muito singular acontece depois da explosão inicial: dentro do ciclo de protestos da década passada, somos o único país em que a imprensa decide que não só não vai condenar os protestos e clamar por sua repressão, ela vai, ao contrário, convocá-los.
IHU – A imprensa vai enquadrar as demandas?
Rodrigo Nunes – Nas duas últimas semanas de junho, a maior parte da grande massa de pessoas que vai às ruas já não está sendo convocada pelo Movimento do Passe Livre, pelo Bloco de Lutas etc., mas pela imprensa. Porque esta tem um poder muito maior de pautar a discussão, de definir o que está acontecendo. Então muita gente que não é nem de esquerda nem de direita, que quer entender o que está acontecendo, se envolve entendendo que se trata de um movimento contra a corrupção, pela autonomia do Ministério Público etc. E, como sabemos, a direita também participa em alguns lugares, enxergando nesse enquadramento do que está ocorrendo uma oportunidade de desestabilizar o governo.
O influxo de novas pessoas e a competição da mídia corporativa neste momento superam em muito a capacidade daqueles núcleos organizativos iniciais de orientar a ecologia. Diante da pressão que isso cria, muitos destes começam a implodir. Eles ainda serão importantes em julho e agosto, quando há um refluxo das grandes multidões do fim de junho e eles conseguem retomar a direção do processo durante a onda de ocupação de Câmaras de Vereadores que ocorre em todo país – essa, aliás, é uma daquelas coisas que quase todo mundo esquece quando fala de Junho de 2013. Mas em geral a tendência é que, justamente à medida que a ecologia se expande, os núcleos capazes de organizá-la desaparecem ou perdem capacidade estratégica, o que significa que a ecologia vai se tornando mais descentralizada, logo menos organizada, cada vez mais formada por indivíduos soltos.
IHU – A falta de núcleos organizativos neste momento seria o ponto nevrálgico que faz com que a esquerda institucional não consiga compreender Junho de 2013?
Rodrigo Nunes – É parte do problema, mas não é tudo. Houve momentos em que estes núcleos estavam presentes e teria podido haver diálogo, mas há dificuldades de ambas as partes. A esquerda institucional espera que haja uma direção do movimento com quem negociar, e isso não existe. Já do outro lado não havia nem sequer a linguagem que permitisse pensar o tipo de liderança que estes núcleos organizativos eram chamados a cumprir naquele momento, nem um modelo para pensar como consolidar ganhos da mobilização – por exemplo, em torno da questão do transporte – sem que isso implicasse necessariamente pacificação ou cooptação.
Uma coisa que aponto no livro é que, nessas horas, “verticalistas” e “horizontalistas” costumam estar implicitamente de acordo, justamente porque não há uma linguagem para pensar como fenômenos tais como liderança, legitimidade, estratégia etc. podem se manifestar de outra maneira que não a “vertical”. No fim, todo mundo parece concordar que ou há uma direção escolhida para negociar, ou não há nada. A única diferença é que alguns veem essa como uma condição negativa e outros, como positiva.
O resultado é que, durante um tempo, os protestos funcionam como uma bateria que acumula energia, mas não tem onde descarregar. É aí que a imprensa e a direita enxergam uma oportunidade de orientar essa energia, de apontá-la contra o governo. E a partir do momento em que estes entram em campo, começa uma operação de pinça contra aqueles núcleos organizativos iniciais e os setores que eles mobilizavam. Por um lado, a imprensa afirma que aquele é um protesto legítimo de “pessoas comuns” cansadas de “tudo que está aí” e é preciso isolar os “vândalos” no meio, por outro lado, a esquerda institucional afirma que na verdade é a direita que está nas ruas.
Ou seja, ambos colaboram para escantear a esquerda não alinhada e aqueles núcleos organizativos iniciais – e, assim fazendo, contribuem para entregar o protagonismo e o legado do processo à direita. E por que a esquerda institucional faz a escolha, tão estranha, de empurrar o maior movimento de massas do país desde as Diretas para o colo da direita? Porque ela acredita que com as cúpulas da direita ela ainda é capaz de se entender, e é só aquela esquerda impertinente que está protestando que atrapalha esse entendimento. Ela ainda não enxerga que o jogo mudou e agora há uma ecologia de direita se formando para além dos partidos tradicionais.
E com essa ecologia de direita, que também eclode nesse período, o que acontece? O processo inverso: enquanto a esquerda se esgarça e se desestrutura, a direita ganha estrutura, e é a partir do fim de 2013 que começam a se organizar núcleos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra Rua, Revoltados Online. A diferença é que a direita institucional, em vez de rechaçá-los, os corteja, porque vê neles a possibilidade de alcançar algo com que há tempos sonhava: uma base mobilizada, um movimento de rua. E, de fato, esses núcleos teriam, dali dois anos, um papel fundamental na constituição de uma base mobilizada em favor do impeachment. Em seguida, eles mesmos seriam parcialmente superados por um verdadeiro boom daquilo que chamo de “empreendedores políticos”, agentes livres que usam as redes digitais para constituir zonas de influência política que são constantemente instrumentalizadas como oportunidades de negócios.
Aqui é preciso observar que esta organização, que funcionou bastante bem para a direita, está longe de ser monolítica ou centralizada. A direita foi bem-sucedida não porque não fosse uma rede ou ecologia, mas porque, além dos fatores que teve a seu favor – recursos, interlocução institucional, apoio midiático, não estar sujeita à repressão –, sua rede ou ecologia estava configurada de uma maneira mais propícia a produzir resultados.
IHU – Como avalia o atual momento? Não se soube fazer a interlocução no passado, mas hoje como essa experiência se ressignifica? Essa interlocução muda ou não na atual conjuntura de um governo do PT?
Rodrigo Nunes – Publiquei um texto recentemente em que sugeria que a pior coisa que poderíamos fazer diante das experiências da década passada seria tirar duas conclusões opostas.
A primeira, que muitos veem como tendo sido confirmada em 2013 porque na verdade já pensavam assim antes, é que se a esquerda está no governo, não deve haver nenhum movimento ou pressão social, mas antes apoio incondicional, porque o governo está lá para negociar em nosso nome e só a ele cabe decidir o que é melhor. Isso me parece desastroso para a conjuntura em que estamos porque se, de um lado, o fato de o governo Bolsonaro ter sido tão ruim facilita um pouco a vida do governo Lula, sob outros diversos aspectos a margem de manobra é muito menor do que há vinte anos.
A extrema-direita está no Congresso, a direita não vai deixar de flertar com ela; o poder econômico, social e político da indústria extrativa é cada vez maior. Quando as condições em que se negocia são tão desfavoráveis, dar carta branca aos negociadores em geral significa resignar-se a resultados cada vez piores. Em circunstâncias assim, é preciso trabalhar para modificar as circunstâncias no interior das quais se negocia, e para isso é preciso organização e mobilização social para colocar as forças contrárias na defensiva. Se não agimos por medo de “fazer o jogo da direita”, quem se beneficia é, no fim das contas, a própria direita.
A segunda conclusão ruim seria que Junho de 2013 teria provado que não tem jeito, os governos ditos de esquerda sempre vão trair os movimentos, essa é a única relação possível entre movimentos e instituições, logo não há que ter relação nenhuma. A questão aqui não é que esse tipo de traição não tenha se verificado várias vezes ao longo da história. Sem dúvida, isso é verdade; o problema é se realmente podemos acreditar que é possível não ter relação alguma com as instituições.
Meu argumento aqui é o seguinte. Podemos conceber a transformação social como um problema de velocidade relativa: é preciso que as relações sociais mudem mais rapidamente do que a ordem existente é capaz de absorver, cooptar ou reprimir essas mudanças. Diante disso, a resposta parece óbvia: mudar o mais rápido possível, mudar tudo de uma vez. É por isso que alguns apostam na insurreição, na greve geral soreliana; outros, numa revolução para tomar o aparelho de Estado, que seria uma alavanca a partir da qual acelerar a modificação das relações sociais. Em todos os casos, porém, é do mesmo problema que se trata, e da mesma maneira de resolvê-lo.
Qual é, contudo, a dificuldade? É que uma mudança tão veloz exige condições muito difíceis de obter: uma enorme energia social acumulada, um alto grau de clareza sobre a direção em que se mover, uma ordem social que não se mantém mais de pé. Propriamente falando, talvez possamos dizer que condições assim nunca estiveram efetivamente dadas. O que resta então? Uma transformação social que não acontece toda de uma vez. Note-se que isto não tem nada a ver com a distinção entre reforma e revolução. O que estou dizendo é que, quer seus agentes se definam como revolucionários ou reformistas, quer sejam eles mais ou menos radicais ou avancem mais rápido ou devagar, um processo de transformação social na prática sempre envolverá momentos de dinamismo e de estase, de ataque e de defesa, de ruptura e de negociação, de conquista e consolidação das posições conquistadas. Nesses instantes de pausa, a mediação com as instituições existentes ou a constituição de algum tipo de institucionalidade nova são inevitáveis.
Mas e o risco de cooptação e derrota? Ele está sempre lá: você sempre pode acabar descobrindo que foi lento demais para romper com as relações existentes, que negociou demais, que acabou sendo absorvido. A pergunta é se existe outra escolha senão correr esse risco – e me parece que, salvo condições realmente excepcionais, a resposta é negativa.
A lição que Junho de 2013 pode nos dar não é que os movimentos não devem pressionar governos, ou que protestos só são bons quando enquadrados por limites muito claros, ou que não deve ter explosões sociais diversas, plurais. Nem é a lição de que não houve erros, que Junho de 2013 estava no caminho certo e só não foi vitorioso porque foi traído pelo PT. Ela me parece ser, antes, que a mobilização e a organização social seguem sendo importantíssimas, mesmo (ou especialmente) quando é a esquerda que está no poder; que, por uma série de condições objetivas e subjetivas dadas hoje, grandes explosões sociais como Junho de 2013 são mais – e não menos – prováveis no futuro; e que precisamos, portanto, estar melhor preparados para elas.
Não no sentido de que o erro da década passada teria sido ser “horizontal”, e que no futuro deva-se ser o mais “vertical” possível – uma das coisas que tento explicar e desarmar no livro a partir do conceito de “melancolia(s) de esquerda” é precisamente essa tendência a raciocinar sempre de modo a concluir que se A não funcionou, a alternativa correta deve ser não-A (em vez de B, C, D...). Volto àquela ideia de que a escolha nunca é entre o puramente vertical e o puramente horizontal, o puramente centralizado ou o puramente descentralizado; não porque devemos combinar “coisas boas de ambos os lados”, mas simplesmente porque o puro nunca é dado na prática. A escolha não é entre o puramente isso ou o puramente aquilo, mas entre um espectro inteiro de configurações possíveis que estão entre um extremo e outro. Se uma dessas configurações não funcionou, não significa que não haja várias outras que não possam funcionar.
Para isso, porém, é preciso estar disposto a fazer um exame crítico das experiências recentes. É preciso passar em revista a “filosofia espontânea” da transformação social dominante nas últimas décadas e perguntar o que, na sua maneira de conceber a organização e a transformação social, ainda nos serve e o que deixou de servir. Como podemos continuar colocando os mesmos problemas – a necessidade de uma transformação econômica, a necessidade de reciprocidade nas relações políticas – sem chegar aos mesmos becos sem saída teóricos e práticos?
Como, por outro lado, retomar temas legados pela tradição (liderança, disciplina, hegemonia, que em dado momento se acreditou estarem inteiramente ultrapassados) e ser capaz de entender os problemas reais que eles colocam, mas pensá-los sobre novas bases, sem repetir as respostas do passado? É aí que entra a contribuição que espero que meu livro possa dar.
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Nem horizontal nem vertical: a organização política como ecologia diversa. Entrevista especial com Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU