O frágil equilíbrio de nosso planeta e o imperativo de uma conexão entre tecnologia e ética. Entrevista especial com Jelson Oliveira

Reflexões suscitadas pelo livro ‘Frágil equilíbrio: justiça climática e responsabilidade’ comprovam a urgência de responsabilidade, ações concretas e uma mudança de paradigma civilizacional antropocêntrico, tendo a filosofia de Hans Jonas como bússola

Foto: Pixabay

Por: Márcia Junges | 11 Agosto 2025

Uma filosofia séria não pode fechar os olhos para o modelo civilizatório que gestou as mudanças climáticas em curso, bem como as “terríveis desigualdades sociais que mantêm milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade ambiental ao redor do mundo”. A afirmação é do filósofo Jelson Oliveira nesta entrevista exclusiva concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Fundamentado no pensamento de Hans Jonas, o pesquisador frisa que a responsabilidade pelo “frágil equilíbrio” é coletiva e exige o envolvimento de todos, embora alguns devam fazê-lo mais: “é aí que entra a questão da discrepância de responsabilidades. Quem tem sujado historicamente o planeta deve se empenhar mais para limpá-lo; quem não tem condições dignas de sobrevivência deve ter o direito de alcançar uma situação de vida digna, enquanto os abastados devem optar pelo decrescimento econômico, em benefício de todas as formas de vida”. 

Jelson Oliveira adverte que é imprescindível um balizamento ético à tecnologia: sem tecnofobia, mas também sem aquela tecnofilia ingênua, com “freios voluntários” que ajudem a interpor rédeas éticas a fim de dar uma orientação ponderada ao avanço tecnológico. E é justamente nesse aspecto que a ética jonasiana se reafirma como “atual e urgente”. As reflexões brotam do lançamento da obra Frágil equilíbrio: justiça climática e responsabilidade, escrita por Jelson Oliveira, Grégori de Souza, Lucas Miguel Bugalski e Thiago Vasconcelos, com lançamento na sexta-feira, 8 de agosto, resultado das pesquisas desenvolvidas no âmbito da linha de Ética e Filosofia Política do PPG em Filosofia da PUCPR, do GT Hans Jonas da ANPOF e do Centro Hans Jonas Brasil. “Esse livro também se alia a esse apelo de resistência e subversão da ordem atual das coisas, em vista de um novo tipo de amor, um sentimento revolucionário que deve nos animar no cotidiano de nossas vidas”, acrescenta. Frágil equilíbrio: justiça climática e responsabilidade será lançado também na COP30, em Belém, com epílogo de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Editado com o selo da EDUCS e da Coleção Filosofia Contemporânea, o livro convida à reflexão e à ação, na medida em que busca juntar os temas da responsabilidade ambiental, tal como propostos pelo filósofo alemão Hans Jonas, à justiça climática, explorando como podemos e devemos enfrentar a emergência planetária de forma ética, inclusiva e transformadora.  

No contexto da realização da COP30, em Belém do Pará, Jelson observa que “Belém é o retrato do Brasil. Linda por fora, cheia de vida e exuberância; mas miserável por dentro, desigual e suja em vários lugares”. É fundamental que a voz das vítimas ambientais seja ouvida pelos tomadores de decisões, caso contrário eles “continuarão insensíveis, desfilando em suas caravanas à prova de bala, pagando altos preços de aluguel e comendo em bons restaurantes, servidos pelos mesmos pobres que eles pretensamente defendem. E que são as primeiras vítimas de sua incompetência diplomática”. Pêndulo entre o temor e a esperança, a COP30 é de quem, afinal?

Jelson Oliveira (Foto: PUCPR)

Jelson Oliveira é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), onde também cursou especializações em sociologia política e gestão e liderança universitária e o mestrado em Filosofia. É doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) com a tese Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Docente na PUCPR, é membro do Grupo de Pesquisa Hans Jonas do CNPq, coordenador do GT Hans Jonas, membro do GT de Filosofia da tecnologia e da técnica e do GT Nietzsche da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF).

É diretor fundador da Cátedra Hans Jonas da PUCPR, criada em 2020 e autor de inúmeras obras, entre elas Ética e tecnologia: ensaios sobre Levinas, técnica e Leibniz (Instituto Quero Saber, 2024), Moeda sem efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso (Kotter Editorial, 2023) e Filosofia da tecnologia: seus autores e seus problemas – Vol. 2 (EDUCS, 2022). Em 24-06-25, ele ministrou na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) a conferência Justiça Climática e Responsabilidade Ecológica, dentro da programação do III Simpósio Internacional de Ética, Política e Direito – Justiça ambiental e crise climática: dilemas ético-políticos do antropoceno, organizado pela Filosofia Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU – O que é esse “frágil equilíbrio” que nomeia a obra que você lança com os colegas Grégori de Souza, Lucas Miguel Bugalski e Thiago Vasconcelos? 

Jelson Oliveira – O título do nosso livro faz referência a uma posição de Hans Jonas (1) sobre a nova obrigação do ser humano diante da biosfera, um dever que teria nascido precisamente de uma mudança central imposta pela Modernidade em relação à posição do planeta no sistema cósmico. Segundo Jonas, a Modernidade se ergueu sobre uma visão sobre o planeta Terra como um mecanismo inviolável, que o poder humano não poderia abalar. Nesse caso, o programa baconiano parte de um erro: o erro da inviolabilidade, que teria promulgado um direito de afetar a natureza sem qualquer exigência ética. Essa ideia, aliás, não é nova: ela está fundada numa visão antiga, herdada do mundo grego, por exemplo. Não é por acaso que Jonas começa o seu livro de 1979, O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, precisamente apontando para a obsolescência dessa visão. Citando a famosa passagem do coro de Antígona, que faz uma “angustiosa homenagem ao excessivo poder humano”, Jonas lembra que não existe, naquele texto, qualquer preocupação com o efeito desse poder sobre a natureza.

Frágil Equilíbrio foi lançado na última sexta-feira, 08-08-2025, na PUCPR (Imagem: Divulgação)

Embora o texto descreva uma “irrupção violenta e violentadora na ordem cósmica”, uma “invasão atrevida dos diferentes domínios da natureza por meio de sua incansável esperteza” (PR, 31), nenhuma preocupação aparece no coração do homem que narra esses eventos. Jonas se interessa pelo que esse texto esconde: “o que ali não está dito, mas que estava implícito para aquela época”, ressalta ele, “é a consciência de que, a despeito de toda grandeza ilimitada de sua engenhosidade, o homem, confrontado com os elementos, continua pequeno: é justamente isso que torna as suas incursões naqueles elementos tão audaciosas e lhe permite tolerar a sua petulância” (PR, 32). Todas as liberdades de exploração da natureza por parte do ser humano, portanto, estão embasadas em duas visões: a natureza é inviolável; o poder humano de afetá-la é nulo, as intervenções humanas são “superficiais e impotentes para prejudicar um equilíbrio firmemente assentado” (PR, 31), escreve Jonas.

Vulnerabilidade ambiental como dano

Nas suas palavras, a natureza é vista como inalterada, de forma que ao homem “tudo está permitido” (para lembrar o famoso dístico de Dostoievski, com ressonâncias no niilismo nietzschiano), já que nada que o ser humano fizesse poderia causar danos relevantes à ordem cósmica. A natureza, no fundo, “perdura para além dos empreendimentos humanos”, enquanto esses são limitados e efêmeros: “Ainda que ele atormente ano após ano a terra com o arado, ela é perene e incansável; ele pode e deve fiar-se na paciência perseverante da terra e deve ajustar-se ao seu ciclo. Igualmente perene é o mar. Nenhum saque das suas criaturas vivas pode esgotar-lhe a fertilidade, os navios que o cruzam não o danificam, e o lançamento de rejeitos não é capaz de contaminar suas profundezas. E, não importa para quantas doenças o homem ache cura, a mortalidade não se dobra à sua astúcia” (PR, 32).

Além disso, Jonas destaca que tal vulnerabilidade já é descoberta como “dano”, ou seja, já como prejuízo ambiental: “Tome-se, por exemplo, como primeira grande alteração ao quadro herdado, a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção técnica do homem – uma vulnerabilidade que jamais fora pressentida antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos” (PR, 39). Em resumo, falar em um “frágil equilíbrio” significa reconhecer a fragilidade do sistema que tem garantido as possibilidades da vida no planeta Terra e que, devido à magnitude da ação humana nos últimos séculos, tem sido colocada em risco. Trata-se, portanto, de um manifesto em defesa da responsabilidade do ser humano, cujos poderes tecnológicos têm provocado a “perturbação do equilíbrio simbiótico” (PR, 230) e lavado à extinção de inúmeras formas de vida, sem as quais não só a natureza fica mais empobrecida, mas a própria humanidade é colocada em risco. Além disso tudo, sabemos que a fragilidade se revela num equilíbrio instável, delicado e muito sutil: um pouco mais de oxigênio e morreríamos todos; um pouco menos também; um grau a mais na temperatura do planeta e nós sabemos o que pode acontecer (o que já está acontecendo!)... Eis o desafio que temos em nossas mãos.

IHU – Em que sentido essa “primeira tarefa cósmica da Filosofia”, que é o “frágil equilíbrio” ao qual se refere Jonas, aponta para a necessidade de se pensar conjuntamente justiça climática e responsabilidade no Antropoceno?

Jelson Oliveira – Como se sabe, todo o esforço de Jonas é trazer esse problema para o campo filosófico. Para ele, as éticas do passado, embora válidas, não são mais suficientes para enfrentar o novo cenário. Ele nos lembra que, em termos éticos, “um objeto de ordem inteiramente nova – nada menos do que a biosfera inteira do planeta – acresceu-se àquilo pelo qual temos de ser responsáveis, pois sobre ele detemos poder” (PR, 39). Assim, a tarefa cósmica da filosofia é assumir a responsabilidade sobre esse cenário e contribuir para a manutenção desse equilíbrio. Mas todos sabemos que há discrepâncias de responsabilidades: primeiro, porque nem todos contribuíram da mesma forma para a fabricação dessa crise; depois, porque nem todos estão sofrendo da mesma forma e nem todos têm as mesmas condições de enfrentá-la. Pobres, negros, mulheres, idosos e crianças, principalmente dos países do Sul Global, têm sido mantidos alijados das benesses do chamado progresso (em nome do qual se poluiu a natureza) e, ao mesmo tempo, têm sido as primeiras vítimas. Do outro lado, os países do Norte Global, que, não por acaso, são os mais desenvolvidos, têm mais responsabilidade sobre a geração do problema e, agora, deveriam arcar com as responsabilidades para a sua solução. É por isso que o tema da justiça climática entra em questão: para manter o frágil equilíbrio, precisamos compreender adequadamente a crise e, ao mesmo tempo, nomear claramente os responsáveis.

É preciso, afinal, perguntar-se sobre o “quem” da responsabilidade. É isso que o nosso livro quer fazer: queremos refletir sobre o problema, apontando para os desafios éticos e políticos que derivam dele. É preciso colocar em xeque o sistema que está gerando essa crise, na medida em que o mesmo modelo civilizatório que gera as mudanças climáticas tem sido responsável pela manutenção das terríveis desigualdades sociais que mantêm milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade ambiental ao redor do mundo. Qualquer filosofia séria não pode fechar os olhos para esse problema.

IHU – Vivemos uma emergência planetária que se conflagra em muitas frentes. A partir do legado de Hans Jonas, como é possível enfrentar essa realidade de modo ético, inclusivo e transformador?

Jelson Oliveira – Jonas é um autor central para pensarmos esse problema, seja pela atualidade de seu pensamento, seja pelos insights que ele projeta sobre os problemas que são nossos atualmente. A situação que ele descreveu, no último quarto do século XX, tem se agravado enormemente, e o apelo que ele dirige à responsabilidade, refletida a partir do avanço da tecnologia, representa um grande esforço para pensarmos alternativas à dieta socioeconômica baseada na exploração desmedida dos recursos naturais. Jonas fala em um constante “saque” da natureza em nome de necessidades que foram, na maior parte, inventadas por nossa geração. Não por acaso, ele propõe um autolimite do poder tecnológico em nome da garantia da continuidade da vida.

A questão central de sua filosofia é que a tecnologia não pode caminhar sem a ética: fugindo da tecnofobia, mas também da utopia tecnofílica ingênua, ele apela para os “freios voluntários”, ou seja, para a imposição de rédeas éticas capazes de orientar o avanço tecnológico. É precisamente nisso que sua ética se mostra atual e urgente. Em Técnica, medicina e ética, livro que agora completa quarenta anos de publicação, ele fala em modéstia na aquisição dos poderes e de uma vida frugal: “Em muitas coisas, estamos já no meio da – já nada incerta – zona de perigo, onde a nova modéstia já não é só questão de precaução previsora, mas uma clara urgência. Para deter o saque, o empobrecimento das espécies e a contaminação do planeta que estão avançando a olhos vistos, para prevenir o esgotamento de suas reservas, inclusive uma mudança insana do clima mundial causada pelo homem, é necessária uma nova frugalidade em nossos hábitos de consumo” (TME, 44).

É preciso, afinal, fazer sacrifícios agora para que o pior seja evitado. A ética de Jonas, não por acaso, soa estranha aos ouvidos de nossa civilização, mais afeita aos discursos de progresso, ao entusiasmo embriagado do avanço tecnológico. Esses discursos, além de ingênuos, são imensamente perigosos. Mais de uma vez Jonas afirmou que o perigo não reside no fracasso da tecnologia, mas no seu sucesso, ou seja, na ampliação de seus poderes. Porque a técnica abre inúmeras feridas que, embora se diga o contrário, ela não pode curar. É onde entram a contenção, a precaução, a modéstia e a frugalidade, que são faces concretas da responsabilidade.

IHU – Nesse sentido, a obra que vocês lançam incentiva o binômio reflexão/ação tendo a responsabilidade ambiental como diretiva e a justiça climática como fundamento. Como promover essa responsabilidade junto ao poder público e à sociedade civil?

Jelson Oliveira – Embora muita gente não tenha se dado conta, Jonas é um pensador da democracia. Para ele, precisamos fazer com que as instâncias políticas, a começar pelos governos e pelos chamados “homens/mulheres públicos”, responsáveis pela tomada das decisões, nos ajudem a evitar uma situação na qual tenhamos que assumir medidas autoritárias, em nome da garantia das condições mínimas de sobrevivência. Nosso livro, por isso, tematiza também essa questão apelando para a ideia de que a ética precisa se aliar à política e ao direito. O último capítulo da obra, por exemplo, é uma reflexão sobre como o clima se tornou um problema de justiça e de direito.

O problema é que o modelo democrático, baseado nas decisões e interesses de curto prazo (os governos mal se elegem, já começam a pensar no próximo pleito eleitoral, de forma que vivem em campanha), tem sido impeditivo para as decisões ambientais, que exigem uma visão de longo prazo, em vista das gerações do futuro (que ainda não votam, por exemplo). Esse modelo precisa ser questionado. E isso só poderá ser feito com o aumento da educação climática e ambiental. Mais uma vez, o papel da filosofia e da educação: é preciso falar sobre o assunto, educar as pessoas para que possam exigir do poder público e das instâncias políticas, para que participem das diferentes iniciativas e organizações da sociedade civil, em vista de pressionar e gestar as decisões que visem a garantia do futuro.

Aqui vale lembrar o apelo de Greta Thunberg: “Não há no mundo nenhuma outra história tão importante, e ela precisa ser contada até onde nossas vozes chegarem, e muito além. Ela precisa ser contada em livros e artigos, em filmes e canções, à mesa do café da manhã, do almoço e do jantar, em reuniões familiares, nos elevadores, nos pontos de ônibus e nos armazéns na zona rural. Nas escolas, nos lugares de decisão e no chão das fábricas. Nas reuniões de sindicatos, nos grupos políticos e em estádios de futebol. Nos jardins de infância e nas casas de repouso. Nos hospitais e nas oficinas de automóveis. No Instagram, no TikTok, e no noticiário da TV. Em estradinhas poeirentas e em ruas e travessas de vilas e cidades. Agora chegou a hora de narrar isso, e até mesmo de mudar o seu final” (Thunberg, 2023, p. 42).

O nosso livro é mais uma voz insistente neste rumo: queremos contribuir para chamar atenção da sociedade (a partir do campo que nos é próprio, a filosofia) para esses desafios. E é claro que isso tudo exige o fortalecimento de instâncias internacionais que possam ajudar a enfrentar o problema. Infelizmente, como sabemos, estamos caminhando na contramão do que seria necessário.

IHU – Vocês propõem que somente um novo paradigma econômico, social e ambiental pode nos salvar do colapso anunciado. Por que a responsabilidade pelo futuro é coletiva, mas também discrepante? 

Jelson Oliveira – Primeiro porque devemos superar a visão fragmentada e individualista da responsabilidade: quando pensamos nos problemas ecológicos, não basta que eu tenha iniciativas interessantes, se meu vizinho não faz nada; se eu limpo e o país do lado suja; se uns fazem e outros dão de ombros. Essa é uma responsabilidade coletiva, porque a geração do problema é também coletiva. Isso exige, portanto, que todos façam alguma coisa. Mas também sabemos que alguns devem fazer mais: é aí que entra a questão da discrepância de responsabilidades. Quem tem sujado historicamente o planeta deve se empenhar mais para limpá-lo; quem não tem condições dignas de sobrevivência deve ter o direito de alcançar uma situação de vida digna, enquanto os abastados devem optar pelo decrescimento econômico, em benefício de todas as formas de vida. A questão continua sendo: quais instâncias poderiam nos ajudar a cumprir esse ideal? Sabemos que elas ainda não existem, e mesmo as que existem encontram-se fragilizadas. É preciso fortalecer as entidades, os movimentos e as instâncias políticas em benefício da preservação das condições de vida para nós e nossos descendentes.

IHU – Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU em maio de 2025, você afirma, com base em Jonas, que não nos cabe a apatia frente ao cenário criado por uma civilização tecnológica e que gestou o Antropoceno que vivemos. Qual é a responsabilidade dos países em desenvolvimento e seus governos pelo que hoje vivemos em termos de impactos ambientais?

Jelson Oliveira – Em uma entrevista ao jornal alemão Die Welle, às vésperas da Eco-92, encontro da ONU sobre meio ambiente realizado no Rio de Janeiro, Jonas é perguntado se a ética dele não era uma ética para abastados, ou seja, uma ética para quem já está desenvolvido, na medida em que propõe uma modéstia no consumo e no uso dos poderes tecnológicos. Jonas reconhece, nesse caso, que a responsabilidade é uma tarefa de todos, mas que há diferentes responsabilidades entre os países desenvolvidos e os outros – que na época se chamava de “subdesenvolvidos” ou, como dizemos hoje, em desenvolvimento. Para o autor, a responsabilidade desses países mais pobres, geralmente do Sul do mundo, seria, em primeiro lugar, pensar o “progresso com precaução”, em vista de garantir condições dignas de vida para sua população, mas, ao mesmo tempo, proteger a natureza. Dos países ricos, ao contrário, espera-se que coloquem freios no desenvolvimento, questionando a lógica mesma do progresso, produzido pelo que Jonas chama de “vontade de ilimitado poder” (TME, 18). Nesse sentido, o desafio é muito grande: trata-se de um desafio político em grande escala. E é precisamente aí que ganham importância iniciativas internacionais como as das COPs, por exemplo.

IHU – Nessa mesma entrevista, você evocava a importância da carta encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, em um chamado a nos vermos como habitantes da “casa comum”. Essa amizade ecológica como contraponto ao antropocentrismo seria a chave para uma outra forma de existência, em equilíbrio com o planeta que nos acolhe?

Jelson Oliveira – Sem dúvida: não há modo de pensar a vida na “casa comum” sem reconhecermos essa amizade ecológica na qual todos os seres vivos são reconhecidos em sua dignidade própria, ou seja, como um bem intrínseco. Assim, se o antropocentrismo parte do reconhecimento do bem humano como o único que interessa, agora precisamos alterar esse paradigma para pensar aquilo que Jonas chama de “solidariedade de interesse com o mundo orgânico” (PR, 229): trata-se de compreender que todas as formas de vida são importantes para o “frágil equilíbrio” e que, como já disse, o bem humano está relacionado ao bem das demais formas de vida. Para Jonas, “uma vida extra-humana, uma natureza empobrecida, significa também uma vida humana empobrecida” e, dessa forma, que “a inclusão da existência da diversidade [da vida] como tal no bem humano e, portanto, a inclusão de sua preservação no dever do homem vai além do ponto de vista orientado utilitariamente e de todo ponto de vista antropocêntrico” (TME, 32-33). Essa está entre as maiores urgências de nosso tempo e entre as grandes contribuições da filosofia em nosso tempo: é preciso contribuir para romper com essa visão antropocêntrica, em benefício de uma grande solidariedade, uma solidariedade que nos liga ao grande interesse de todos os seres que coabitam esse planeta.

IHU – Qual é o significado da imagem de capa do livro, de autoria do estilista mineiro Ronaldo Fraga?

Jelson Oliveira – Ronaldo Fraga é um dos mais conhecidos estilistas brasileiros, com reconhecimento internacional. Mineiro, é antes de tudo um apaixonado pela vida. Uma das suas frases mais famosas diz que “nós já temos roupa demais, faltam ideias”. Essa perspectiva faz com que ele se empenhe em utilizar a moda (que, no geral, segue a lógica do consumo e do descarte, da superficialidade e das aparências) como veículo das grandes ideias e das grandes causas. Fraga, por isso, é um defensor da ecologia, um arauto da responsabilidade e do compromisso com a natureza, com pés fincados no chão brasileiro, seus biomas, seus povos, seus artistas, suas folhas, flores e sementes. Fraga nos cedeu uma imagem que está na capa de nosso livro. A imagem desse coração suspenso na capa, cheio de flores, é uma ilustração do frágil equilíbrio e, ao mesmo tempo, da tradução da responsabilidade em um vínculo amoroso com toda a natureza. É esse amor ecológico, responsável e livre, que acreditamos ser urgente em nossos tempos. A imagem é de Patrick Rigon e estampou a coleção “E por falar em amor”, que Fraga colocou nas passarelas da São Paulo Fashion Week, em 2015. Durante o desfile, Tchaikovski se misturava à voz de Chico Buarque e a vozes de poemas eróticos de Hilda Hilst, enquanto os corações floridos cruzavam as passarelas.

Cumprindo seu compromisso com o meio ambiente, Fraga desfilou tecidos da coleção Casulo Feliz (Vale da Seda), do artesão paranaense Gustavo Rocha, que aproveitava casulos com defeitos, que foram descartados pela indústria. Nas mãos de Fraga, tudo era matéria de amor e para o amor. Vale lembrar que as flores são o órgão reprodutivo das plantas: lembra a possibilidade da vida que deve florescer sempre. Cravada no coração humano, que é um coração animal, o amor deve florescer. Fraga declarou na época que “em tempos de guerra, falar de amor é um ato de subversão e resistência”. Esse livro também se alia a esse apelo de resistência e subversão da ordem atual das coisas, em vista de um novo tipo de amor, um sentimento revolucionário que deve nos animar no cotidiano de nossas vidas. 

IHU – Como analisa os desafios da COP30, mas também os seus paradoxos, sediada pelo mesmo Brasil que gesta a PEC da Devastação e libera a exploração de petróleo na Foz do Amazonas?

Jelson Oliveira – Primeiro devemos reconhecer que é uma lástima o que está acontecendo no Brasil com a legislação ambiental. Todos e todas devemos nos esforçar para compreender profundamente os interesses que estão em jogo com a PEC da Devastação, que explicitam que a Câmara Federal está a serviço das forças do atraso, da destruição e do saque da natureza – totalmente ao contrário do que apontam as nossas urgências. É também muito triste que o governo federal esteja investindo na exploração de petróleo (ainda mais com tantos riscos implícitos à biodiversidade da Amazônia), num momento em que esperaríamos mais investimento na transição energética e em todas as iniciativas de mudança na relação com a natureza. 

Nota-se, assim, como o Brasil é um país que exemplifica os desafios políticos que comentamos anteriormente: o nosso país tem sido orientado por políticas de governo, e não políticas de Estado e isso, como falamos, é uma tragédia em termos ambientais, dada a gravidade do que está em jogo. E isso tudo é ainda mais lamentável quando pensamos que esse é o ano em que acolhemos o mundo para a COP30. Estive em Belém há dois meses e pude ver como a capital do Pará já respira o evento. Há obras por toda parte, algumas aparentemente de grande porte, como viadutos, parques e praças. Há grandes outdoors e cartazes comunicando a pompa da ocasião. Pelas ruas, há homens trabalhando apressados sob sol e chuva – que lá, nessa época, revezam-se teimosamente, como se disputassem o cenário que contrasta o indomável das águas e das florestas, com a própria urbanidade das casas e ruas. 

Belém, retrato do Brasil

Entre os residentes, o assunto são os preços de hospedagem e alimentação – que também ganhou repercussão internacional nos últimos meses. Um conhecido lá disse que já estava alugando seu apartamento durante os dias do evento e estimava ganhar um ótimo dinheiro com isso. Outro relatou que todo o seu prédio está arrendado a preço de ouro. Os hotéis já estão com reserva máxima enquanto empresas privadas e governos de diferentes países alugam prédios residenciais inteiros, a preços realmente alarmantes. Esses preços se contrapõem à realidade de uma cidade pobre e precária como são vários lugares de Belém.

A verdade é que a pobreza não pode ser escondida. Por toda parte há favelas e periferias sem saneamento básico, há lixões repletos de urubus em muitas esquinas, transporte público de baixa qualidade, violência crescente, desemprego e muitas crianças com fome – que certamente assistirão as comitivas da COP30 passarem insensíveis à sua dor. Belém é o retrato do Brasil. Linda por fora, cheia de vida e exuberância; mas miserável por dentro, desigual e suja em vários lugares. Faltam áreas de lazer, há prédios históricos abandonados, há gente pobre sofrendo para ganhar a vida. E há exploração imobiliária, grandes empresas, grandes projetos, grandes destruições. Quando vemos isso de perto, não dá para esquecer que o sucesso da COP30 depende de uma coisa simples, mas historicamente desafiadora: a capacidade de incluir nas decisões as populações mais vulneráveis. E isso está, de novo, ameaçado.

De quem, afinal, será a COP30? Se os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos paraenses – assim como todas as demais populações que são as primeiras vítimas do aquecimento global – não participarem das mesas de negociação, não contarem suas histórias, se suas dores não forem narradas e conhecidas, nada mudará. Enquanto a voz das vítimas não for escutada, os tomadores de decisão continuarão insensíveis, desfilando em suas caravanas à prova de bala, pagando altos preços de aluguel e comendo em bons restaurantes, servidos pelos mesmos pobres que eles pretensamente defendem. E que são as primeiras vítimas de sua incompetência diplomática. Esse é um tema de justiça climática, que nós trabalhamos em nosso livro. Enquanto Belém se enfeita para receber as delegações desse evento decisivo para o futuro da humanidade, vive as mesmas ameaças de fracasso que outros encontros como esse já testemunharam.

Ainda mais agora, que o negacionismo climático se fortalece e se junta a outros horrores, celebrados diariamente sob o aplauso de elites não apenas irresponsáveis como também devassas, cujo culto macabro da necropolítica põe em xeque o que até hoje entendemos por civilização. À espera da COP30, Belém é um pêndulo entre o temor e a esperança.

IHU – Desde Hiroshima e Nagasaki, este é o momento em que estamos mais próximos de uma conflagração nuclear, com ameaças recíprocas entre EUA e Rússia e com o rearmamento da Europa. Como a filosofia de Hans Jonas pode nos inspirar a pensar linhas de resistência por um outro mundo possível?

Jelson Oliveira – Jonas viveu em tempos de guerra. Lutou contra o nazismo em uma brigada britânica. Viveu os dramas dos campos de concentração (sua mãe foi assassinada em Auschwitz), das bombas nucleares e das tensões da guerra fria. Sua obra está profundamente marcada pelas ameaças e pelos medos derivados desse cenário. Desse ponto de vista, o retorno desses medos, talvez até com maior gravidade em nossos dias, torna a sua obra ainda mais necessária e urgente. É preciso pensar o papel da tecnologia em nossa sociedade e forjar uma forma de atuação ética e política orientada pelo esforço da responsabilidade. Não tem outro caminho: educar as pessoas para que elas possam eleger líderes políticos que assumam essas pautas. E isso não é pouca coisa, diante dos negacionismos e da grande influência das redes sociais (a serviço das Big Techs) na opinião pública.

Ao falar do papel da educação, Jonas fala de ensinar o valor da humanidade e fazê-lo a partir de um novo valor, o medo: uma sociedade que não tem medo é uma sociedade irresponsável, que não se dá conta do que está implicado nos perigos da tecnologia. Por isso, a educação deveria assumir a tarefa da autodisciplina da liberdade, que não é outra coisa que uma liberdade (para o fazer) orientada pela responsabilidade. Do contrário, a humanidade do futuro será vítima do cultivo exacerbado das libertinagens presentes, que acabariam por criar um estado de coisas tal que a própria liberdade teria de ser trocada por alguma forma de tirania, única saída diante da extinção.

Nota do IHU

(1) Hans Jonas (1903-1993): filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à sua influente obra O Princípio Responsabilidade (publicada em alemão em 1979 e em inglês em 1984) à qual se atribui o papel de catalisador do movimento ambiental na Alemanha. Já O Fenômeno da Vida (1966) forma a espinha dorsal de uma escola de bioética nos Estados Unidos, obra profundamente influenciada por Heidegger e que tenta sintetizar a filosofia da matéria com a filosofia da mente, produzindo um rico entendimento da biologia, em busca de uma natureza humana material e moral. Sobre seu pensamento, confira a Edição 540 da Revista IHU On-Line, de 02-09-19, intitulada Hans Jonas. 40 anos de O princípio responsabilidade, disponível aqui.

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