08 Novembro 2022
“Compreender melhor como a extrema-direita se organiza é essencial para evitar comparações inadequadas com experiências passadas e traçar estratégias eficazes para deter seu avanço na atualidade. Também é crucial para que não façamos o jogo da extrema-direita, confirmando involuntariamente o que ela diz sobre seus oponentes – que são elites seculares cosmopolitas com nada além de desprezo pelos valores das pessoas comuns –, ou cometendo generalizações errôneas sobre a religiosidade e os grupos religiosos, porque nos falta uma avaliação matizada das funções organizacionais precisas que a religião desempenha nesses ambientes”.
A reflexão é de Rodrigo Nunes, em artigo publicado por The Immanent Frame e reproduzido por Ctxt, 06-11-2022. A tradução é do Cepat.
Por razões que não necessitam de explicação, o conceito de “fascismo” tem sido objeto de muita discussão nos últimos anos. No pano de fundo desses debates, a questão insolúvel é sempre até que ponto o conceito deve ser abstraído dos dois únicos casos históricos em que é universalmente aceito: os movimentos liderados por Benito Mussolini e Adolf Hitler, respectivamente na Itália e na Alemanha, na década de 1930. É o fascismo um fenômeno estritamente europeu (algo que alguém como Federico Finchelstein questionaria)? Ocorre exclusivamente em circunstâncias de crise e competitividade imperialista no período entre guerras? Implica necessariamente o estatismo e o nacionalismo ou pode ser compatível com um programa neoliberal favorável ao capital internacional? O que o distingue especificamente de outras formas de capitalismo autoritário? A dificuldade em chegar a um consenso em torno desses problemas de definição levou a soluções provisórias como “fascismo tardio” (Alberto Toscano) e “pós-fascismo” (Enzo Traverso).
Uma daquelas que parecem ser características essenciais do fascismo é o apoio de um movimento de massas forte e altamente disciplinado, normalmente com uma organização de tipo paramilitar. Essa é uma das razões mais comuns dadas por analistas contemporâneos para explicar por que figuras como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil não deveriam ser incluídas nessa categoria. No entanto, uma definição de fascismo baseada em um movimento de massa paramilitar incluiria o Partido do Povo Indiano (BJP). Único entre seus contemporâneos, talvez o BJP mereça esse título em virtude de sua íntima relação com o movimento Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), de cuja estrutura capilar depende para o trabalho político no terreno e a construção de bases.
Meu objetivo aqui não é defender esse argumento, nem julgar se o uso do termo “fascista” para descrever a extrema direita atual é correto. Em vez disso, quero levantar três pontos que estão inter-relacionados.
Em primeiro lugar, nossas expectativas sobre qual forma organizacional o fascismo deveria assumir deveriam ser revistas à luz de como o mundo mudou desde a década de 1930.
Em segundo lugar, entre as novas formas que a organização política da extrema direita pode assumir, há uma que segue, pelo menos parcialmente, um modelo de empreendimento político e espiritual estabelecido por determinadas correntes evangélicas.
Em terceiro e último lugar, não devemos conceber o poder político e organizacional das Igrejas evangélicas ou do RSS como algo derivado exclusivamente de sua influência doutrinária; a religião não é o único serviço que oferecem, e talvez nem mesmo o mais importante.
Comecemos pelo primeiro ponto.
Duvido que alguém queira negar que nossas sociedades são essencialmente diferentes em sua organização daquelas em que o fascismo histórico nasceu. Para destacar apenas algumas tendências importantes, podemos apontar para o declínio da disciplina fordista em favor de regimes flexíveis de exploração, a crescente atomização do trabalho e da vida social e a disseminação da cultura de consumo, bem como da mídia de massas e das redes sociais. Ora, parece razoável supor que a organização política existe em relação a algum grau de continuidade com a organização social, no sentido de que os padrões dominantes desta última muitas vezes funcionam como um caminho de menor resistência para a expressão de visões e objetivos políticos. Se for assim, deveríamos realmente nos surpreender que as formas de organização política também tenham mudado, e a extrema direita não deveria ser uma exceção? Podemos encontrar exemplos dessa transformação na maneira como as grandes mobilizações de massa de hoje muitas vezes se sobrepõem às organizações de massa, ou no declínio do vigésimo partido de massas substituído por formas que Paolo Gerbaudo descreveu como o partido “da televisão” e, mais recentemente, o partido “digital”.
Embora muitos autores – Hardt e Negri, Jessop, Revelli e o próprio Gerbaudo, entre outros – tenham traçado um paralelo entre o partido de massas e a fábrica fordista, que tiveram seu apogeu na mesma época, talvez a melhor comparação quanto à forma seria outro tipo de empresa que também viu seu apogeu na mesma época: a empresa verticalmente integrada. O que ambas têm em comum é o princípio (e o horizonte) de realizar todas as operações “internamente”. Tanto que, de fato, em algumas concepções do partido – particularmente aquela adotada pelo fascismo histórico – supunha-se que, em última análise, ele absorveria o Estado, toda a vida política e, pelo menos tendencialmente, a própria sociedade. Qual seria a forma política equivalente para uma época de terceirização e cadeias de suprimentos heterogêneas? Enquanto muitos ativistas da esquerda começaram recentemente a se ver como pertencentes a um ecossistema dentro do qual as funções que antes pertenciam a uma única organização estão distribuídas entre vários atores, pode-se dizer que este tem sido o modelo organizacional que a direita – e talvez a direita religiosa em particular – vem empregando com sucesso nos Estados Unidos desde a década de 1970. Acontecimentos como a recente revogação do caso Roe vs. Wade só são compreensíveis após longos processos que envolvem a cooperação coordenada e descoordenada de agentes ativos em diferentes campos e escalas, mais do que o trabalho de uma única organização. As estruturas partidárias, os financiadores, os think tanks, os escritórios de advocacia, os grupos de campanha e lobby e, claro, as igrejas são apenas alguns dos nós que compõem essas redes.
Assim, embora seja verdade que não encontraremos nada como os camicie nere de Mussolini ou os RSS por trás de Trump e Bolsonaro, podemos interpretar essa ausência como tendo um movimento organizado de forma diferente, em vez de nenhum movimento. Em vez de chegar ao poder no lombo de uma única estrutura organizada de cima para baixo, ambos se apoiaram fortemente na mobilização, no recrutamento e na ideologização realizados por outros que existiam de forma independente, mas que, com o tempo, passaram a percebê-los como veículos para seus próprios fins, ou simplesmente viram em sua ascensão uma oportunidade boa demais para perder. De fato, nem mesmo a função paramilitar está realmente ausente do ecossistema que cerca esses líderes. Eles simplesmente subcontrataram milícias que operam de forma independente e para seus próprios fins – principalmente econômicos, no caso do Brasil –, mas que, não obstante, são vistas como parte de um jogo estratégico maior.
Isso nos leva ao segundo ponto.
O que é mais singular (no sentido de ser mais contemporâneo) do modo como os ecossistemas Trump e Bolsonaro surgiram é sua dependência das possibilidades oferecidas pelo nosso atual cenário midiático. Não se trata apenas de que ambos os líderes eram relativamente desconhecidos e que foram catapultados para o centro do palco pelo uso inteligente das plataformas digitais e da economia de atenção clickbait. Eles também foram impulsionados por um enxame de outros agentes da mídia – podcasters, especialistas, influenciadores, celebridades fracassadas, canais do YouTube, etc. – para quem suas campanhas presidenciais foram atraentes não apenas do ponto de vista político, mas também comercial. No caso de Bolsonaro, até mesmo seu guru declarado, o recém-falecido Olavo de Carvalho, era um ex-astrólogo que ganhava a vida vendendo cursos on-line e pedindo doações aos seguidores para pagar contas médicas. (Fiel aos seus princípios, ele morava em Richmond, na Virgínia, em vez do Brasil, onde teria acesso à saúde pública gratuita.)
Como argumentei em outras ocasiões, devemos ver a extrema direita não apenas como tendo um discurso pró-negócios, mas como um movimento empresarial por direito próprio. O que caracteriza esse novo tipo de empresário político é tanto o seu uso dos meios de comunicação como a forma como vinculam intrinsecamente a acumulação de capital político e econômico: ao passo que assumir posturas cada vez mais “radicais” e “polêmicas” é uma forma de aumentar a própria visibilidade e alcance, construir uma base de seguidores sólida e engajada é, em vez disso, um meio de aumentar o próprio acesso e influência política. Obviamente, esse fenômeno é inseparável de plataformas como Instagram e Twitter e da cultura dos influenciadores que geraram.
No entanto, eu diria que um modelo original desse casamento entre o comércio e uma missão superior – espiritual, mundana ou ambas – pode ser encontrado nos pastores pentecostais e neopentecostais desde pelo menos a década de 1970. Ao adotar uma abordagem mais explícita da liberdade de empreendimento para a construção da igreja, não apenas uniram o zelo apostólico e os negócios em sua prática (e muitas vezes também em sua pregação). Eles se envolveram cada vez mais na política e, ao mesmo tempo, direcionaram suas congregações para determinados objetivos seculares, trocando seu poder sobre elas por influência política e, posteriormente, usando essa influência para promover os interesses econômicos de suas igrejas e os seus próprios. Ao fazer isso, deixaram um repertório de discursos e movimentos práticos que os empresários políticos de hoje podem usar a seu favor. Não é de surpreender, então, que haja uma sobreposição considerável, tanto política quanto operacional, entre os líderes evangélicos e os agitadores da extrema-direita. Mas isso também deveria ser um lembrete de que esses processos geralmente têm menos a ver com a religião como tal (no sentido, por exemplo, do conteúdo doutrinário) do que com os usos que podem ser feitos.
Ao mesmo tempo, essa convergência nos permite ver uma diferença importante entre o papel desempenhado por organizações como as igrejas ou os RSS na estruturação dos ecossistemas de movimento mais amplos discutidos aqui, e aquele desempenhado por influenciadores e celebridades dos meios de comunicação, que foi o terceiro ponto descrito acima. Como empresários políticos, pode-se dizer que todos fornecem um ou mais serviços, e alguns elementos desses serviços certamente permanecem relativamente constantes. Dessa forma, todos afirmam oferecer alguma forma de representação política ao amplificar a voz de seus apoiadores e talvez até agindo em seu nome como negociadores autonomeados. Também oferecem uma série de recompensas psicológicas: uma bússola cognitiva e moral em tempos de desorientação, a validação de certos sentimentos e preconceitos, um sentimento de pertencimento e comunidade, a elevada perspectiva de uma missão superior a cumprir e o empoderamento para fazê-lo.
No entanto, seria errado considerar que o poder político dos grupos evangélicos e dos RSS advém principalmente da força da fé cristã ou do hindutva, já que o serviço que prestam vai muito além. A presença constante em suas comunidades permite que os grupos evangélicos e RSS tenham um impacto direto no bem-estar de sua base, algo que um aparato estatal ausente e subfinanciado muitas vezes não consegue igualar. Filiar-se a uma igreja na periferia do Brasil e em outros lugares é encontrar não apenas uma religião, mas muitas vezes também apoio para se ocupar do cuidado das crianças ou dos vícios, qualificação e ajuda para encontrar um trabalho, programas de alfabetização, redes de ajuda mútua e vida social. Isso confere às mensagens políticas que acabam percorrendo esses circuitos maior credibilidade e alto grau de insistência, uma vez que garante que as próprias ideias e consignas cheguem aos fiéis através de amigos, familiares, programas de rádio, grupos de WhatsApp e do púlpito.
Assim, mesmo naqueles casos em que os ecossistemas de extrema-direita parecem mais descentralizados do que os de seus precursores históricos, como Brasil e Estados Unidos, continuaremos descobrindo que muitas das funções que antes eram monopólio das grandes organizações de massa continuam sendo realizadas, na maioria das vezes, por grupos religiosos; a única coisa que acontece é que essas funções se tornaram mais descentralizadas. Isso dá à direita uma autoridade local, sobre o terreno, que poucas organizações da esquerda podem aspirar hoje. De fato, o movimento evangélico de direita no Brasil se beneficiou muito do vazio deixado pelo desmantelamento da Teologia da Libertação nas décadas de 1980 e 1990. Quando as comunidades eclesiais de base abandonaram o trabalho comunitário, havia muito espaço para algo que desempenhasse algumas de suas funções, mas as levou por um caminho muito diferente.
Compreender melhor como a extrema-direita se organiza é essencial para evitar comparações inadequadas com experiências passadas e traçar estratégias eficazes para deter seu avanço na atualidade. Também é crucial para que não façamos o jogo da extrema-direita, confirmando involuntariamente o que ela diz sobre seus oponentes – que são elites seculares cosmopolitas com nada além de desprezo pelos valores das pessoas comuns –, ou cometendo generalizações errôneas sobre a religiosidade e os grupos religiosos, porque nos falta uma avaliação matizada das funções organizacionais precisas que a religião desempenha nesses ambientes. Espero que os três pontos aqui expostos possam ajudar a aguçar um pouco o foco da nossa análise e, ao fazê-lo, nos ajudar a ver com mais clareza onde e como podemos intervir.
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O pastor, o enxame e o movimento. Artigo de Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU