01 Julho 2022
“Diante das incoerências, a 'sensibilidade de esquerda' não tem escolha a não ser promover a autocrítica e focar o discurso não tanto na benção da mentalidade ou da 'razão abortista', mas no reconhecimento da existência de situações-limite e conflitos de direitos em que é impossível aplicar dedutivamente as normas morais: a única coisa que resta, talvez, é aceitar o mal menor, como pode ser visto nos casos de perigo para a vida da mãe, malformação do feto e gravidez por estupro. Entendido dessa forma, o aborto não é mais um direito, mas sim um recurso desesperado diante do instinto de sobrevivência”, escreve o teólogo basco Jesús Martínez Gordo, em artigo publicado por Religión Digital, 30-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A recente sentença da Suprema Corte dos EUA revogando a histórica decisão de 1973 do caso Roe vs. Wade, na qual proibia vetar o aborto até a 24ª semana de gestação em todo o país, deixou a regulação agora nas mãos de cada Estado, e reabre o debate sobe a consistência racional e moral do que se chamou de “direito ao aborto”.
Não é novidade alguma que a “sensibilidade de direita” prefere defender (às vezes apaixonadamente) o direito à vida do não-nascido ou do “nascituro” sem deixar de olhar o outro lado ou se opor frontalmente às iniciativas e decisões que buscam garantir a possibilidade de uma existência razoavelmente digna aos já nascidos e, concretamente, aos mais pobres e necessitados. Tal é o caso, por exemplo, das críticas que, como uma espécie de “eterno ritornelo”, precisamos escutar de alguns sobre a Renda Básica Universal, ou o programa Renta de Garantía de Ingresos (RGI), aqui no País Basco. Sem negar que este mecanismo de solidariedade com os mais necessitados pode ser melhor e que não está isento de desvios, é inquestionável que a “sensibilidade de direita” não gosta nada da RGI, nem se preocupa com a aposta de garantir um mínimo vital básico para todas as pessoas e famílias que não dispõem de recursos econômicos suficientes. Aqui está um exemplo no que a direita, sendo formalmente solidária com os nascituros, mostra seu rosto indiferente e beligerante com os nascidos.
Tampouco é novidade que o comportamento tradicional da chamada “sensibilidade de esquerda”, laica ou católica, é levado pela defesa dos direitos dos mais fracos e indefesos. E que o fez lutando contra o “individualismo predatório” que admira apenas a própria vida, que falsifica a liberdade, que viola os direitos dos que não tem força para se defender e que absolutiza a vitória do forte sobre o mais fraco. Definitivamente, primando a solidariedade com os necessitados frente à absolutização da liberdade individual acima dos direitos dos mais fracos. Não obstante, como igualmente se sabe, faz parte da tradição da esquerda espanhola a defesa – em caso de conflito – do pobre frente ao não-nascido, ou o nascituro: entre ambas as vidas, se opta pela primeira a custo da segunda. Ao feto, que é o mais fraco, o menos aparente e o mais indefeso no nível humano, não é reconhecido o direito de nascer, que é o primeiro direito humano. Esta é uma decisão que resulta de priorizar a qualidade devida do já vivente sobre o direito à vida do nascituro.
Não faltam aqueles que – diante de tal mutação na “sensibilidade de esquerda” – chegam a sustentar que esse compromisso com a liberdade dos nascidos ao preço da solidariedade com os “nascituros” é uma variante – devidamente atualizada – do “darwinismo social” (“o peixe grande come o pequeno”) que era patrimônio exclusivo da direita mais antiga e beligerante. De acordo com essa observação, constatamos que a esquerda está sendo contaminada – especialmente em sua versão mais radical – por esse axioma da direita quando defende, por exemplo, “o direito ao aborto”. Quando isso acontece, lembram esses críticos, a dita esquerda é corrompida pela imoralidade “predatória”, herança tradicional da direita.
Diante dessas incoerências, a “sensibilidade de esquerda” não tem escolha a não ser promover a autocrítica e focar o discurso não tanto na benção da mentalidade ou da “razão abortista”, mas no reconhecimento da existência de situações-limite e conflitos de direitos em que é impossível aplicar dedutivamente as normas morais: a única coisa que resta, talvez, é aceitar o mal menor, como pode ser visto nos casos de perigo para a vida da mãe, malformação do feto e gravidez por estupro. Entendido dessa forma, o aborto não é mais um direito, mas sim um recurso desesperado diante do instinto de sobrevivência. Em suma, o mal menor que, em nome da solidariedade, do respeito e do acompanhamento a quem passa por situações tão dramáticas, está acima de qualquer imposição extrínseca.
Acredito que os rigoristas que fervilham em torno da “sensibilidade de direita” não têm outra escolha senão reconhecer que, argumentando e procedendo dessa forma, não estão defendendo a moralização do aborto, mas sim aceitando que é uma situação limite que, justamente, porque é, não pode ser universalizado. E me permito sugerir que não seria errado se, diante da legislação civil sobre o aborto, alguns desses grupos, e outros legitimamente preocupados, considerassem a possibilidade de criar algo como “fundamentos para a vida humana a quem é negado o direito de nascer”, tendo em vista que o direito à vida não afeta exclusivamente o ventre das mulheres (e mais ainda se forem pobres), mas também, e sobretudo, os bolsos e as contas correntes dos ricos. Se assim procedessem, sua denúncia (muitas vezes estéril e pouco matizada) acabaria tendo uma força moral indubitável e maior aceitação social.
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O aborto, um recurso desesperado. Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU